"Crispação" entre São Bento e Belém marca debate

Os domínios da economia, da energia e do ambiente formavam a agenda delineada pelo PS para o debate quinzenal desta terça-feira no Parlamento, mas a Oposição aproveitou o ensejo para questionar a linha orçamental do Executivo e afastar a ideia da falta de condições de governabilidade. A "crispação política" entre José Sócrates e Cavaco Silva acabou por marcar o debate.

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Referindo-se ao Presidente da República, o primeiro-ministro afirmou que "ninguém está acima da crítica" André Kosters, Lusa

O momento de "crispação política" vivido nas relações entre o gabinete do primeiro-ministro e o Palácio de Belém, com "fontes das mais altas instituições a falar em intriga", ganhou relevo no debate com a intervenção de Francisco Louçã. Mas foi introduzido pela bancada do CDS-PP.

O coordenador do Bloco de Esquerda confrontou José Sócrates com "a opinião de dirigentes do PS", entre os quais o vice-presidente da bancada socialista Sérgio Sousa Pinto, de que o Presidente da República protagonizou uma "intromissão na agenda do Governo", ao afirmar-se mais preocupado com o emprego do que com a proposta de legalização dos casamentos homossexuais. Referindo-se a Cavaco Silva, José Sócrates afirmou que "ninguém está acima da crítica", acrescentando que "confundir o debate político com conflito institucional ou desrespeito é um pobre entendimento da nossa democracia".

"Eu próprio já tenho discordado do Presidente da República e isso não levou a nenhuma dramatização", reforçou o primeiro-ministro, que recorreu à ironia para dizer que Francisco Louçã mostrou zelo em "ser porta-voz do Presidente na Assembleia da República": "Há algumas semanas talvez tivesse feito falta, porque parece que ele não tinha porta-voz".

Combate ao desemprego é "tarefa de todos os dias"

Sócrates afirmou ainda não perceber como é que a aprovação de uma lei para a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo pode "pôr em causa o combate ao desemprego, uma tarefa de todos os dias". Mais tarde, à saída do hemiciclo, voltaria à carga para propugnar que "o facto de termos uma lei sobre casamentos homossexuais não nos desvia daquilo que são as nossas prioridades, que são a recuperação económica e combate ao desemprego": "Este é o momento para a sociedade portuguesa perceber que nenhum de nós perderá se os homossexuais se puderem casar, porque isso significará apenas dar a mão a essas pessoas e todos ficaremos melhor com a felicidade dessas pessoas. Isso não significa dividir ninguém e não é esse o objectivo desta lei".

Na réplica, Francisco Louçã registou que o Governo "manda dizer que as declarações do Presidente põem em causa a estabilidade política". Contudo, perante o Parlamento, José Sócrates "não diz nem desdiz". "Tem de se acabar com esta tragicomédia sobre as condições de governabilidade", rematou o dirigente do Bloco.

Antes da intervenção de Louçã, o líder dos populares havia já acusado o primeiro-ministro de "dizer mal" do Presidente da República.

"Se há seis meses o Presidente promulgasse uma lei da Assembleia da República, era um herói, se vetasse era dissidente. Seis meses volvidos, se promulgar uma lei da Assembleia não é patriota, se vetar uma lei da Assembleia da República já é fixe", ironizou Paulo Portas. Ao que José Sócrates respondeu com o argumento de que se limita "a criticar linhas políticas".

"O primeiro-ministro não mencionou nem sufragou os ataques ao Presidente da República", notou o presidente do CDS-PP.

"Acabar com impostos não seria boa política"

O Orçamento do Estado para 2010 "não retirará os estímulos à economia", mas também não vai pôr "em causa" o "bem inestimável" das "contas públicas em condições de rapidamente retomarem o seu equilíbrio". Foi a coberto desta premissa que o primeiro-ministro descartou quaisquer cortes na carga fiscal, ao abrir o último debate quinzenal de 2009 na Assembleia da República.

O país, advogou José Sócrates, "aumentou o seu défice como devia para combater a crise económica e aumentou menos o défice do que outras economias europeias". "Mas não podemos ir mais além", reiterou o primeiro-ministro, para quem "reduzir ou acabar com impostos não seria boa política económica": "A boa política económica é irmos até onde podemos ir".

Sócrates repetiu, em seguida, que o Governo "está disposto a uma negociação responsável" com as forças políticas da Oposição. Para logo insistir em acusar os partidos à esquerda e à direita dos socialistas de quererem fazer passar um orçamento paralelo com luz verde a reduções de impostos.

"Mas não podemos admitir que Portugal esteja numa situação tão exigente e haja dois orçamentos, um aprovado pela Oposição, eliminando impostos e dando mostras de grande irresponsabilidade orçamental, e outro aprovado pelo Governo. Tenho a certeza de que todos entenderam o que o Governo disse, tenho a certeza de que todos entenderam a delicadeza desta situação e tenho a certeza de que todas as forças da Oposição vão responder com responsabilidade", reforçou.

O preâmbulo da intervenção de José Sócrates ficou a cargo do líder parlamentar do PS. Francisco Assis sustentou que as opções do Executivo para o Orçamento do Estado têm por base "uma política expansionista, mas com sentido de responsabilidade para não colocar em causa as finanças públicas". E deixou um repto à Oposição: "Apelo às restantes bancadas para que haja disponibilidade para um diálogo sério dentro destas linhas de orientação. Queremos que a partir do Parlamento se construa uma maioria positiva".

Portugal "está a perder independência económica"

No momento de questionar as linhas de orientação do Governo, a presidente do PSD, Manuela Ferreira Leite, referiu-se a José Sócrates como um primeiro-ministro que "anuncia medidas, anuncia investimentos e anuncia progresso" sem tocar no "problema do endividamento do país": "É esse o problema mais grave que nós neste momento enfrentamos".

Ferreira Leite sublinhou que o endividamento é um problema transversal ao Estado, às empresas públicas, às empresas privadas e aos respectivos accionistas. As empresas, frisou, "estão a vender os seus activos, ou seja, estamos a perder a nossa independência económica". A líder social-democrata aludiu, depois, ao projecto da alta velocidade ferroviária, afirmando que "aquilo que está num comboio de alta velocidade é o país, que há muito tempo saltou dos carris e avança sem travões".

Manuela Ferreira Leite quis então saber "onde é que [o Governo] vai buscar dinheiro e a que preço" para os grandes investimentos públicos. "Onde é que as empresas vão buscar dinheiro e a que preço, se o crédito é escasso e está a ser desviado?", perguntou.

Sócrates responderia com o argumento de que o endividamento do país é "um mal crónico" com "muitas décadas": "Eu não sei se a senhora deputada é capaz de fazer a relação entre endividamento do país e aquilo que é a nossa equação energética. Mais de metade do nosso défice anual diz respeito à nossa dependência do petróleo e é por isso que tenho insistido tanto com a questão da energia".

"A primeira coisa que o seu partido faz nesta Assembleia da República é eliminar impostos, aumentar a despesa fiscal e contribuir para aumentar o défice. Onde é que está a sua coerência?", devolveu o primeiro-ministro.

"Interferência do Governo no BCP"

A presidente do PSD instou ainda o Governo socialista a resolver o problema dos "depositantes de retorno absoluto" do Banco Privado Português (BPP).

"Eu vi o Governo muito lesto, muito lesto, a intervir no BCP e vejo-o de braços cruzados a intervir no BPP. Sim, senhor ministro das Finanças, mas alguém neste país nega a interferência do Governo no BCP?", lançou Ferreira Leite.

"O Governo nunca fez qualquer tipo de intervenção no BCP, que nada tem a ver com isso. E a senhora deputada, ao levantar essa insinuação, apenas faz jus a uma carreira baseada nisso, baseada na acusação, no ataque pessoal e na insinuação", retorquiu Sócrates.

Sócrates sem razões "para se fazer de vítima"

À direita, o presidente do CDS-PP atacou os argumentos evocados pelo primeiro-ministro para agitar a ameaça de um país ingovernável com "dois orçamentos". Depois de lembrar que o Governo de José Sócrates deixou de dispor de uma maioria absoluta no Parlamento, Paulo Portas acusou o primeiro-ministro de se dedicar a "chamar nomes aos partidos com os quais tem que chegar a um entendimento".

"Está à procura de um pretexto para não governar? Para precipitar uma crise política?", perguntou Portas.

"Não está na minha natureza fazer-me de vítima nem procurar nenhum pretexto. O que é visível é que não é possível efectuar uma governação num momento tão delicado como o que vivemos quando a Oposição faz entendimentos entre si, recusando dialogar com o PS com o objectivo de obter popularidade fácil, eliminar impostos e fazer com que as contas públicas estejam numa situação de ameaça", respondeu Sócrates.

O chefe do Executivo voltou a garantir que os socialistas têm "disponibilidade para governar, mas não para governar com irresponsabilidade", criticando a Oposição por ter aprovado o fim do pagamento especial por conta com reflexos na diminuição da receita. Portas assinalou, então, que as propostas foram aprovadas na generalidade. Na especialidade, advogou, poderão ser debatidas "em paralelo" com a proposta de Orçamento do Estado para 2010.

CIMPOR com Portugal "como centro"

O secretário-geral do PCP instou, por sua vez, o primeiro-ministro a pronunciar-se sobre a OPA lançada pela empresa brasileira CSN sobre a CIMPOR, perguntando se a cimenteira vai continuar a ter Portugal "como centro". A "questão de fundo", sustentou Jerónimo de Sousa, é saber se a Caixa Geral de Depósitos (CGD), detentora de 25 por cento da CIMPOR, "deve ou não ser o veículo para que se mantenha esta empresa estratégica", ou se o Governo "vai permitir que o centro de decisão emigre e os lucros também".

José Sócrates respondeu com a garantia de que "o resultado final da actuação da CGD será no sentido de defender o que se considerar melhor para a empresa": "Claro está que os restantes accionistas são livres de decidir, porque isso é o jogo do mercado que o senhor deputado não aceita, mas que eu aceito".

O Governo, prosseguiu Sócrates, está preocupado "não tanto com as participações financeiras, se ganha ou não dinheiro neste ou naquele momento, mas principalmente com o futuro da empresa, a sua estabilidade accionista e o emprego e o contributo que irá dar para a economia nacional".

Jerónimo de Sousa concluiu, então, que o primeiro-ministro "não deu nenhuma garantia em relação à defesa do interesse nacional quanto à CIMPOR".

Também Francisco Louçã questionou o primeiro-ministro sobre a operação lançada pela CSN, instando José Sócrates a esclarecer os seus alegados contactos com o presidente da empresa brasileira, Benjamin Steinbruch.

"Essa OPA realizada numa empresa brasileira junto da Cimpor não tem o apoio do Governo", asseverou Sócrates.

"Eu falei uma vez com esse empresário que é referido, nunca lhe telefonei, e falei, aliás, na presença dele e de Lula da Silva numa altura em que a empresa desse empresário tinha um projecto de investimento no nosso país na siderurgia nacional e eu, cumprindo as orientações que me deram da AICEP, tentei convencer esse empresário a realizar esse investimento. Fi-lo em nome da economia portuguesa e em nome do emprego em Portugal", concluiu.

Oposição "também é a Assembleia da República"

Depois de sublinhar que "a Oposição também é a Assembleia da República", a deputada do Partido Ecologista "Os Verdes" Heloísa Apolónia quis ouvir as explicações do primeiro-ministro sobre o fundo português de carbono, cujas verbas, afiançou, estão a ser utilizadas para "comprar créditos de emissão lá fora" e "pagar a incompetência do Governo".

"Vamos cumprir as metas porque andamos administrativamente a cumpri-las", lançou a deputada do PEV.

Retomando a bandeira das energias renováveis, José Sócrates destacou o 12.º lugar de Portugal numa lista de 57 países, citando o que disse serem exemplos de "liderança no domínio da energia": a mobilidade eléctrica, o "investimento na energia hídrica", a "primeira fábrica de baterias para carros eléctricos" e a "primeira rede de abastecimento do carro eléctrico integrada".

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