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História de um serrralheiro que foi para a guerra

João Manuel Assunção foi para a guerra já com 22 anos, casou com uma francesa, teve 15 filhos. No Exército era um operário estimado por fazer de tudo, no país adoptivo começou por ser rejeitado como estrangeiro, mas acabou por impor-se à estima dos seus vizinhos. Uma das filhas, Félicie Pailleux, foi entrevistada para o documentário da RTP "Portugueses nas trincheiras".

Pergunta: Sra. Pailleux, quem era o seu pai?

Resposta: O meu pai era um português que chegou em fevereiro de 1917, integrado no Corpo Expedicionário Português, para defender a França, sob o comando dos ingleses, e penso que ele deve ter estado naquilo a que se chama, julgo, o "Milagre de Tancos". Embarcou em fevereiro, desembarcou em Brest e, daí, vieram de comboio até não muito longe daqui, até Aire-sur-la-Lys, não tendo tido tempo de desfilar em Paris. Foram rapidamente acantonados e não foi longe daqui.



Penso que contribuiu em muitas coisas. Ele já era serralheiro de profissão, em Portugal, e no Exército foi armeiro e artesão. Na sua caderneta militar, estão registados 440 dias na frente.

P.: Ele falou-lhe sobre isso?

R.: Muito, muito pouco. Porém, entre os portugueses falava-se muito desta guerra. Não deve ter sido muito cómodo para eles em face da temperatura e, perto do inimigo, deve ter havido momentos extremamente duros, e falavam disso entre amigos. Há que dizer que o meu pai tinha uma oficina de venda e reparação de bicicletas. Os portugueses vinham ter com ele e falavam sempre dessa guerra. Não compreendíamos grande coisa, mas percebíamos que era da guerra que falavam.

P.: Portanto, os portugueses amigos dele eram soldados?

R: Era a mesma coisa, eram todos soldados, e há que dizer que na nossa região, uma vez que a batalha foi travada não muito longe daqui, eles eram muito, muito numerosos. Todas as semanas se juntavam em grande número, convivíamos e íamos sempre a casa uns dos outros.

E era sempre uma alegria, apesar das saudades de Portugal, porque a recordação que tenho do meu pai, é que ele teve a coragem de ficar cá por causa de uma rapariga, uma vez que a guerra já terminara. Casou-se e teve quinze filhos de presente, não é pouco...

Portanto, juntávamo-nos muito, e como eles tinham formado uma associação e os estatutos desta exigiam que se ajudassem uns aos outros, se alguém estava em dificuldades, já se sabia que, todos os domingos, o meu pai pegava nos filhos e íamos visitar essas pessoas, ajudando-as no que era possível.

P.: Nessas conversas que ele teve com outros amigos que também tinham sido soldados, tem alguma ideia do que falavam?

R.: Da guerra, do que fizera sofrer aos inimigos, ou se calhar do que os inimigos tinham feito. Seja como for, era de facto da guerra que eles falavam.

Umas vezes brincavam, outras não. Depende do que falavam, mas sabe, éramos pequenos, o instinto levava-nos a adivinhar de que falavam, mas nós nunca aprendemos a falar português.

Porque é como hoje, havia racismo. Ninguém se interessava pelos portugueses, ninguém sabia que eles tinham vindo combater por nós, para nos defender dos homens que também tinham ido para fora, para substituir outros homens, e as pessoas esqueciam-se disso.

Assim, o meu pai ia muitas vezes buscar os filhos a brigas com outros rapazes, que diziam: "Que fazem aqui estes malditos portugueses?!" Nós éramos filhos de um português que viera combater, mas que decerto não escolhera fazê-lo...

P.: Ele contou-vos as suas primeiras impressões ao chegar a França?

Desde logo o clima, que era muito, muito agreste, porque eles chegaram em fevereiro de 1917. Foi um inverno muito húmido, muito frio, a norte, no Pas-de-Calais, no norte de França, ali não faz muito calor Lembro-me sempre do meu pai com muita, muita roupa, porque devia lembrar-se do calor de Portugal.

Uma coisa de que me lembro muito bem, é que à noite o meu pai devia ter saudades do seu país. Então juntava-nos - e não éramos poucos, éramos quinze -, juntava-nos a todos à sua volta e ensinava-nos uma canção portuguesa que tivemos de decorar. E, quando cantávamos, o meu pai chorava. Não é difícil imaginar porquê: era o facto de estar aqui, a saudade do seu país. Lembro-me muito bem que ele chorava, sim.

P.: E lembra-se dessa canção?

R.: Soube-a durante muito tempo, todos cantámos essa canção durante muito tempo. Hoje já não sei...

P.: E o vosso pai também vos falou das condições de alimentação, por exemplo, que eles tinham na frente, ou do que diziam os outros soldados, como era isso?

R.: Segundo informações que julgo serem verdadeiras, eles passaram vários dias sem receber alimentos, ou munições, à espera que os ingleses se preparassem. Há que dizer que tudo isso deve ter sido muito duro, esses combates, porque pelo que dizem eles não estavam muito longe do inimigo. Eles tentaram negociar, para ficarem melhor, mas não vinha nada, julgo que nada podiam fazer. Sempre tive a ideia de que não se podia fazer melhor.

Nós imaginávamos como tudo se devia ter passado, mas ele não falava disso. Mas sabe, com algum distanciamento, acho que eu faço o mesmo, pois há já vinte anos que continuo a obra dele, porque como ele estava no escritório da associação, era ele que tratava da bandeira, dos papéis, dos recebimentos - dos documentos que ainda conservo e que posso mostrar-vos - mas de resto não falava muito disso. Há já vinte anos que tenho esta bandeira.

Em 2001, recebi o diploma, fui reconhecida como representante da Batalha de La Lys, pois esta bandeira só existe no Pas-de-Calais, só existe aqui. Podem procurar noutros lados que não encontrarão esta bandeira.

P.: E por que razão foi o seu pai a ficar com a bandeira?


R.: Em 1924, decidiram fazer uma associação e, nesse mesmo ano, endereçaram o pedido a Portugal. Como isso leva tempo, como tudo, só em 1929 é que chegaram os documentos, a bandeira e tudo o mais, de Portugal. Foi então que abriram este gabinete. Havia uma quotização mensal e cada um dava o que podia. E guardo ciosamente esta relíquia - eu considero-a uma relíquia -, é a sua escrita.

P.: E é o quê, essa relíquia?

R.: É o nome de todos os portugueses, as quantias e os anos de contribuição. E este livro começa em 1929.

P.: E como é que o seu pai conheceu a sua mãe?

R.: Como ele teve algum tempo de licença, e como a minha avó tinha uma quinta, um sítio com animais, palha e tudo isso, um grupo de expedicionários portugueses foi para lá descansar. Ele voltou muitas vezes de licença à aldeia da minha mãe, e foi lá que ele a conheceu.

P.: Ele fazia parte desse grupo do corpo expedicionário que ia a essa quinta reabastecer-se, é isso?

R.: Ia para lá descansar. Não sei dizer se ficavam lá muito tempo ou não, mas descansavam tal como outros faziam noutros locais. Ele veio várias vezes àquela quinta, à quinta da minha avó, e foi lá que ele conheceu a minha mãe.

Quando a guerra acabou, devia ter regressado e teve uma licença, uma licença de noventa dias para se decidir a regressar. Partir era muito difícil; julgo que se afastou um pouco e depois voltou. Como tal, acabou por não regressar. Isso causou-lhe alguns problemas, porque durante algum tempo não pôde voltar a Portugal. Depois, tudo acalmou.

P.: Por que não podia ele regressar a Portugal?

R.: Porque talvez aquilo pudesse ser considerado uma deserção, o facto de não regressar após o final da guerra. Julgo que deve ter sido bastante grave, pois só regressou a Portugal 26 anos depois. Ele tinha de sustentar a família e não sei bem durante quanto tempo não pôde regressar, mas depois ia todos os anos.

P.: E a família, a sua avó e o seu avô, como reagiram ao saber que eles queriam casar-se?

R.: Com a minha avó e o meu avô não houve problema nenhum, mas há ainda assim uma historieta à volta disto. É que, no dia do casamento, o presidente da câmara voltou-se para a minha mãe e disse-lhe: "Não tens vergonha de casar com um estrangeiro?"

Na família, todos o sabiam, e como o meu pai não podia responder, não sabia falar francês... como podia ele dizer aquilo de alguém que acabara de combater pela França? Vejam que o racismo talvez tenha existido sempre, sob uma outra forma, sim...

P.: E os seus avós não disseram nada?


R.: Os meus avós nunca disseram nada, pelo contrário. No início da sua estada na aldeia, era visto com alguma desconfiança, era o estrangeiro, mas depois, pouco a pouco, perceberam que era um homem habilidoso e foram começando a falar-lhe, e muitas vezes as pessoas da aldeia chamavam-no: "João, passa lá por casa, não temos luz..."; "João, vai lá arranjar um móvel"... e o João ia a todas as casas, e era um homem muito estimado.

Ainda hoje, se falarem das filhas dos portugueses, somos nós, e ainda se fala do nosso pai, a aldeia ainda se lembra dele e, no entanto, já se passou bastante tempo, Porque ele só fez bem: montou todo o circuito elétrico da igreja, era muito hábil, era capaz de fazer uma bicicleta de madeira, fazia reparações nas bicicletas, sabia fazer de tudo...


P.: E qual era o nome completo do seu pai?


R.: Chamava-se João Manuel Assunção.

P.: E sabe de onde vem ele exatamente, em Portugal?

R.: Sim, nasceu em Ponte da Barca, e viveu sempre em Coimbra.

P.: E sabe como partiu para a guerra, no início, como se alistou?


Ele já tinha - para mim, já é uma bela idade... ele teria uns 22 anos e, assim, segundo os seus papéis, deve ter cumprido mais ou menos três mil dias de serviço militar e penso que foi para a Batalha, onde por vezes vou com a bandeira.

P.: Sabe se o seu pai fez a instrução militar em Tancos?

R.: Não, isso nunca soube, mas nos papéis está escrito Batalha. Portanto, e para mim, ele deve ter estado na Batalha.

Tradução de Luís Silva Reis