"Também somos Almada". Moradores do bairro da Penajóia escrevem carta à Câmara Municipal

Os moradores da Penajóia escreveram à Câmara Municipal de Almada. É um lembrete sobre o direito a uma vida digna, uma resposta à carta que a autarquia enviou, na semana passada, ao Governo e ao IHRU. 

Oriana Barcelos - Antena 1 /
Oriana Barcelos - Antena 1

O dia começa cedo na Penajóia. Ainda o sol dorme e já há gente na rua - pés a caminho dos transportes, da escola, do trabalho. Há que andar com cuidado: não há luz, nem no bairro, nem das imediações, e é preciso fintar os buracos nas vielas de terra que circundam as casas. 

Esvarena de Sousa recebe-nos numa dessas habitações. É uma casa pequena, parecida com as da vizinhança: blocos de cimento sobre blocos de cimento - muitas vezes sem revestimento; tetos baixos, cobertos com placa. Lá dentro o chão é de azulejos brancos. Há um sofá, uma televisão, um frigorífico, um aquecedor para o inverno. 

"É o pior. Sinto muito frio", lamenta Esvarena de Sousa, angolana que vive na Penajóia desde 2022. Veio para Portugal em 2019 e instalou-se no bairro depois de passar por vários quartos em casas partilhadas, onde teve más experiências, e onde pagava valores que variavam entre os 350 e os 600 euros - valores, diz, difíceis de pagar para quem recebe o salário mínimo. 

"Vi que aqui podia organizar o meu canto, podia ter mais privacidade, podia viver não propriamente com dignidade, mas do meu ponto de vista sim, porque era o meu canto", afirmou.

É a Comissão de Moradores do Bairro da Penajóia que faz a ponte com as entidades que têm responsabilidade sobre o território: o Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana e a Câmara Municipal de Almada. Nos últimos tempos, conta Esvarena de Sousa, não tem havido contactos nem com um, nem com outro. 

Também por isso, os moradores da Penajóia decidiram mandar uma carta à autarquia - uma missiva que fala sobre o direito à habitação digna. É um lembrete, mas também uma resposta à carta que a Câmara enviou ao Governo e ao Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana. 

Nessa carta - assinada, também, por 200 moradores dos bairros vizinhos, e pelas Juntas de Freguesia de Almada, Cova da Piedade, Pragal e Cacilhas, e da Caparica e Trafaria - a Câmara pede soluções urgentes para o bairro. Quem ali vive, concorda: é preciso fazer mais pela Penajóia. 

"Nós precisamos de um teto seguro, precisamos de energia pública, precisamos de correios, precisamos de água potável e o direito de viver com dignidade. Somos milhares de pessoas e ninguém escolheu estar aqui, fomos empurrados pela vida, forçados por rendas impossíveis, despejados por senhorios sem escrúpulos, sem que o Estado português nos oferecesse uma alternativa humana", lê-se no texto, a que a Antena 1 teve acesso.

Em troca, os moradores da Penajóia prometem colaborar, até porque percebem que a situação, no bairro, está a ficar descontrolada. A última contagem dava conta de cerca de 300 casas, mas agora já serão quase mil.
Casas precárias. Na Penajóia não há luz, nem água ou esgotos

São mil habitações sem luz, sem água, sem esgotos, que albergam famílias inteiras, oriundas sobretudo de países africanos de língua portuguesa. No bairro convivem cabo-verdianos, angolanos, guineenses, mas também há brasileiros e portugueses.

Lá dentro, a comunidade tenta fazer da Penajóia um lugar onde se possa viver: há cafés, salões de cabeleireiro, barbeiros. Mas falta o básico. A água vem da fonte, ou em garrafões, e a luz chega através de puxadas, que são visíveis nos postes de eletricidade. Os moradores pedem que esses serviços sejam estendidos ao bairro. 

"Nós pedimos à Câmara, ao IHRU, que coloquem aqui luz para nós pagarmos, que coloquem água para nós pagarmos, que nos coloquem aqui infraestruturas. Em vez de pensarem que a solução é eliminar o bairro da Penajóia ou demolir o bairro da Penajóia, pensem em melhorar as infraestruturas, o aspeto do bairro, até terem condições de nos tirarem daqui", avança Esvarena de Sousa.
Falta de luz. Puxadas de eletricidade são visíveis nos postes de luz

Os moradores pedem, no fundo, para serem vistos. "O bairro já existe, o bairro já é conhecido. Dizer que vão vir partir não vai resolver. A solução é dar uma resposta ao bairro e não fingir, não alimentar a esperança de que o bairro vai ser eliminado. Eles também não têm capacidade para tirar as pessoas daqui em tão curto prazo", refere a vice-presidente da Comissão de Moradores do Bairro da Penajóia. É que, segundo os moradores, não há alternativas. Por isso, viver no bairro é viver sempre sob ameaça: um dia a casa precária, a casa possível, pode já não existir.
 
Gosta de estar no bairro; gosta do sentido de comunidade e de partilha que ali se vivem. "Sinto-me segura. Se chego tarde e não consigo cozinhar, como na casa da vizinha. 'Estás aí? Cozinhaste o quê? Estou a chegar para jantar'. Sem aviso prévio!", descreve. Retribui na Comissão de Moradores, de que é vice-presidente.
Câmara de Almada sem respostas
À carta que a Câmara Municipal de Almada enviou na semana passada, ao IHRU e ao Governo, seguiu-se o silêncio. A autarca Inês de Almeida garante que não recebeu qualquer resposta e lamenta que nada aconteça no território. Não há, sequer, sublinha, um levantamento oficial do número de casas que existem no território. 

"Não basta dizer que vão fazer ou que estão a fazer. Nós estamos no terreno e no terreno sabemos - e a carta dos moradores de Penajóia vem comprovar - que esse levantamento não está a ser feito", explicou.

A presidente da Câmara Municipal de Almada classifica a situação como sendo "kafkiana" - o processo do bairro da Penajóia é um processo sem fim. E é mais, diz Inês de Medeiros: é a consequência da inação do Estado central.

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