Entrevista. A revolução portuguesa vista a partir da Embaixada alemã

por António Louçã, Nuno Patrício
DR

Hans-Ulrich Bünger era responsável pelo trabalho da Fundação Friedrich Ebert na América Latina, quando lhe propuseram que viesse, como adido social, para a Embaixada da República Federal da Alemanha em Lisboa. Dos cinco anos que permaneceu na capital portuguesa, cinco meses foram ainda vividos em revolução. À RTP falou das suas memórias desse tempo.

Hans-Ulrich Bünger recorda que a decisão de lhe propor o lugar na Embaixada de Lisboa partiu do SPD, em diálogo com a central sindical DGB. O posto de "adido social" [Sozialattaché], que não existe na diplomacia portuguesa, é também uma relativa raridade nas Embaixadas alemãs. Ao todo, haverá uma vintena e dessa cifra metade é preenchida por indicação da central sindical. Foi o caso de Bünger.

Quanto à natureza do trabalho a realizar, ele incluía o contacto com centrais sindicais, com associações patronais e naturalmente com o PS, como partido português mais próximo do SPD.

Os contactos a realizar tinham de decorrer inicialmente numa mistura de espanhol, que Bünger falava fluentemente, e de português, que ainda não dominava. Mas, até se adaptar ao novo idioma, recorda a tolerância dos interlocutores portugueses com esse "portunnhol".

E recorda também os encantos da gastronomia portuguesa que, em contactos muitas vezes feitos ao almoço, fizeram que passasse dos seus 75 quilos à chegada a Portugal para os 90 quilos que pesava à partida, cinco anos depois ... 
O embaixador que Bünger veio encontrar em Lisboa foi Fritz Caspari, um outsider relativamente à carreira diplomática. Sendo uma pessoa de formação conservadora, tinha abertura para propostas ou concepções vindas da área do SPD, o que leva Bünger a considerá-lo como uma boa escolha para a Embaixada de Lisboa em tempos de convulsão revolucionária.

Havia até ao 11 de março de 1975 um défice no relacionamento da Embaixada com forças políticas à esquerda e o preenchimento dessa lacuna coube ao "Sozialattaché". Este foi, por isso, inicialmente recebido com certa reserva pelo pessoal da Embaixada, como se a sua vinda desautorizasse o trabalho feito até aí. Mas, logo que a sua actividade se mostrou útil a um maior enraizamento da Embaixada em meios político-partidários que até aí lhe eram pouco acessíveis, a reserva dissipou-se.
Além dos contactos à esquerda, Bünger teve contactos com o PPD, que disputava ao PS o lugar de interlocutor português do SPD e da Segunda Internacional. Teve-os, naturalmente, com Sá Carneiro, mas também com Rui Machete e Sousa Franco, num contexto em que havia vozes na social-democracia alemã que consideravam Mário Soares "demasiado radical" e não escondiam a sua preferência por um diálogo prioritário com o PPD. Mas Bünger sempre considerou o PPD como um partido mais burguês e pouco ligado ao meio operário.

Além destes contactos, o nosso entrevistado recorda também os que teve com Carlos Brito, do PCP, ou com Amaro da Costa e Ribeiro e Castro, do CDS.

De Mário Soares, recorda o seu protagonismo no PS e a sua tendência para se fazer rodear por yes men, como frequentemente acontece com figuras políticas destacadas. O relacionamento mais próximo e mais amistoso que Bünger teve no PS foi com Salgado Zenha, depois incompatibilizado com Soares, e manteve-se até à morte de Zenha.
No que diz respeito ao contacto que teve com Willy Brandt, recorda-o como alguém parco em comentários sobre a realidade portuguesa e geralmente ouvinte atento do que lhe era relatado, mas deixando transparecer algum desagrado pelo ambiente de confrontação que se vivia em Portugal.

Brandt manifestara também muito interesse na notícia de que o líder comunista espanhol, Santiago Carrillo, poderia vir ao Congresso do PS, pelas perspectivas que abria para o futuro, num tempo em que o fenómeno eurocomunista era ainda incipiente.

Pessoalmente, Bünger recorda como muito tocante a experiência que teve, como cicerone de Willy Brandt e de Olof Palme pelas ruas de Lisboa, aquando de uma visita destes.
A pouca atenção que até ao 25 de Abril era prestada a Portugal pela imprensa alemã traduzia-se na instalação de delegações de quase todos os jornais de referência em Madrid, mas não em Lisboa. A cobertura do que sucedia em Portugal era feita a partir da capital espanhola e, com o início da revolução, houve uma natural tendência para os correspondentes em Madrid passarem a vir mais vezes e a permanecer mais tempo em Portugal.

Walter Haubrich, do Frankfurter Allgemeine Zeitung, foi um dos correspondentes em Madrid que acompanharam assiduamente a situação em Portugal, mas em 1977 o jornal colocou em Lisboa um jornalista residente, Klaus Genrich, que ao regressar a Bona viria a privar com Helmut Kohl e a exercer uma influência considerável na orientação daquele diário de referência.

Sem o mesmo carácter de permanência, teve também importância uma visita de Hans-Ulrich Kempski, do Süddeutsche Zeitung, um dos mais destacados jornalistas alemães para reportagens internacionais.
Bünger chegou a Portugal em fins de junho de 1975, em plena crise do "Caso República". Recorda a tese de Mário Soares de que o PCP estaria por trás do movimento de trabalhadores que queriam ocupar o jornal e o agravamento da crise que em breve iria conduzir à ruptura do PS com o IV Governo Provisório.

Um episódio revelador da tensão existente ocorreu logo num dos primeiros encontros de Bünger com Soares, na Rua da Emenda. O secretário-geral do PS insistiu em que a conversa tivesse lugar na varanda, por recear que houvesse escutas na sede do partido.

Bünger mostra-se prudente em reiterar, a esta distância, a convicção corrente na altura sobre a inspiração comunista dos ocupantes do jornal. Recorda, pelo contrário, que foram forças mais à esquerda que protagonizaram a ocupação, e considera difícil de dizer se essas forças foram de algum modo orquestradas pelo PCP.

Segundo uma recente investigação de Antonio Muñoz Sánchez, na noite em que o PS anunciou a sua saída do Governo Soares ligou para Bünger pedindo-lhe uma reunião urgente e essa reunião teve lugar logo na manhã seguinte, na presença do secretário de Estado alemão para a Cooperação Económica, Karl-Heinz Sohn. O ambiente da reunião foi de "alarme", mas dela não ficou registo escrito, porque as anotações de Bünger foram depois destruídas na Embaixada.

Em todo o caso, o nosso entrevistado recorda que dirigentes socialistas como Soares e Zenha admitiam a eventualidade de serem presos e tomavam precauções, organizando casas clandestinas para esse cenário que hoje pode parecer fruto de uma avaliação exagerada.
Havia em Portugal uma politização sem paralelo em qualquer outro país, e tinha como reverso mais "desagradável" o ambiente de confrontação.

Para Hans-Ulrich Bünger, a situação derrapou depois demasiado para a direita, e a actual fórmula governativa, com um envolvimento da esquerda na área do poder é algo que considera, agora, francamente positivo.

A ulterior evolução política de Bünger não terá sido completamente alheia à experiência que viveu em Portugal. Na Alemanha, aquando da deriva direitista do Governo Federal SPD-Verdes, acompanhou Oskar Lafontaine na ruptura e no processo que conduziu ao actual Partido da Esquerda (Die Linke). De certo modo, a ruptura com a social-democracia organizada fundamenta-se para Bünger numa fidelidade à tradição social-democrata e na constatação de que a política da Agenda 2010 colocou o SPD contra os trabalhadores e do lado do patronato.






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