Um médico impedido de tratar os feridos

Manuel Lourinho foi médico militar, capturado pelos alemães na jornada de 9 de Abril de 1918, e prisioneiro até ao fim da guerra. A filha, Maria da Conceição Machado, relatou, para o documentário "Portugueses nas trincheiras", as recordações de guerra que ele lhe transmitiu.

Pergunta: O que lhe contou o seu pai do que ele passou na frente, em França, na Flandres?

Resposta: Bem, o meu pai contava não só o dia da batalha, a noite da batalha, como também de tudo quanto passou na Fortaleza de Lille, no campo de Rastatt, na viagem depois para Breesen, que era um campo onde durante mais tempo tinha permanecido, o que tinha feito nesse campo e a certa altura a fuga através da Alemanha para a Holanda e depois para Portugal.


Posto de socorro a feridos na linha da frente

P.: Sabemos que ele não estava nas trincheiras, que era médico, por isso estava na retaguarda. Mas o que é que ele viu, o que é que ele contou sobre a frente?

R.: Ele assistiu àqueles bombardeamentos, no 9 de Abril a meio da madrugada um terrível bombardeamento de granadas e gás. Bombardeamento feito ao posto médico. Ele estava no abrigo, porque era de madrugada, mas rapidamente arranjou-se para ir tratar dos feridos.

Logo que chegou a cavalaria alemã, e os oficiais alemães e os soldados deram voz de prisão, ele quis ficar a tratar dos feridos, porque chegavam estropiados, a pé, mas não lhe permitiram que tratasse. Isso foi uma grande dor, um pesadelo que ele manteve sempre, não ter podido tratar dos feridos. Mas não, teve de seguir os outros oficiais para a Fortaleza de Lille.

P.: E antes da batalha do 9 de Abril?

R.: Antes da batalha, acho que no posto, era uma rotina. Chegavam alguns feridos, teria notícia de alguns bombardeamentos, mas nunca fez referências tão grandes e tão graves, tão pesadas, como realmente depois da batalha d’ Armentières, conhecida por La Lys, pelo 9 de Abril.

P.: E como se apercebeu que estava a acontecer uma batalha com aquela dimensão?

R.: Pela chegada - ele diz que foi uma avalanche, não me recordo qual era o termo que ele usava e o que usa no livro - de cavalaria e de infantaria alemã, tudo foi invadido, ficaram completamente submersos, não me recordo bem o termo, mas é qualquer coisa desse género.

Completamente naufragados no meio de um mar imenso que eram as tropas alemãs, no posto médico, isto no posto médico. E depois foram a pé, para a Fortaleza de Lille. Foram a pé cento e tal oficiais escoltados pela cavalaria alemã. E logo aí sofreram muito. Muita fome, maus tratos, agredidos, roubados.

P.: A caminho da Fortaleza?

R.: A caminho da Fortaleza e depois, na própria Fortaleza, estiveram mais de 24 horas sem qualquer alimento. E, quanto ao alimento que lhes deram, ele diz um termo que revela o facto de ser médico, que era uma comida difícil de “diagnosticar” o que era.

P.: E que mais ele contou sobre essa estadia?

R.: Essa estadia, dormiram vestidos no chão, durante salvo erro cinco dias, até serem levados para a Floresta Negra no sul da Alemanha para um enorme campo, campo de Rastatt. Onde então aí é que sofreram muito, muitos vexames. Juntaram aí os oficiais, sofreram até a depilação pelo corpo todo, agressões de alguns militares alemães presenciadas por outros que aplaudiam.

O meu pai adoeceu, foi levado para o hospital, mas desse hospital ele referia sempre uma grande simpatia, não só sob o ponto de vista clínico mas também sob o ponto de vista pessoal. Sob o ponto de vista clínico que tinha sido bem tratado. E sob o ponto de vista pessoal que também nada lhe tinha faltado.

Depois de sair desse hospital, as autoridades alemãs anunciaram que iam transferi-los para outro campo, mas entretanto já tinham criado uma biblioteca com 93 livros de todos eles, e com algum dinheiro, o que não lhe tinha sido roubado, tinham criado a chamada Biblioteca do Prisioneiro.

E já tinham pensado na criação de uma comissão para pedirem auxílio, para se bastarem e para sobreviverem porque o fim do cativeiro não estava à vista. Dessa comissão elegeram como presidente o Tenente Coronel Craveiro Lopes e o meu pai como secretário. A ideia dessa comissão surgiu do contacto com oficiais franceses, porque nesse campo não estavam só os oficiais portugueses. Mais tarde em Breesen eram só portugueses, mas em Rastatt não.

E os franceses tinham realmente já uma incipiente comissão através da qual pediam auxílio. E foi isso que os levou a criarem a comissão já com uma eleição, com uma acta, quer dizer eles queriam manter - era isso que nos impressionava, que sempre me impressionou toda a vida -, era o que queriam, manter a dignidade. Uma cerimónia, uma eleição, uma acta, e era então o Tenente Coronel Craveiro Lopes, o Capitão Bento Roma, dois oficiais que não recordo o nome, e o meu pai que era o secretário.

Mas a certa altura, foram levados para Breesen. Breesen no norte da Alemanha perto de Hamburgo na zona do mar báltico, lá para cima. Essa viagem o meu pai não a conta no livro. Mas a nós dizia-nos que foram vários os meios de transporte a pé, de comboio, recebendo ordens que nem percebiam, sem alimento, alguns chegaram a perder 20 quilos. Um deles enlouqueceu, houve um que morreu, antes de chegarem a Brisen. E tudo sem notícias. Não tinham notícias, nem havia notícias deles em Portugal, nem eles tinham notícias de Portugal.
P.: Mas antes de falar sobre as notícias, quero perguntar-lhe quantos dias durou ainda essa viagem.

R.: Olhe, salvo erro eles saíram de Rastatt no princípio de Julho, e tinham chegado em Abril. Maio, Junho e Julho - três meses foi o que permaneceram em Rastatt. E depois de Rastatt para Breesen, penso que ainda lá chegaram em Julho. Julgo que ainda chegaram em Julho, sim chegaram ainda em Julho e aí permaneceram até à fuga do meu pai com mais 40 oficiais.

P.: E eles tinham alguma ideia nessa altura do que se passava na guerra, o que estava a acontecer nos campos de batalha?

R.: Em Brisen, eles recebiam revistas e jornais alemães. Era-lhes facultado, só não tinham era alimentação, só não tinham era géneros, nem de alimentação, nem de higiene. O meu pai conta por exemplo que tinha um par de peúgas e quando os lavava embrulhava os pés em jornal. Estavam rotos, rotos mal limpos como ele diz. Mas jornais, máquinas fotográficas e revistas, isso recebiam, tanto que eles souberam do Armistício por jornais e também por alguns soldados alemães. Até houve um sargento alemão que os protegeu.

É interessante que Aquilino Ribeiro mais tarde refere que conheceu um sargento alemão que contou que tinha estado num campo de portugueses, mas que não disse que os tinha auxiliado, mas o meu pai diz o nome desse alemão, mas referia-se-lhe levemente, tenho a impressão que tinha receio de estar a dizer que tinham sido protegidos até certo ponto por um inimigo.

P.: Mas, no geral, correu melhor o tempo passado em Dresden do que em Rastatt?

R.: Para o meu pai, dum certo ponto de vista, correu melhor porque eles organizavam festas, conferências, concertos, até quiseram comprar um piano. Eles tinham a necessidade de se ocupar. Eu lembro-me que eu perguntava: “Oh pai, mas como é que queriam viver naquele meio, sujos, não tinham sabão, quanto mais sabonete?”. Ele dizia: “Oh filha, nós ansiávamos pela liberdade, nós queríamos viver, não queríamos morrer e para não morrermos tínhamos que nos ocupar”.

E então tinham essas ocupações. As conferências, as apresentações, os concertos. Para eu escrever aqueles artigos, que depois a Prefácio juntou à obra do meu pai e que chama texto introdutório - são artigos que eu escrevi para um jornal de Portalegre -, folheei uma revista antiga da Ilustração Portuguesa, que trazia a noticia desses campos, onde se viam os oficiais e também praças, como eles diziam, a lavar, a fazer comida, também a tocar, a fazer concertos, a organizar, a ouvir conferências, e até tinham um padre. Não consegui nem no Patriarcado saber que padre é que lá teria estado. Porque o meu pai também dizia que havia missa. E outras cerimónias religiosas, que nunca percebi o que eram.

Portanto era uma cidade, era um pequeno mundo. Mas, claro, com aquela aflição e aquela dor de não haver outro horizonte senão o arame farpado, e de não saberem quando sairiam. Quando tiveram a notícia do Armistício, o Tenente Coronel Craveiro Lopes chegou a ir a Berlim para tratar do repatriamento. Até porque havia uma convenção no que diz respeito a médicos, e eram 13 os médicos militares, salvo erro. Havia uma convenção em que os médicos não podiam estar realmente prisioneiros, mas não conseguiram nada.

Porque os ingleses tinham uma comissão de repatriamento, os franceses tinham uma comissão de repatriamento e os portugueses nunca tiveram nenhuma comissão. O meu pai referia o comité suíço, referia D. Manuel II, e o meu pai era um republicano desde os 14 anos em Coimbra, no tempo portanto ainda da monarquia. Mas referia a acção de D. Manuel II, para conseguir o repatriamento, e também o ministro de Portugal em Haia, António Bandeira.

Eu ouvi sempre o meu pai falar desse ministro com a maior simpatia, foi aquele homem da grande burla do Banco de Portugal em Angola. Mas o meu pai dizia que, se não fosse ele, não teria chegado como chegou a Portugal em Janeiro de 1919.

P.: Como é que eles souberam, os que estavam prisioneiros, no campo de Dresden, e como foi a reação deles, quando souberam do Armistício?

R.: Eles souberam do Armistício pelos jornais alemães e pela tropa alemã. E depois o Tenente Coronel Craveiro Lopes conferenciou com o comandante alemão do campo, porque o campo tinha uma tenda do comandante, tinha um hospital e até tinha uma tenda prisão, onde os oficiais que tinham tentado fuga, estiveram prisioneiros, a pão e água. Pouco pão e também parece pouca água. E o tenente-coronel Craveiro Lopes chegou a ir a Berlim e a assentar que a saída do campo seria no dia 28 de Dezembro. Mas, repare, nunca mais chegava o dia 28 de Dezembro e foi por isso que alguns grupos pensaram em fugir.

Eles pensavam que finalmente seria a liberdade, mas depois foi uma desilusão. Quer dizer, começou por uma grande alegria, mas a certa altura com o desenrolar dos dias, sem serem soltos, foi uma grande desilusão como deve calcular. Deixavam-nos sair do campo em pequenos passeios, mas munidos de um cartão em que sob palavra de honra voltavam ao campo.

Tanto assim que, para fugir, eles trocaram uns cartões uns dos outros para não deixar de cumprir a sua palavra. Eles saíram no dia 16 de Dezembro do campo, entregando o cartão, o cartão que não era do próprio que o entregava a dizer que voltaria, mas não voltavam. Porque de 16 de Dezembro para 28 de Dezembro, hoje parece-nos que não é nada, mas para eles era muito, é que a noção do tempo é psicológica, 16 de Dezembro para 28 era muito, eu compreendia isso e era o que o meu pai nos fazia compreender, para o facto de terem fugido.

E até nem sabiam se seria cumprido o dia 28 de Dezembro. Ainda mais essa. Porque fartos de promessas mal cumpridas estavam eles, até porque quando saíram de Rastatt, tinha-lhes sido prometido que iriam para um campo com boas condições, e afinal quando lá chegaram verificaram que as condições não eram melhores, nalguns aspectos até eram piores.

P.: Em quais aspectos?


R.: Nos aspectos, por exemplo, da comida. Eles tinham 125 gramas de carne por semana, e 150 gramas de pão por semana. Então chamavam ao pão o desertor, porque o pão chegava num dia eles dividiam em sete e depois comiam a parte daquele dia mas repare o que seria, comiam a outra parte e depois comiam outra e comiam o pão todo. Então diziam o pão desertou. Porque eles divertiam-se. Ao mesmo tempo o meu pai contava graças, coisas que eles contavam uns aos outros.

Mas começaram também a receber encomendas de Portugal e da Suíça. O meu pai referia-se com muita simpatia ao Comité Suíço também. E as encomendas de Portugal, do Alentejo, chegavam desfalcadas, nunca chegavam cheias. E eram depois distribuídas pelos que tinham menos, aqueles que não tinham nada. Enfim era uma, eles pretendiam viver com fraternidade e naquela ânsia de realmente sair.

P.: Refere no livro que o campo de Dresden era o pior da Alemanha?

R.: Foi uma comissão espanhola. Como sabe a Espanha era neutral. O meu pai também se refere à embaixada da Espanha na Holanda, ou consulado. Era consulado, mas não me recordo o nome da terra da Holanda, e ele também se refere a esse consulado, ao cônsul, com muita simpatia. A Espanha enviou uma comissão para verificar e observar os campos de concentração de prisioneiros. Sabe quantos eram? Os campos de prisioneiros eram 20. E chegou a conclusão que o de Brisen era o pior campo de concentração, era o pior campo.


P.: E porque era considerado o pior?

R.: Era o pior porque as camaratas, as tendas, eram apertadíssimas, sem luz e sem ar, não tinham cubagem, eles tinham de se inclinar para conseguirem entrar e sair. E tinham uma caneca, tinham um balde, ou antes uma bacia, e não tinham um talher completo para comer. Não tinham sabão, não tinham roupa, repare a história das peúgas que ele contava, lavava as peúgas e embrulhava os pés em jornais. Bem, aliás isto era em quase todos os campos, como mostra a Ilustração Portuguesa, que ainda hoje se pode consultar, porque eu consultei-a quando escrevi esses artigos.

E dizem que até Abril, portanto 6 meses depois do Armistício, chegavam estropiados, rotos, descalços, alguns de chinelos, com fardas misturadas com fatos à paisana, e com fardas misturadas francesas, inglesas e portuguesas – isto está escrito, na Ilustração Portuguesa. A Grande Guerra, realmente, é mal conhecida, e o que foi o sofrimento dos portugueses. Até porque foi uma época conturbada também da nossa história.

Eles souberam, por exemplo quando chegaram à Holanda, do assassinato do presidente Sidónio Pais. Note-se que o meu pai referia-se a Sidónio Pais com muita simpatia. Porque no campo tinham recebido um telegrama dele, até estou a arrepiar-me, tinham recebido um telegrama do presidente Sidónio Pais a encorajá-los e quando chegaram à Holanda souberam do assassinato.

P.: E a família, também não tinha notícias dele?

R.: Não, só tiveram a primeira notícia do meu pai prisioneiro salvo erro em 22 de Agosto. Até lá, não sabiam nada, foi dado como desaparecido, foi dado como morto. Há um telegrama em Maio, tenho o telegrama, nós entregamos tudo à Liga dos Combatentes, tudo quanto o meu pai escreveu.

E um telegrama do irmão do meu pai que era alferes e estava em Portalegre, era professor, um telegrama para a irmã que também era professora a dizer: “Doutor prisioneiro”, eles por brincadeira às vezes referiam-se ao irmão dizendo doutor, e era uma maneira de realmente o identificarem. Esse telegrama é de 24 de Maio, “doutor prisioneiro”.

Mas em jornais e no próprio quartel, no próprio Arquivo Militar, que eu também consultei mas onde não me foi permitido tirar fotocópia, a notícia é de Agosto e diz que dois médicos militares são feitos prisioneiros. Até então, notícias nenhumas. Os meus avós vestiram-se de luto, porque para eles, prisioneiro ou morto, era tudo a mesma coisa lá nos confins do Mundo.

A geografia deles não alcançava. Até porque dos desaparecidos de Portalegre e da zona, era o prof. Hernâni Cidade, o meu pai e um oficial que nunca apareceu, o oficial Francisco Fino, nunca apareceu, esse oficial Alferes Miliciano. 

Os meus avós, só em Janeiro de 1919 é que abraçaram o filho, quando ele voltou a Portalegre. Porque ele saiu de França, deixe ver: ele chegou à Holanda no dia 20 de Dezembro, saiu em 16 de Brisen, chegou à Holanda no dia 20 de Dezembro. Apresentou-se no CEP, no Corpo Expedicionário Português, em França a 27 de Dezembro, portanto 7 dias depois, mas chegou a Portugal só em Janeiro.

Porque só em Janeiro de 1919, nos fins é que a minha avó mostrava o jornal em que estava escrito desaparecido, e um barretinho, que ele usava lá em Brisen, ostentando sempre a braçadeira da Cruz Vermelha. O meu pai nas fotografias tinha sempre a braçadeira, fazia questão da menção da sua condição de médico militar.

P.: E como foi repatriado?

R.: Não sei, ele não se referia a isso, ele só dizia que se tinha apresentado no Corpo Expedicionário Português em França. Tinha embarcado no Havre. Julgo que foi por mar que veio para Lisboa. E depois naturalmente de comboio de Lisboa para o Alentejo, mas não fazia aí grande referência.

P.: E não chegou a mandar fotografias do campo para os seus pais?

R.: Mandava, mandava. Até há uma fotografia que está no livro em que ele está a ver uma revista que representa uma mesa de uma refeição e tem a prateleira e um pouco da cama onde ele dormia, nessa prateleira a bacia e a caneca, e parece-me que se vê uma colher. E depois dizia que estava bem, que não lhe faltava nada, mas sabia que o irmão do professor "Chance", que era ele, estava faminto e roto, e que se pudessem, lhe mandassem alguma coisa. Porque era tudo censurado e demorava. As primeiras notícias deles chegaram em Setembro. Repare: Abril para Setembro, o que isso representava.

P.: Por terem ficado no campo depois do Armistício e não terem logo regressado, acha que o seu pai sentiu que eles foram abandonados, de alguma forma?

R.: Sim, sim, sentia, o meu pai sentia que tinham sido abandonados, abandonados pelos nossos governos. Eles sentiam que tinham sido abandonados. Era mesmo o termo que ele usava. Portanto tinham de se bastar a si próprios, tinham eles próprios de tratar de si e dos seus interesses e era o que faziam. Era essa a noção perfeita que eles tinham e que sempre nos transmitiu, que sempre nos contou. Sempre com uma certa, não digo inveja, amargura, porque verificavam que tanto franceses como ingleses tinham outra proteção da parte dos respectivos governos. Isso, ele mostrava.

P.: O que mais lhe dizia o seu pai sobre isso?

R.: Não tinham notícia que houvesse uma comissão, não havia enviados nenhuns de governo português, nem comissão nenhuma, não havia provas concretas, não havia documentação, nem pessoas, nem nada escrito. Tudo o que lhes chegava era do comité suíço e de entidades privadas como comissões de senhoras que mandavam géneros e roupas, que chegavam lá desfalcadas.

Mas havia muitas comissões de senhoras, até no Alentejo, havia uma até em Portalegre, em Évora salvo erro também. Havia várias pelo país, eram entidades privadas, entidades particulares e o comité suíço. Então era D.Manuel II, e o ministro António Bandeira na Holanda, quem ele referia. O ministro António Bandeira é que os convidou quase a fugir, garantindo-lhes proteção na Holanda e caminho para França, porque eles da Holanda tinham de ir para França apresentar-se ao Corpo Expedicionário Português.

P.: E que contou sobre essa viagem até à Holanda e depois para França? Também não deve ter sido fácil.


R.: Ah, isso foi, foram a pé, foram de comboio também. Dizendo que era uma comissão, eles diziam que eram uma comissão de médicos que tinha sido mandada pelo governo para inspecionar o campo de Brisen. O meu pai até dizia: eu afirmei tantas vezes que se estava tão bem no campo de Brisen que a certa altura até pensei: “Seria que se estava bem lá”!

Porque eles encontravam constantemente comissões, porque a Alemanha nessa altura estava a viver quase uma revolução, comités de operários e de soldados houve grupos que se manifestaram e que fuzilaram pessoas, autênticos comités revolucionários. E eles tinham que atravessar o país, então levaram de 16 até 20 de Dezembro, foram 5 dias que eles levaram e conseguiram realmente depois lá na Holanda dirigir-se ao consulado espanhol, de onde mandaram telegramas para Portugal.

Daí, do consulado espanhol, já mandaram notícia de que estavam fora do campo de prisioneiros, foi do consulado espanhol. Meu pai mostrava-se também muito grato a esse cônsul espanhol. Até os vestiu para tirarem umas fotografias, para os passaportes. Porque foi o cônsul espanhol que lhes forneceu passaportes para eles seguirem da Holanda para França e se apresentarem ao Corpo Expedicionário Português.

Mas antes o ministro António Bandeira também os recebeu realmente muito bem. O meu pai contava vários episódios anedóticos, como o do bacalhau, o ministro António Bandeira deu-lhes bacalhau com batatas. O meu pai não gostava, mas quase lamberam o prato por causa do azeite. Já não se lembrava do gosto do azeite. Isto mais tarde pode parecer estranho, mas naquela situação 9 ou 10 meses era uma eternidade. E o meu pai tinha 27 anos, acabados de fazer, era um rapaz solteiro, cheio de vida.

P.: O que acha que mais marcou o seu pai?

R.: Propriamente a prisão e a estadia nos dois campos é que era o assunto das suas conversas. Antes disso, ele estava no posto médico e portanto era uma rotina a tratar os feridos que chegavam e não contava assim histórias porque não saía do posto clínico.

P.: Mas por exemplo foi uma guerra onde houve feridos de uma forma que não tinha sido visto até então, e houve também os gases.

R.: Ah, o meu pai também foi gaseado. Ainda ontem não sei quem é que, conversando comigo, me dizia: o meu pai tinha 89 anos quando morreu, tinha sido gaseado da guerra e tinha sofrido isso tudo, uma vida agitadíssima e tudo mais. Ah pois os gases no posto clínico, isso é que o impressionava muito. Era o não cumprimento das convenções internacionais. Isso é que o impressionava, de resto, não tinham assim outras notícias.

P.: Nunca lhe falou sobre o estado em que vinham os feridos?


R.: Sim, claro, imagine como seria, uns sem pernas, outros sem braços. Foi, não sei se 1.000 soldados estropiados, foi terrível. Mas é sobretudo sobre depois do 9 de Abril, o que se passou depois, que ele nos contava.



P.: Sobre o dia 9 de Abril, houve alguma coisa mais que ele lhe tenha contado, que o tenha marcado?

R.: Ele dizia, tantos anos depois, que ainda não era capaz de definir bem o que tinha sentido, se era medo, se era desilusão, se era ruína da sua personalidade. Dizia isso muitas vezes. Ainda hoje não sou capaz de definir por completo, e o meu pai tinha um curso de psicologia, não era só médico tinha filosofia também e psicologia, e ele repetia muito isso: “Ainda hoje não sou capaz de definir todos os sentimentos, na ocasião em que percebi que era uma batalha e que estávamos completamente dominados pelos alemães porque chegavam” - eu não me recordo do termo que ele usa para definir a quantidade de militares alemães que caíram sobre o posto clínico, caíram no sentido de chegaram, mas chegaram em desalinho, desordenados, com ordens, tudo numa língua que não conheciam.

Ainda hoje não sou capaz de definir, eram sentimentos contraditórios. Ele também quis ficar, isso ele referia muito, quis ficar para tratar ali os feridos que não podiam abandonar o lugar. Porque alguns não podiam sair dali. Os que podiam, iam andando, mas os que não podiam ali estavam, sem ninguém que os tratasse, porque só estavam lá dois ou três médicos e eles foram feitos prisioneiros. Mas não conseguiu que o deixassem ficar, isso também foi uma grande dor para ele - não conseguir ficar ali ao pé daqueles homens estropiados. E muitos deles nem sabiam porque é que ali estavam.

P.: O que lhe contou sobre o moral dos outros soldados, acabou de dizer que não sabiam porque é que ali estavam. O que lhe disse ele sobre isso também?


R.: Não tinha assim uns termos mais concretos. Era uma confusão, de gritos, de lamentos, misturados com os gritos dos alemães. Era um pavor, era uma situação de pavor, de mistura, misturados a certa altura já quase não sabiam quais eram os boches como eles lhes chamavam, quais eram os boches e quais eram os portugueses porque estavam todos misturados, todos amontoados, caídos uns sobre os outros. O posto clínico transformou-se numa hecatombe, num inferno. Foi a destruição total. E muitos lá ficaram, não é. Alguns que poderiam talvez ter sido salvos e que não foram.



Era essa a sua aflição. Não o terem deixado ficar, o que ele considerava o seu posto. Mas como militar obedecia. Quer dizer em meu pai, eu verificava a dualidade. Era um militar, porque era um militar de carreira, o meu pai chegou até Tenente Coronel, passou à reserva como Tenente Coronel, portanto foi Aspirante, foi Alferes e foi promovido a Tenente já na guerra, portanto era um militar. Portanto como militar obedecia às ordens militares. Mas era um médico, e portanto como médico tinha um ferido a seus pés, que tinha que tratar e não podia, e ele também dizia com os poucos materiais que tinha. Eles também não tinham materiais cirúrgicos, materiais, não tinham, era um pobre posto. Um pobre posto.