Carmo Vicente: a revolta dos páraquedistas na primeira pessoa

por António Louçã, Nuno Patrício

António Carmo Vicente, sargento páraquedista, foi um dos comandantes da ocupação do GDACI, em Monsanto, no 25 de Novembro de 1975. Nesse dia, foi brevemente entrevistado pela RTP, num momento tenso que parecia anunciar a guerra civil. Quarenta anos depois, conta-nos como foi.

No depoimento que prestou à RTP, António Carmo Vicente traça o histórico da radicalização dos páraquedistas. Recorda que, em 11 de Março de 1975, uma companhia da Base Escola de Tropas Páraquedistas (BETP), foi enviada de Tancos a Lisboa, para atacar o Ralis.



Toda a operação traía a sobranceria das chefias militares da tropa páraquedista, contando com uma vitória fácil sobre o Ralis, e esperando encontrar pela frente uma reacção mínima ou nula. Falhou, portanto, em todos os cálculos: sobre a capacidade de resistência do Ralis, sobre a resposta popular e até sobre a disposição da tropa páraquedista para iniciar uma acção de guerra civil contra um regimento de Lisboa.

Datam dessa altura as imagens de confraternização entre páraquedistas sitiantes e soldados do Ralis. Ao regressarem a Tancos, os páraquedistas sentiam-se enganados e queriam pedir contas aos oficiais que os tinham empurrado para a aventura. As consequências para o futuro daquela tropa iam ser duradouras: segundo Carmo Vicente, "a partir dai, foi muito difícil gerir aquela unidade"."O comandante quando viu que não me conseguia calar, dispensou-me da operação e eu disse-lhe: 'Isso era o que o senhor queria. Não estou nada dispensado. Eu sou o comandante do meu pelotão, quem é que vai comandar o meu pelotão?' E no caminho tentei fazer alguma desmobilização, dizendo que só reagiria se fôssemos atacados".

Mas as cúpulas militares continuavam a olhar a tropa páraquedista como pau para toda a obra. A BETP tinha sido o último refúgio do general Spínola e dos golpistas do 11 de Março antes de fugirem para Espanha. E ia voltar a ser escolhida como cenário seguro, em que o Grupo dos Nove se sentiria a jogar em casa, para a Assembleia de Tancos, em 5 de Setembro de 1975.

A reunião foi decisiva para selar o afastamento de Vasco Gonçalves e a decisão de investir o almirante Pinheiro de Azevedo como chefe de um novo Governo Provisório - o sexto.

Dois meses depois, esse Governo decidiu destruir à bomba os emissores da Rádio Renascença, ocupada pelos seus trabalhadores e solidária com a revolução. E, mais uma vez, a tropa páraquedista foi escolhida como instrumento da operação.



Carmo Vicente relata como a sua companhia foi reunida por um capitão, às 3h da madrugada de 7 de Novembro, para acompanhar uma equipa de explosivos. E relata também como levantou objecções a essa operação  e como o capitão lhe propôs que ficasse de fora. Recusando deixar o seu pelotão sob um comando estranho, Carmo Vicente participou então na operação.



Depois de os emissores da Renascença serem destruídos à bomba, os páraquedistas deram conta da aventura em que, mais uma vez, se viam envolvidos. No regresso, decidiram recusar o comando do capitão que os levara para a operação. Este teve de partir. Ia ser o primeiro passo para o abandono da BETP por 123 oficiais, alguns dias depois.

Com a partida do comandante, a Companhia ficou dirigida pelo sargento mais antigo e, na parte operacional, por um triunvirato de sargentos - Carmo Vicente e outros dois.


"Dissemos ao Otelo que a companhia dos páraquedistas em geral estavam à disposição, do lado da revolução. (...) Ele saiu dali para falar com o Costa Gomes e deu a ideia que ia impor alguma coisa ao Presidente da República (...) E pensei: um homem destes, com esta força, sai daqui e vai mesmo. Ah, não fez nada!"
A operação de destruição da Renascença, pelo seu grande impacto político, lançou também a discórdia entre os oficiais e os restantes páraquedistas de Tancos - sargentos e praças.

O chefe de Estado-Maior da Força Aérea, general graduado Morais da Silva, deslocou-se a Tancos para realizar uma reunião com os páraquedistas. Os oficiais reuniram-se com o visitante, mas a grande maioria de sargentos e praças recusaram fazê-lo.



Na sequência deste episódio, 123 oficiais abandonaram a unidade e o chefe de Estado-Maior pôs em marcha a dissolução da BETP. Os 123 ficariam às ordens do Estado-Maior, que deu cobertura a isto que os páraquedistas consideraram uma deserção.

A tropa páraquedista ficou entregue a si própria, com muito poucos oficiais solidários e no essencial sob comando dos sargentos. Às praças foi dada a opção de partirem, se quisessem. Na companhia de Carmo Vicente, estacionada no DGAFA, só um soldado em 130 optou por partir. Em Tancos, foram também muito poucos os desistentes.



Entretanto, os 123 oficiais circulavam pelas unidades, a explicarem os motivos da sua decisão de abandonarem Tancos e a angariarem apoios para a sua posição. Os páraquedistas decidiram responder com um périplo semelhante, destinado à contra-propaganda.

A unidade onde ninguém queria ir era o Regimento de Comandos (Amadora). Tiraram à sorte: a Carmo Vicente saíu a palhinha mais longa e calhou-lhe fazer essa diligência. Fez prometer aos seus companheiros que o resgatariam, a ele e aos outros da delegação, se ficassem presos no Regimento de Comandos.



Levada à presença do comandante da Unidade, Jaime Neves, a delegação foi proibida de se dirigir às tropas e, quando fez menção de sair, foi intimada a ficar - sob prisão. Mas não aceitou, e finalmente saiu.

Carmo Vicente recorda que essa unidade de Comandos em que agora era impedido de entrar era a mesma com quem os páraquedistas estacionados no DGAFA regularmente jogavam animadas partidas de futebol.


Um outro contacto que Carmo Vicente ficou incumbido de fazer foi com o coronel Varela Gomes, por essa altura já afastado da 5ª Divisão. Ao contrário do que poderiam ter esperado, os páraquedistas não encontraram neste militar revolucionário uma atitude de encorajamento ao confronto.

Pelo contrário, Varela Gomes advertiu-os contra o passo que se preparavam para dar e aconselhou-os a tentarem aguentar-se no precário equilíbrio em que se encontravam. De contrário, avisou também, corriam o risco de suscitar o revanchismo da hierarquia.

"Alguem deu a ordem e eu também pensei que fosse o Otelo. Porque se eu soubesse que tinha sido um outro aventureiro qualquer, eu nunca tinha ocupdo o GDACI."

Otelo, pelo contrário, mostrou-se entusiasmado por ter agora os páraquedistas sob a égide do Copcon. Estes desenvolveram a expectativa de que Otelo, forte deste novo apoio, iria exigir ao presidente da República que se demarcasse do Grupo dos Nove. Mas esperava-os uma decepção.

Quando foram dadas ordens aos páraquedistas para sairem e ocuparem as bases da Força Aérea, Carmo Vicente pensou que essas ordens provinham de Otelo, embora hoje tenha dúvidas que fosse realmente essa a fonte.



Para Carmo Vicente, a convicção de que a ordem partira de Otelo era importante, porque seria quase suicida sair para uma operação daquela envergadura sem existir uma coordenação a um nível elevado.

A Carmo Vicente e à Companhia 121, tocou-lhe em sorte ocupar o GDACI, de Monsanto, em que também estava instalado o Comando da Região Aérea. Por isso mesmo coube à Companhia capturar o comandante, general Pinho Freire.



Ao longo da semana anterior ao 25 de Novembro, o "Grupo dos Nove" foi fazendo retirar os aviões que se encontravam estacionados na base do Montijo e foi tratando de concentrá-los em Cortegaça. A manobra revela a preparação que vinha fazendo o "Grupo dos Nove", já com vista ao confronto.





Os páraquedistas, no entanto, podiam facilmente ter ocupado Cortegaça e neutralizado a vantagem de controlo do espaço aéreo por parte da direita militar. Não o fizeram, por suporem que essa ocupação fora atribuída aos fuzileiros, e que havia da parte destes um compromisso de irem por mar até Cortegaça, levando depois a cabo a ocupação.

Carmo Vicente sabe hoje, como diz na entrevista, que os fuzileiros nunca estiveram para ocupar Cortegaça. E pergunta-se como chegou aos páraquedistas a desinformação sobre esse alegado compromisso dos fuzileiros.




No entanto, a superioridade aérea do bloco novembrista não era, de momento, motivo de especial preocupação para os páraquedistas que ocupavam o GDACI.

Quando os aviões vindos de Cortegaça surgiram a sobrevoá-los, e a ameaçar com um bombardeamento, Carmo Vicente recorda: "Até me ri". Um bombardeamento era altamente improvável, não só pela imprecisão dos próprios meios de então, mas também porque os comandos, cercando o GDACI, a pouca distância, seriam também atingidos.





Por volta das 6h da tarde tinham chegado os comandos, e Jaime Neves, por megafone, intimara os páraquedistas a renderem-se. Estes não responderam. Seguiram-se cerca de duas horas de silêncio.

As quatro ou cinco "chaimites" que vinham à cabeça da coluna dos comandos estavam em posição vulnerável, perante dois canhões sem recuo dos páraquedistas. Se fosse dada ordem de fogo, sofreriam pesadas perdas num primeiro momento.



Face a face encontravam-se cerca de 60 páraquedistas e uns 300 a 400 comandos. Os páraquedistas estavam bem armados e entrincheirados, mas com um quartel demasiado grande para defender em tal inferioridade numérica.



Carmo Vicente começou a aperceber-se do beco sem saída em que a sua tropa se encontrava e a ponderar numa retirada. Mas recebeu nessa altura uma chamada de um oficial, identificando-se como sendo do Copcon, que o incitava a permanecer, com a informação - falsa - de que os comandos sitiantes já estariam, por sua vez, sitiados por uma unidade de fuzileiros que teria vindo pela sua retaguarda.

Ainda hoje se ignora a origem dessa desinformação, que poderia ter dado origem a um confronto naquele local. Uma ordem de fogo que foi dada por um oficial da Força Aérea ali presente ficou sem seguimento: os páraquedistas só seguiriam ordens de fogo de Carmo Vicente, ou de um dos dois outros triúnviros da direcção operacional.



Os sargentos que comandavam a companhia deixaram a certa altura de acreditar no anunciado reforço dos fuzileiros e decidiram que era o momento de retirar. Deram a escolher às praças: ou acompanhá-los, ou ficarem, rendendo-se aos comandos. Partiam da suposição de que as praças não seriam presas.

Um pouco mais de 20 decidiram acompanhar os sargentos e partiram com eles a caminho do Ralis. Os restantes entregaram-se.



No Ralis juntaram-se ainda uns 200 páraquedistas: muitos que estavam em licença de fim de semana e vieram juntar-se aos seus camaradas quando souberam que estes estavam envolvidos numa situação crítica; outros, que estavam no Montijo, e vieram também, como companhia intacta, concentrar-se no Ralis.

Diniz de Almeida recebeu os refugiados cordialmente e deu mostras de alimentar ainda expectativas sobre a possível organização de alguma resistência. Mas, acrescenta Carmo Vicente, terá acabado por perder essas ilusões, indo então entregar-se em Belém.

Os páraquedistas, a quem o comandante do Ralis implorava que partissem, acabaram por retirar-se - em camiões que lhes foram cedidos pela unidade. Partiram para Tancos.




Ao chegarem à BETP, caíram num plenário. Os ânimos estavam exaltados, porque "alguns camaradas tinham sido presos, contra todas as nossas expectativas". Faziam-se ouvir vozes a favor de ir a Lisboa libertar os presos. Mas o plenário acabou por concluir que essa expedição seria o caminho sem retorno para a guerra civil.

Uma delegação de quatro sargentos foi então enviada ao Vale do Zebro, para inquirir das intenções dos fuzileiros e saber de que lado estes se encontravam. Em breve ficaram a saber, pelos próprios fuzileiros, que estes só reagiriam se fossem atacados e que estavam do lado deles, fuzileiros.



A delegação de páraquedistas pôde ainda permanecer algum tempo no Vale do Zebro e acabou por sair daí com salvos-condutos que apenas lhe serviam para passar pelos controlos de estrada dos fuzileiros, no seu perímetro próximo."Saimos dentro da ramona, algemaram-nos e ainda por cima não podiam, porque os militares não podem ser algemados, a convenção de Genebra proibe. (...) Três GNRs um de cada lado, a apontar as armas e a recuar, de tal forma que me apeteceu dizer: e se a gente tentar fugir... disparam uns contra os outros?"

Partiram para o Alentejo - Carmo Vicente com a intenção de passar a fronteira. Mas uma multa de trânsito e a ingenuidade dos seus companheiros fizeram-nos cair nas mãos da polícia - num momento em que já havia por todo o lado mandados de captura contra eles.

Outra das "coisas caricatas da revolução" foi o transporte dos presos, por uma companhia da Polícia Militar. Ao pararem num restaurante, Carmo Vicente discursou ao público numeroso desse estabelecimento para explicar os motivos de estarem detidos. Foi aplaudido no final - mas ainda hoje duvida que o público tenha percebido de que lado ele estava e por que motivo devia ser, ou não ser, aplaudido.





Os episódios caricatos da prisão pareciam não ter fim: passados para as mãos da GNR, os sargentos páraquedistas foram levados por guardas de armas apontadas do seu lado esquerdo e direito, à frente deles, a recuarem, e atrás. Carmo Vicente, lembrou-lhes então, com ironia, que, se algum tentasse fugir, os guardas, pela posição em que estavam, disparariam uns contra os outros.



Foram depois entregues aos comandos, e tiveram de passar entre alas, sob os insultos da tropa vencedora e ser sujeitos a interrogatórios de várias horas, com muita vontade de recolher confissões mas competência obviamente limitada.



Finalmente, transferidos para Custóias, aí foram mantidos, em rigoroso isolamento. Carmo Vicente recorda que foi metido numa cela com 1,8x2 metros de comprimento, com um balde para as necessidades. E apenas podiam sair da cela uma vez por dia, porque os guardas não queriam ser eles a despejar o balde.
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