Visita do Papa: uma mensagem pela justiça, pela liberdade e pela paz

por Rosário Lira - RTP
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Numa entrevista à RTP, D. Carlos Azevedo, bispo delegado do Conselho Pontifício da Cultura Vaticana, considera que a vinda a Portugal do Papa Francisco "não está nas prioridades pastorais e estratégicas. Apenas por se tratar de Fátima se justifica esta deslocação".

Autor do livro, "Fátima: das visões dos pastorinhos à visão cristã", D. Carlos Azevedo considera que "ainda que parcialmente realizadas, as profecias de Fátima permanecem abertas, no jogo permanente entre a ação de Deus e a responsabilidade do ser humano, até à realização da salvação definitiva".

Qual a ligação do papa Francisco a Fátima?

O Papa Francisco, marcado por profunda e afetiva devoção mariana, não tem passagem pessoal pelo Santuário. Será um primeiro contacto. Como arcebispo de Buenos Aires recebeu a imagem peregrina da Senhora de Fátima em 1992, o que recordou no seu primeiro ângelus de 17 de março de 2013. Não esqueçamos que pediu aos bispos portugueses para consagrar o seu pontificado a Santa Maria, o que foi feito a 13 de maio de 2013. Como Papa, no ano jubilar quis a presença da imagem da Senhora de Fátima na Praça de São Pedro no dia 13 de Outubro de 2013 e fez uma oração de consagração, sem especial ligação com temáticas da mensagem de Fátima. No entanto, por várias vezes tem feito alusões às visões marianas da Cova da Iria, já com linguagem especificamente unida a Fátima.

Por comparação com Papas anteriores onde estão as diferenças?

Desde Pio XII que todos os papas captaram, a seu modo e no seu contexto, a singularidade das visões da Cova da Iria. Certamente que não será necessário destacar São João Paulo II porque todos conhecem as razões que o uniram de modo único ao Santuário de Fátima. O conhecimento da última parte do segredo e a sua excelente interpretação fizeram de Bento XVI determinante para definir um olhar abrangente e profético das visões dos pastorinhos. Papa Francisco tem uma natural capacidade para se identificar com o sentir religioso das comunidades cristãs, sem racionalismos altivos, nem devocionismos beatos. A sua expressão de autêntica religiosidade conjuga-se com um olhar muito atento e crítico sobre os dramas da humanidade atual. Situa-se, talvez melhor que ninguém, entre a vivência individual da experiência da fé e as implicações políticas e sociais do seguimento de Jesus na transformação da família humana.

Cada gesto ou visita deste Papa tem um propósito uma intenção. Do seu ponto de vista qual é o objetivo desta visita a Fátima?

Certamente que a presença do Papa Francisco no centenário de um dos factos históricos de maior relevância espiritual do século XX por si é obrigatória. O Papa Francisco conhece o valor dos símbolos e a importância de lugares de referência espiritual para o mundo confuso do século XXI. O Papa, tanto quanto consigo entrar no seu mundo interior, vem a Fátima para convocar a devoção à ação. Vem para entregar a Deus, misericordioso e maternal, por Maria, a humanidade atribulada e implorar a paz e a comunhão da família humana na responsabilidade por um mundo novo, solidário e justo, respeitador da natureza e convocado para um novo estilo de vida.

É por isso que a visita se limita a Fátima?

Na economia de tempo que norteia as opções da Sé Apostólica e do papa Francisco, a vinda a Portugal não está nas prioridades pastorais e estratégicas. Apenas por se tratar de Fátima se justifica esta deslocação. Por esse motivo, apesar das várias insistências para um alargamento a outras dioceses, a visita se manteve circunscrita ao Santuário. Talvez possa haver surpresa de algum gesto que constitua a marca da atenção aos mais pobres.

A mensagem à data é cada vez mais atual? É também por isso que o Papa aqui vem?

Os responsáveis das comunidades cristãs têm a tarefa de perceber as devoções do povo cristão como modo simples de encarnar a mensagem e abrir estas práticas à globalidade da Revelação e à comunhão eclesial. Estudo e defendo isso em livro que publico estes dias: Fátima: das visões dos pastorinhos à visão cristã (Lisboa: A Esfera dos Livros,2017). Importa dar resposta às situações históricas vividas pelas pessoas, individualmente mendigas de sinais de Deus, que no seu itinerário por Fátima recarregam a sua vida de sentido e iluminam os seus passos mergulhadas em sucessivas crises e dificuldades. O respeito pela energia da fé dos peregrinos constitui o primeiro passo para lançar a proposta de um humanismo plenamente humano.

Mas repare na atualidade: cresce a incerteza sobre o futuro do ser humano; fervilha uma desconfiança motivada pelos desastres éticos sucessivos nos campos económicos e financeiros, políticos e desportivos; os populismos chegam ao cume nos atuais impérios; a ausência de forte

liderança humanista em tantos países os deixa à mercê de jogos de interesses e de violentos grupos fundamentalistas; imprevisíveis movimentos migratórios abrem um multiculturalismo em tensão com identidades perdidas; o fator religioso, debilitado no ocidente cristão está vigoroso num Islão intolerante. Fátima emerge como mensagem plena de atualidade.

A visão verdadeiramente cristã, na sequela de Jesus, não pode manipular Deus mas buscar sempre deixar brilhar a sua luz, em contínua purificação. Acolhendo a força simbólica contida nas narrações originárias de Fátima, a Igreja Católica obriga-se a atualizá-las e reinterpretá-las para ser fiel ao mistério de Deus revelado em Cristo, a quem sim importa ser fiel na linguagem de cada tempo. O santuário é uma porta aberta para a educação da fé, centrada num acontecimento pessoal que responsabiliza e compromete.

Há um apelo à liberdade e à responsabilidade dos atos de cada um?


Exatamente. A mensagem de Fátima é uma interpelação e uma consolação para a realidade presente, desperta cada consciência para transformar a vida a partir do interior. As visões interpelam a liberdade para que os cenários previstos como ameaçadores não tenham lugar.

Ainda que parcialmente realizadas, as profecias de Fátima permanecem abertas, no jogo permanente entre a ação de Deus e a responsabilidade do ser humano, até à realização da salvação definitiva.

Apela-se à liberdade humana para recuperar a direção da graça, confiar em Deus, entregar-se de forma penitencial e reparadora, participando do amor divino, que impulsiona a não permitir o aumentar da destruição e da perseguição.

Isto exige atenção permanente aos sinais, para perceber que estilos de vida conduzem a desgraçada Babilónia ou contrariamente à beleza e harmonia de Jerusalém. A simbologia destas duas cidades constitui duas dimensões que persistem no mesmo lugar, dentro do coração humano e no seio da sociedade. Dai a atenção e o discernimento requeridos.

Fátima ajuda a estabelecer um tecido de ligações que permite interpretar e julgar evangelicamente a história. Ajuda a colocar o presente à luz do destino último do mundo, na perspetiva do reino que vem. Dessa análise resulta um mecanismo de conversão que direcione a vida na correspondência à construção de um mundo novo, com a urgência de quem lê a realidade à luz da Palavra de Deus. Orienta a vida pessoal e coletiva para metas autênticas, de amor e misericórdia, de paz resistente e de forte libertação do mal.

De certa forma é uma mensagem revolucionária?


Não duvido. A Igreja e a sociedade são interpeladas à conversão, a rever os seus estilos de presença no meio do povo e da história. A Igreja é convocada para saborear o gosto de Deus, como Francisco, exercitar a interioridade pela dimensão contemplativa e mística da fé e deste modo resistir e vencer a crise de Deus na cultura contemporânea. A sua confiança absoluta em Deus conduz necessariamente a uma vivência pobre e próxima dos pobres e não se coaduna com uma administração capitalista dos seus bens. As visões são aviso para purificar e fortalecer o caminho evangélico profundamente revolucionário, oposto ao discurso mole, cinzento, justificativo e sobretudo erguem-se como incentivo para uma operacionalidade coerente.

Qual espera que seja a mensagem do Papa em Fátima?

Sabemos como é imprevisível. Mas arrisco que dada a sensibilidade do Papa Francisco, consciente das dramáticas consequências de comportamentos destrutivos e impeditivos dos novos céus e da nova terra, oferecerá um discernimento do bem comum da humanidade, desejo da Mãe de Jesus. Recordará, como já fez em Roma, a predileção de Maria “pelos pequenos e pobres, pelos excluídos e sofredores, pelos pecadores e os de coração transviado”. Poderá renovar apelos a renunciar à guerra e à violência, como atitude fundamental em situação de crise, sublinhará a importância de abrir as mãos para oferecer reparo e reparação e fazer resplandecer a bondade de Deus na luta pela justiça, pela liberdade, pela paz.

Que significado tem para si Fátima?

Nunca fui a Fátima a pé. Fui educado a manter distância crítica, mas acompanhei peregrinações como pároco e pessoalmente sinto-o como um lugar de serenidade e consolação, de incentivo à renovação espiritual e ao compromisso para transformar a história. Fátima foi predominantemente para mim objeto de estudo, dez anos como Presidente do Comissão que produziu a edição crítica da Documentação de Fátima, hoje completa em 14 volumes e fundamental para estudar e interpretar as visões ocorridas. Dirigi com o P. Luciano Cristino, profundo e minucioso conhecedor da história da Cova da Iria e da diocese de Leiria, uma Enciclopédia de Fátima publicada em 2007, e com tradução em Italiano.

Espera que seja anunciada a canonização de Jacinta e Francisco?

Atendendo às notícias publicadas e aos passos já percorridos apenas falta a data para a canonização, que os cardeais marcarão no Consistório de 20 de Abril.
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