Relatório aponta agravamento de desigualdades no acesso à saúde

por RTP
Yorgos Karahalis - Reuters

Para se manterem saudáveis, os portugueses gastam muito mais que a maioria dos europeus. Estas e outras conclusões surgem no relatório do Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS), que vai ser apresentado esta quarta-feira em Lisboa. O documento sublinha as barreiras socioeconómicas que se mantêm no acesso a medicamentos e a consultas de especialidade, sobretudo em saúde oral e mental. Alerta ainda para o consumo excessivo de antibióticos e para a “desilusão e descontentamento” crescentes dos profissionais de saúde.

O Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS) apresenta esta quarta-feira o relatório de Primavera, “Viver em tempos incertos: sustentabilidade e equidade na saúde” que faz a avaliação geral do funcionamento do Sistema Nacional de Saúde (SNS).  

O documento tem por base dados relativos a 2014 e 2015 e aponta que “as barreiras no acesso aos cuidados de saúde permanecem relevantes em Portugal”, sendo que os fatores socioeconómicos continuam a ter um grande peso na acessibilidade. 

Na análise dos indicadores de saúde da população portuguesa a partir do último relatório da OCDE (finais de 2016), os autores evidenciam que, apesar das melhorias substanciais no estado de saúde da população portuguesa, "as desigualdades de género, geográficas/territoriais e socioeconómicas persistem".

"Para se manterem saudáveis os portugueses gastam muito mais que a maioria dos europeus, já que se mantém a diminuição do financiamento público da saúde e o aumento das despesas 'out of pocket' (pagamentos diretos) por parte da população".

No que diz respeito ao acesso a consultas de especialidade, o OPSS salienta as “limitações fortes” ao nível da saúde mental e oral. 

O relatório refere que a “carência de serviços” nestas duas especialidades é o principal motivo para esta falta de equidade, sendo que as necessidades são satisfeitas através do setor privado. Ou seja, os cuidados de saúde orais e mentais são acessíveis apenas a quem tem seguro “ou capacidade de pagar”, sublinha o estudo.

Aranda da Silva, porta-voz da coordenação deste relatório do Observatório, refere à agência Lusa que esta é uma situação “crónica” do SNS e que se traduz na ausência total de cuidados de saúde, nestas especialidades, para pessoas com fracos recursos. 

Os autores do documento lembram que houve iniciativas para colmatar esta situação, através dos cheques dentista, mas considera que a iniciativa “possivelmente não conseguiu reduzir a iniquidade”. Já no que diz respeito há saúde mental “não há medidas praticamente nenhumas”, aponta Aranda da Silva.
Acesso a medicamentos
O problema também se regista, segundo este relatório, no acesso a alguns medicamentos, até porque constitui a principal fonte de despesas em saúde nas famílias. Por isso, na ausência de isenções na aquisição de medicamentos “é natural que os mais carenciados encontrem dificuldades de acesso”.

O estudo conclui ainda que Portugal é o país da Europa em que a população paga uma fatia maior pelos medicamentos, sendo que as famílias suportam diretamente cerca de 40 por cento do preço. Mais uma vez, as questões socioeconómicas prevalecem, uma vez que o acesso aos medicamentos é mais dificultado aos mais desfavorecidos.

Aranda da Silva aponta para a ausência de isenções na compra dos medicamentos que possa melhorar o acesso a estes por parte das camadas de população “com menos recursos”.  
Segundo o responsável, o SNS até consegue beneficiar a população mais pobre, por exemplo com as taxas moderadoras, no entanto essa situação “não existe” no que diz respeito aos medicamentos, sublinha o responsável. 

O relatório do Observatório considera que a situação de subfinanciamento do SNS traduz-se, uma vez mais, no pior acesso por parte de doentes com fracos recursos. 
Consumo elevado de antibióticos
Um dos estudos que integra este relatório procura caracterizar o consumo de antibióticos entre 2004 e 2014 em Portugal, concluindo que existem grandes discrepâncias a nível regional. De uma forma geral, este consumo decresceu no decénio indicado, mas continua a ser elevado. 

O estudo aponta também várias medidas com o fim de restringir o consumo de antibióticos em Portugal, sugerindo mesmo que os médicos só possam prescrever este tipo de medicamentos após terem identificado as causas da infeção.

Aranda da Silva refere que houve “uma melhoria na situação nos últimos anos”, mas que o consumo de antibióticos em Portugal continua a ser superior ao de muitos países europeus.
Mais com menos
Na comparação de Portugal com os 15 países que integravam a União Europeia antes do alargamento de 2004, os autores deste estudo consideram que o peso da despesa total em saúde no Produto Interno Bruto (PIB) não é significativamente divergente, sendo a despesa per capita em saúde, em Portugal, muito mais baixa”.

Ainda assim, o estudo conflui que o sistema de saúde português “é eficiente” e que o Sistema Nacional de Saúde faz mais com menos dinheiro, por comparação a outros países da União Europeia. 

"Paralelamente, os indicadores de saúde escolhidos assumem valores similares aos da média dos países da UE15, tendo a mortalidade evitável vindo a convergir para esta média e assumindo a taxa de mortalidade infantil valores inferiores à média", lê-se no documento.

Os autores do estudo referem que, como "o financiamento público é muito menor", caberá "uma responsabilidade acrescida à despesa privada, em especial aos pagamentos diretos".
"Se este fenómeno causa problemas em termos de eficiência -- dívida elevada do SNS e adiamento do consumo por parte de uma parcela significativa dos doentes, levando ao aumento da despesa a prazo - também induz efeitos nefastos sobre a equidade”, refere o documento.  
 
Neste contexto, o peso dos gastos privados é o principal fator de agravamento da desigualdade que, por sua vez, "afeta negativamente a saúde".

"No médio-longo prazo este problema pode agravar-se muito", alerta o relatório, explicando que "a pressão exercida sobretudo pelo desenvolvimento tecnológico levará, muito provavelmente, ao aumento acentuado da despesa, o que exigirá a discussão aprofundada das opções para o crescimento do financiamento do sistema".

O OPSS indica que, "apontando-se como ineficiente e inequitativo o aumento dos gastos diretos, uma alternativa é a limitação do SNS à oferta de um pacote de cuidados". 
Profissionais “desiludidos”
Na análise à política e governação da saúde, os autores consideram que, "para pouco mais de um ano de Governo, se regista um significativo nível de concretização das medidas inscritas no programa do Governo".

Entre estas contam-se "as alterações introduzidas nas taxas moderadoras e as dirigidas a grupos de pessoas com maior vulnerabilidade, bem como o anúncio de medidas e de ações dirigidas a uma maior equidade de respostas nos diferentes Agrupamentos de Centros de Saúde quanto à saúde oral, psicologia e saúde mental e nutrição", lê-se no documento.

São medidas “indiciadoras de uma nova visão e atitude política no sentido de atenuar barreiras de índole social, económico e cultural”, sendo no entanto ainda “pontuais” e “relativamente simbólicas”. 

No que diz respeito aos profissionais do SNS, o relatório de Primavera salienta que a restrição nas admissões é o “maior problema” com que o sistema esta confrontado. Os autores começam por apontar que se esperava do atual Governo “um sinal claro e inequívoco de reconhecimento aos profissionais”, facto que, aponta o estudo, “não se observou até ao momento”. 

"Menos profissionais que o recomendado implica menor disponibilidade para praticar atos técnicos de saúde que, consequentemente, se traduzirão em maior morbilidade, mortalidade, reinternamentos, aumento da taxa de infeção, maiores tempos de espera e de listas de espera", prossegue. 

Apesar de reconhecer um esforço para reverter esta situação durante o ano de 2016, sobretudo na admissão de novos profissionais, na reposição de rendimentos e na eliminação da sobretaxa para rendimentos mais baixos, a situação de congelamento e não-regulamentação das carreiras continua. 

Estas circunstâncias aumentam “progressivamente o descontentamento e desilusão com o sistema”, sublinham os autores do documento.

O relatório refere que estes “são fatores de desmotivação e mesmo de acréscimo de dificuldades na gestão dos recursos disponíveis”, nomeadamente no que respeita a assegurar serviços por turnos ou visitação domiciliária, por exemplo.

"Não há SNS renovado e melhorias nos cuidados sem a colaboração dos seus recursos humanos que se querem motivados, com competências adequadas e em número suficiente", pode ler-se no documento. 

c/ Lusa
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