No dia em que lançou a associação, recebeu logo seis pedidos de ajuda. Uns foram vítimas de abuso na infância, outros foram-no já em adultos - alguns pelas companheiras. São homens que procuram ajuda na primeira associação em Portugal que, precisamente, se dedica exclusivamente aos seus casos.
Ângelo Fernandes começou por ser a razão para criar a Quebrar o Silêncio. Ele próprio foi vítima de abuso sexual quando tinha 11 anos e só 20 anos depois decidiu procurar ajuda, no Reino Unido, onde vivia. Hoje quer "retribuir cá em Portugal" o apoio que recebeu através da associação Survivors Manchester.
O fundador diz que o objetivo da Quebrar o Silêncio é apoiar os homens portugueses vítimas de abuso sexual, mas também desconstruir alguns mitos, como "a ideia de que o abuso sexual só acontece entre homossexuais e nas prisões, ou que um homem não pode ser abusado sexualmente por uma mulher, ou que o abuso sexual é só penetração ou violação. Não é - é muito mais que isso", sublinha. Em entrevista à RTP, Ângelo explica as bases e os objetivos do projeto.
Quando falamos de homens que foram vítimas de abuso sexual, falamos de casos de abuso na infância mas também em adultos?
Sim. Temos um espectro que vai desde homens que tiveram uma experiência de abuso sexual enquanto eram crianças mas também recentemente, há poucos meses, e que estão neste momento a necessitar de apoio para ultrapassar o trauma.
Recentemente, por exemplo, numa relação amorosa?
Alguns foram abusados num contexto de trabalho, no seio da família mas também num relacionamento íntimo, sim. Há casos de homens que foram abusados sexualmente pela namorada ou pela mulher. Um dos mitos é esse mesmo: que um homem não pode ser abusado por uma mulher. Muita gente até costuma dizer que, se um homem foi 'abusado' por uma mulher, é um 'sortudo', teve muita sorte.
Quando se ouve falar de abuso sexual, a maioria das pessoas pensa logo na penetração ou na violação, mas o abuso sexual é muito mais do que isso. A medida é o consentimento. Se não é consentido, é abuso. Há homens abusados porque se sentem obrigados a fazer determinada coisa. Nós queremos desmistificar os vários preconceitos que existem à volta da realidade do abuso sexual masculino.
Por exemplo?
Por exemplo, esse de que um homem não pode ser vítima de abuso sexual. Depois, que um homem não pode ser vítima de abuso sexual por uma mulher. Que a violação de homens só acontece nas prisões e entre a comunidade homossexual. São tudo ideias erradas que nós queremos desconstruir.
Quando diz que o abuso é mais do que violação, isso também se verifica no caso das crianças?
Sim, nem precisa de ser físico ou sequer presencial. Quando um homem na internet se faz passar por outra pessoa e pede a uma criança para partilhar imagens despida, isso já é abuso sexual. Ou quando um adulto toca ou acaricia uma criança, isso também é abuso sexual. Ou mesmo exibir conteúdos pornográficos a uma criança - isso também é abuso sexual. Não é só penetração ou violação.
O Ângelo teve uma motivação pessoal para criar esta associação...
Sim, a minha experiência pessoal acabou por ser a força para fundarmos a Quebrar o Silêncio. Eu fui vítima de abuso sexual quando tinha 11 anos, por um amigo de família. Quando passei pelo processo terapêutico para ultrapassar este trauma, fez-me sentido para mim retribuir toda a ajuda que eu tive. E aí decidi que queria ajudar os homens vítimas cá em Portugal.
80% dos homens que procuraram a Survivors Manchester identificaram-se como heterossexuais, diz a associação.
Mas só 20 anos depois é que decidiu visitar o passado, não foi?
Exato, com 31 anos. Estava a viver no Reino Unido e houve uma altura em que cheguei a um ponto de rutura, como acontece com muitos homens. Já não aguentava mais, já não conseguia prosseguir com a minha vida, estava sempre a pensar aquilo, no trabalho, no meu dia a dia, aquela fase estava sempre presente... A asfixia, a vergonha. Estava tudo de tal modo acumulado que eu tive de procurar ajuda. Felizmente encontrei em Manchester, onde vivia, uma associação que se dedica a ajudar homens vítimas de abuso sexual, e que hoje por acaso é nossa parceira - a Survivors Manchster.
De que forma é que esse episódio o foi marcando ao longo dos anos?
As consequências são profundas. Vergonha, culpa. Sempre tive desde criança muitos problemas a nível de auto-estima. Nunca consegui confiar inteiramente nos adultos, especialmente nos adultos homens. Sempre que um homem se aproximava de mim, por exemplo um professor ou alguma figura de referência, mesmo que fosse com um interesse genuíno de saber como eu estava, eu recuava. Toda a preocupação natural, se viesse de um adulto homem, deixava-me cheio de medo. Porque eu tinha como modelo um homem amigo que, através do seu interesse genuíno, posteriormente abusou de mim, portanto eu esperava que qualquer homem que se aproximasse de mim fosse depois cobrar sexualmente por essa atenção, por esse afeto.
E isso também o marcou nos relacionamentos amorosos?
Sim, porque a minha primeira experiência sexual foi aos 11 anos com um homem que tinha mais 35 anos do que eu. E o abusador passou-me a mensagem de que aqueles comportamentos eram naturais, então isso confundiu-me por dentro. O que eu sentia era estranho mas ele transmitia-me que era normal, então fica uma confusão dentro de nós... Mais tarde, quando somos adultos, e iniciamos a nossa vida sexual, existem cabos que se trocam porque estamos a relacionar certas coisas... Pode ser um toque, pode ser um cheiro, pode ser qualquer coisa que nos leva para aqueles episódios e confunde tudo. E nem sempre temos consciência de onde é que esse mal estar vem.
Quando o abuso é cometido na infância, normalmente o agressor é conhecido da criança, certo?
Sim, o meu caso corresponde às estatísticas. Normalmente os agressores ou estão dentro da família, ou são amigos da família, ou conhecidos. Em 90% dos casos a criança conhece o agressor. E isso torna a situação complicada, porque a criança acaba por desenvolver sentimentos confusos. Quando é um pai ou um irmão, quando é uma figura de referência, existe aquela dualidade de amor/ódio, porque, por um lado, o pai é o protetor, mas é também o agressor.
A associação foi criada a 19 de janeiro. Quantos pedidos já receberam?
No primeiro dia tivemos logo seis pedidos de ajuda e na primeira semana esse número subiu para 16 pedidos de ajuda. Neste momento contamos com mais de 20 pedidos de apoio.
Nos EUA, um em cada seis homens foi vítima de abuso sexual antes dos 18 anos, diz estudo feito em 2005.
O que é que esses homens vos pediram exatamente?
Temos vários tipos de pedidos. Desde a validação do próprio abuso sexual, nomeadamente dos homens que foram abusados por mulheres - são homens que chegam até nós incrédulos porque já receberam feedback de outras entidades, como psicólogos, que lhes dizem que aqueles comportamentos são naturais, que fazem parte da exploração sexual. Procuram-nos e descrevem: "Isto aconteceu comigo, é abuso ou não é abuso?". Temos também homens que têm consciência que foram abusados mas ainda não sentiam a confiança ou a segurança para falar com alguém, porque têm medo de ser julgados. Têm medo que as pessoas não acreditem neles. Passaram muito tempo em silêncio porque tinham vergonha, sentimento de culpa, e não sentiam que tinham alguém que fosse ouvi-los sem julgamentos. O que muitas vezes nos dizem é: "Esta é a primeira vez que estou a falar com alguém, e sinto que convosco posso falar sem ser julgado".
Esse contacto é feito como? E-mail? Telemóvel?
De várias formas: através do nosso site, onde temos a nossa linha de apoio, de e-mail e também através do facebook. 25% dos pedidos têm chegado através do serviço de mensagens do Facebook.
E esses homens querem só desabafar ou pedem algum tipo de apoio?
Têm diferentes objetivos. Alguns pedem só mesmo algum espaço de desabafo, só para sentirem que podem tirar aquele peso enorme de dentro deles. Outros pedem-nos apoio: ou para psicoterapia, ou para a participação em grupos de apoio.
Associação recebeu pedidos de homens de Lisboa, do norte do país mas também de emigrantes portugueses
Quais são os vossos objetivos para o futuro?
O caminho agora é termos vários grupos de apoio, sessões de psicoterapia e fazer trabalho com as escolas - informação, ações de sensibilização, para falar do que é isto do abuso sexual masculino. Quais são as consequências, os mitos associados, qual é a realidade, os preconceitos. Queremos falar com os alunos, dos mais velhos aos mais pequenos, e já estamos a contactar as escolas nesse sentido. Vamos ver.