Crise académica de 1962 DR

Jorge Sampaio. O despertar político e o serviço até ao fim da vida

A política não foi o destino desde sempre traçado, mas um percurso que foi trilhando aos poucos. Na infância, adolescência e juventude, o contexto nacional e académico acabaram por apontar para um destino que se pautou, no início, pela luta contra o Estado Novo. Desde logo no protagonismo assumido pelo futuro Presidente da República na crise académica de 1962 e anos depois, como advogado de presos políticos. A luta pela liberdade e pela justiça continuaram a orientar vida de Jorge Sampaio mesmo depois de abandonar Belém, em 2006, nomeadamente em temáticas como a saúde, educação ou as migrações.

“O Jorge é um político desde 1958, tinha eu 12 anos e ele explicava-me quem era o Humberto Delgado. Toda a vida foi um político.” A frase é de Daniel Sampaio, irmão do antigo Presidente da República, psiquiatra de profissão, em entrevista ao Público em 2010. Daniel optou por seguir as pisadas do pai, Arnaldo Sampaio, figura proeminente que foi Diretor-Geral de Saúde antes e após o 25 de Abril.

A distância entre os dois irmãos, com sete anos de diferença, revelou-se pouco importante durante a vida, sobretudo quando Jorge Sampaio chega à Faculdade para estudar Direito, e Daniel Sampaio ao Liceu. Muito diferentes em gostos e na forma de estar, os dois apoiam-se mutuamente nas grandes decisões, como as que foram tomadas por Sampaio em vésperas de se candidatar à Câmara de Lisboa e à Presidência da República.

De forma implícita ou explícita, a política – nacional ou internacional – está sempre presente na vida do ex-chefe de Estado. Nascido a 18 de setembro de 1939, cerca de duas semanas depois do início da Segunda Guerra Mundial, uma das primeiras recordações de vida é a de preparação para uma situação de conflito iminente. Nos últimos anos da guerra, as autoridades aconselharam a população a colar fita adesiva nas janelas, recorda Jorge Sampaio na entrevista a Anabela Mota Ribeiro.

No plano interno, os anos no Liceu Pedro Nunes trazem à memória a obrigatoriedade de participar em atividades promovidas pela Mocidade Portuguesa, no início dos anos 50. Muda de escola para o Liceu Passos Manuel de forma a poder ter acesso aos estudos de Direito. Ao início, a alteração é difícil porque o afasta do grupo de amigos de há vários anos. Mais tarde, a mudança é apreciada devido ao clima mais descontraído da nova instituição de ensino, mais aberto e liberal do que havia experienciado, onde se prepara para a entrada na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, no ano letivo de 1956-1957.
De Delgado à crise de 1962
Terá acontecido por volta desse ano o primeiro encontro com o general Humberto Delgado, num jantar organizado por uma prima, Mathilde Bensaúde. Como para tantos outros da sua geração, seria a candidatura do “general sem medo” às eleições presidenciais de 1958 que marcaria o seu despertar para a política. Logo no primeiro ano de faculdade, a oposição ao polémico decreto-lei 40 900 – uma tentativa por parte do Estado Novo de controlar a autonomia das associações de estudantes – politiza ainda mais o ambiente académico.

“A conjugação dos efeitos mentais e cívicos da luta contra o 40 900 com a explosão popular de 1958 gerada pela campanha eleitoral do general Humberto Delgado criou uma plataforma estudantil disponível para a ação coletiva, disposta a unir-se em defesa de liberdades públicas de sentido primário dentro das Escolas”, refere Álvaro Garrido em “A Universidade e o Estado Novo: De “corporação orgânica” do regime a território de dissidência social”.

Sampaio participa e intervém nas assembleias-gerais da faculdade e destaca-se desde logo na Associação de Estudantes e na Reunião Inter-Associações (RIA), que junta várias associações económicas do país. Chega à direção da AE de Direito em 1960/1961, no último ano do curso, e secretário-geral da RIA no ano letivo seguinte.

É nessa altura que se dá a “primavera que abalou o regime”, como a define o investigador João Pedro Ferro. A RIA decide assinalar o Dia do Estudante a 24 de março de 1962, uma data lembrada de forma irregular durante os anos do Estado Novo. Na véspera, o Governo decide proibir a sua realização e ordena o envio de forças policiais para a cantina da Cidade Universitária. O reitor é Marcello Caetano – que viria a substituir Salazar – e apela ao ministro do Interior pela retirada da polícia, que finca o pé na Cidade Universitária.

Solidários, vários estudantes de todo o país chegam a Lisboa e participam nos protestos. Num clima de insurreição geral, são vários os casos de agressões por parte da polícia durante a saída dos estudantes de um protesto no Estádio Universitário. A revolta dos estudantes está no auge no “luto académico” decretado pela RIA. Também em Coimbra, os alunos vão para as faculdades vestidos de negro e fazem greve às aulas.

Perante a pressão eficaz do protesto, o Governo chega a autorizar a celebração do Dia do Estudante em abril para voltar atrás na decisão nos dias seguintes, o que leva ao pedido de demissão do reitor. Os estudantes retomam o luto académico e os plenários de protesto. A PIDE regista pela primeira vez o nome de Jorge Sampaio.

Ao luto académico junta-se a greve de fome de vários alunos na cantina da universidade. A PSP detém nessa noite entre 800 a 1200 alunos, entre eles o dirigente da RIA. Sampaio passa duas noites na prisão de Caxias. A luta dos estudantes irá prolongar-se por mais algumas semanas, sobretudo a exigir a libertação de Eurico Figueiredo, mas a greve cai por terra em junho, mês dos primeiros exames. Na sequência desta agitação académica, a PIDE visita a casa de Jorge Sampaio em Sintra e recolhe livros e documentos considerados suspeitos no final de julho. Em setembro, é chamado para interrogatório. Nessa altura, já formado em Direito, Jorge Sampaio garante que está focado no estágio de advocacia. Os ânimos serenam mas o ambiente académico jamais será o mesmo, com o PCP e as forças de esquerda a conseguirem mobilizar cada vez mais alunos.
Recusas ao PCP e ao PS
O jovem licenciado em Direito também jamais voltará a ser o mesmo, apesar do foco inicial nos estudos e do distanciamento da política. Depois de 1962, Jorge Sampaio recusa vários convites do Partido Comunista e Partido Socialista, este último logo a cargo de Mário Soares, 15 anos mais velho e líder da Resistência Republicana e Socialista. Sampaio segue à procura da sua identidade política e independência.

Em entrevista ao Expresso, já depois de ter abandonado a Presidência da República, afirma com orgulho a autonomia e a liberdade com que sempre agiu. “Prezo muito a minha independência. Nunca fui da Maçonaria, da Igreja ou de qualquer grupo económico. Chegar onde cheguei, nestas condições, é obra. Porque é muito difícil ser independente em Portugal”, afirma.

Pela via da independência, o futuro líder do PS não deixa de passar discretamente por projetos de resistência como o Movimento de Ação Revolucionária (MAR) e mais tarde a Comissão Democrática Eleitoral (CDE), naquelas que seriam as primeiras eleições após a era Salazar, em 1969. Antes, no ano de 1968, encontra-se com os principais líderes comunistas em Paris, incluindo Álvaro Cunhal, líder pelo qual não esconde a sua admiração. Já no final da reunião, que teve em vista a preparação das eleições para a Assembleia Nacional a realizar no ano seguinte, Sampaio lê no Le Monde a notícia da queda de Salazar da cadeira e a operação a que o português seria submetido. Na eleição do ano seguinte, Sampaio é candidato pelas listas da CDE, no auge da contestação à guerra colonial. Mário Soares e Salgado Zenha concorrem pela CEUD. A União Nacional, afeta ao regime, elege a totalidade dos deputados.

Os primeiros anos após o curso de Direito ficam também marcados pela entrada no mundo da advocacia e pela defesa de presos políticos, o primeiro logo em 1964, tinha Jorge Sampaio 24 anos. Mário Soares, que coordena a equipa de defesa de mais de oito dezenas de réus no âmbito do “Processo de Beja”, chama todos os advogados afetos à Oposição que consegue. Manuel Peralta Bação, militante do PCP e operário metalúrgico de profissão, é o primeiro preso político que defende no Tribunal Plenário, mas o réu acaba por ser condenado. O mesmo destino conhecem José Justino Machado, Maximino Vaz da Cunha, Sara Amâncio, ou o advogado e amigo Joaquim Monteiro Matias e José Ernesto Cartaxo nos anos seguintes, entre outros que serão defendidos por Sampaio nos anos seguintes.

A tarefa é inglória, uma vez que as respetivas penas a aplicar aos opositores do regime já estão praticamente ditadas pela máquina judicial do regime. Advogado escolhido para defender Ferro Rodrigues, o julgamento não chega a acontecer uma vez que tinha data marcada para depois do 25 de Abril.

Depois da Revolução, o então advogado viria a queimar todos os processos dos presos políticos que tinha no seu escritório, perante as tentativas de saber quem tinha denunciado quem perante a PIDE. “Tive sempre uma grande capacidade de não fazer condenações relativamente àqueles que tivessem fraquejado. Não sei como seria se isso me tivesse acontecido. Ninguém sabe, revelou numa entrevista à jornalista Rosário Lira em 2015.

No exercício da profissão, Jorge Sampaio ocupa ainda o lugar de delegado na Ordem dos Advogados já na década de 70. Ainda antes da Revolução de Abril, Sampaio convive de perto com o grupo que irá formar o Movimento de Esquerda Socialista (MES). Chega a fazer parte da Comissão Organizadora, mas ao qual nunca chegará a pertencer ao movimento, que abandona no próprio congresso fundador.
Abril, 1974
Abril de 1974. O mês em que Jorge Sampaio e Maria José Ritta casam é também o mês da revolução. Regressados da lua-de-mel – um passeio pelo norte do país – nem 20 dias passam até que chegue a madrugada que ditou o fim do Estado Novo, que apanha o advogado desprevenido e sem saber de que ala teria saído a Revolução.

Sampaio segue os conselhos que os militares vão deixando na rádio e vai para casa até ordem em contrário. Os amigos e companheiros estão todos no Largo do Carmo. “É uma coisa de que hoje muito me arrependo: segui as instruções dos militares, achei que sabiam o que estavam a fazer. Toda a gente foi para o Carmo, eu fui para casa!”, revela no primeiro volume da sua biografia, redigida por José Pedro Castanheira.

No dia seguinte, porém, está na Prisão de Caxias para a libertação dos presos políticos, alguns dos quais defendidos por si. A 30 de abril, Jorge Sampaio estreia-se na RTP a apelar à participação dos portugueses no Dia do Trabalhador. Na televisão pública, é apresentado como “antigo dirigente estudantil” e “candidato pela CDE nas eleições legislativas de 1969”.


Num curto discurso, cerca de cinco minutos, sublinha os dias de "notável expressão de alegria". Confia que o 1º de Maio será “um dia de uma arrancada responsável para a construção do futuro” e defende que é necessário avançar para “o reconhecimento do direito à independência” dos países sob o jugo colonial. A iniciativa decorre nos estúdios do Lumiar e junta, além de Sampaio, nomes como Mário Soares, Francisco Pinto Balsemão ou Octávio Pato.

Nos meses seguintes, Jorge Sampaio e João Cravinho são os designados pelo ministro dos Negócios Estrangeiros do I Governo Provisório, Mário Soares, para explicar em Nova Iorque, junto da ONU, os eventos que ditaram o 25 de Abril. Os encontros decorrem sobretudo com os representantes dos Estados Unidos e União Soviética, mas nenhum dos dois acaba por ser o escolhido para representar Portugal nas Nações Unidas. Spínola dá primazia a outros nomes, uma vez que tem uma visão bastante mais conservadora sobre o futuro das colónias.

Jorge Sampaio acabaria por se estrear no IV Governo Provisório, da Vasco Gonçalves, como Secretário de Estado da Cooperação Externa, cargo que ocupa durante quatro meses. Os grandes dossiers são a Guiné-Bissau mas sobretudo Moçambique e torna-se num dos primeiros responsáveis em coordenar a cooperação entre a antiga metrópole e os países que nasciam de ex-colónias. Apresenta a demissão em julho, alguns meses depois, por não concordar com a atuação de um executivo já em fase de degradação.

No seguimento do 25 de novembro e com o fim do “Verão Quente”, Jorge Sampaio está no centro de uma nova organização política não-partidária, a Intervenção Socialista (IS), que se destaca pelo papel de reflexão entre o PS e o PCP, e que lhe vale a participação em vários colóquios nacionais e internacionais. Mas a IS está condenada ao fracasso, dada a proximidade cada vez mais evidente ao PS, mas também a relutância e a indecisão em apoiar candidatos ou partidos em concreto.

Em 1978, Sampaio e o grupo ligado ao IS adere em bloco ao Partido Socialista, com insistência pessoal de Mário Soares, que então preparava o II Governo Constitucional, em coligação com o CDS-PP. Ainda as negociações para a entrada dos novos membros no PS – 36 novos militantes - não estão terminadas e já o ex-primeiro-ministro propõe a Sampaio o lugar de ministro da Saúde que é desde logo recusado, dado que o grupo não concorda com o acordo parlamentar com o partido mais à direita. Mais tarde, Sampaio arrepender-se-ia de ter negado uma posição no Governo que muito teria orgulhado o pai, Arnaldo Sampaio, diretor-geral de Saúde entre 1972 e 1978 e um médico português de enorme destaque a nível internacional. O lugar acaba por ficar para António Arnaut.



Mesmo não tendo ocupado o lugar de ministro, Jorge Sampaio chega à fila da frente do partido com rapidez. Em 1979, é eleito deputado à Assembleia da República, logo pelo círculo de Lisboa. No Congresso, passa a integrar o Secretariado Nacional ao lado de Salgado Zenha, Jaime Gama, António Guterres e Vítor Constâncio.

Nesse mesmo ano é nomeado pelo embaixador José Cutileiro – do Comité de Ministros do Conselho da Europa - para representar Portugal na Comissão Europeia dos Direitos do Homem, sediada em Estrasburgo. Aos 39 anos, torna-se no primeiro representante português, o único advogado do grupo, cargo que irá ocupar até 1984. Acaba por não ver o mandato renovado e regressa a Lisboa para se focar na política nacional, num momento em que o PS se começa a dividir entre soaristas e os opositores do líder histórico, entre eles Salgado Zenha, de forma demarcada. Sampaio passa a integrar o grupo em rota de colisão com o secretário-geral do PS que passa a ser identificado como o grupo “ex-Secretariado”, com as reuniões a realizarem-se no sótão de António Guterres.
Uma carreira internacional por cumprir
Mais uma vez, o fim precoce de um cargo internacional deixa o socialista inconsolado. Abandonara Estrasburgo a contragosto, depois de pedir a Mário Soares que o mantivesse. Antes, não fora o escolhido para representar Portugal junto da ONU logo após o 25 de Abril, por discordâncias sobre o futuro das colónias com António de Spínola. Como secretário de Estado da Cooperação Interna, fora relegado para segundo plano pelo primeiro-ministro Vasco Macedo, que toma em mãos o assunto da independência de colónias como Guiné Bissau e Moçambique. Mas nos anos 80, já com Vítor Constâncio como secretário-geral, Sampaio é o nome escolhido para secretário internacional.

Os assuntos globais sempre o moveram por excecional gosto e brio pessoal, ou não tivesse sido a resolução da questão de Timor um dos principais pontos altos da sua passagem por Belém. A proficiência no francês, mas sobretudo no inglês – muitas vezes, a língua que falava com a mãe, Fernanda Branco, que estudara em Inglaterra – dava-lhe sempre vantagem nos cargos relacionados com relações externas. Também ajudaram as temporadas passadas em Baltimore, nos Estados Unidos, ou no Reino Unido, a acompanhar os estudos do pai, Arnaldo Matos. Em 1965 recebera uma bolsa para visitar os Estados Unidos durante dois meses, ao abrigo do Foreign Leader Program, patrocinado pelo Governo norte-americano. Também antes da Revolução, fora colaborador da página internacional da revista O Tempo e o Modo e da Seara Nova.

Por ironia do destino, o período pós-Presidência da República trouxe-lhe várias distinções e cargos ao nível internacional que procurou antes de chegar a Belém. Por contraste com outros Presidentes, seus antecessores em Belém, Sampaio não quis manter um papel preponderante na vida política nacional, referindo-se e intervindo nos dilemas partidários e governativos de forma muito esporádica. Ainda nem três meses tinham decorrido da passagem de testemunho a Cavaco Silva quando o secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, designa o antigo chefe de Estado português como Enviado Especial para a Tuberculose, também pela constante atenção dedicada aos assuntos de saúde pública, por inspiração do pai.

Em 2015, Jorge Sampaio é agraciado com o Prémio Nelson Mandela, atribuído pelas Nações Unidas nesse ano pela primeira vez. Um prémio que distingue, de cinco em cinco anos, personalidades que tenham feito uma "contribuição excecional", em linha com os objetivos e princípios que regem a ONU.



Nos últimos anos, Sampaio fundou e dedicou-se a promover a Plataforma Global de Assistência Académica de Emergência a Estudantes Sírios, uma organização não-governamental que procura integrar estudantes universitários de uma região em guerra civil, mas que deverá ser reproduzido a nível internacional, noutros países de acolhimento e noutras situações de conflito.

Um dos últimos atos públicos de Sampaio foi precisamente no âmbito desta plataforma, poucos dias antes de ser internado: em agosto de 2021, o ex-Presidente da República anunciou o reforço do apoio aos estudantes com o intuito de ajudar especificamente as jovens afegãs, perante o regresso dos talibã ao poder no Afeganistão.

Questionado sobre o papel que teve na vida política, Jorge Sampaio não exagera mas também não menoriza o que fez: "O balanço que faço daquilo que andei a fazer é positivo. Sei que há pessoas que discordam, mas isso faz parte do dia-a-dia deste tipo de vida. (...) O que está feito está feito".

Fotografias: Partido Socialista, Reuters