Quando o livro de estilo do Financial Times não aguenta os mamilos de Modigliani

por Paulo Alexandre Amaral - RTP
Peter Foley - EPA

Está a tornar-se doentia a forma como os media mais formais lidam com a arte contemporânea, mesmo que se esteja a falar de material mais estimado do que títulos do tesouro. O caso mais recente é o de Amedeo Modigliani, cujo “Nu deitado” valeu esta semana 170 milhões de dólares, passando a segundo quadro mais caro depois das “Mulheres de Argel” de Picasso (179,3 milhões). A questão são os mamilos e a zona púbica retratada pelo pintor italiano dois anos antes de morrer jovem, de meningite tuberculosa e na completa miséria. Faltava agora o Financial Times achar que o génio italiano exorbitava na sua interpretação do corpo feminino. Mas não só o jornal de referência.

Amedeo Modigliani podia ser intratável, podia ser genial, podia ser pobre e certamente foi todas estas coisas. Um mestre modernista que morreu aos 35 anos em situação muito precária, quase sem um tostão.
A musa de Modigliani, Jeanne Hébuterne, também sua mulher e amante, deu-lhe uma filha e estava grávida de nove meses quando este morreu, na noite de 24 de janeiro de 1920. No dia seguinte, Jeanne suicidou-se, atirando-se de um quinto andar.
A grande curiosidade é hoje – neste ano de 2015 – saber o que diria Modigliani aos editores do Financial Times que colocaram uma barra a tapar o mamilo e a zona púbica da mulher retratada no “Nu deitado” adquirido esta semana por um investidor chinês.

E também aos editores da CNBC americana que desfocaram as mesmas zonas, aos editores da Bloomberg que cirurgicamente extraíram o mamilo da mulher e lhe retiraram os pelos púbicos. Modigliani é, 98 anos depois, mais do que podem aguentar os livros de estilo de alguns jornais e televisões.




Estranhamente, as televisões e jornais em causa defendem o rigor da informação. Por exemplo, a Bloomberg não diz que o quadro “Nu deitado” foi leiloado por 170 milhões de dólares. Faz questão de referir que o valor atingido foi de 170,4 milhões de dólares. Da mesma forma, o primeiro nome de Modigliani é assinalado como Amedeo e não Amadeo, como seria de pensar. No entanto, os mesmos critérios de inteireza não impediram que a obra tenha sido completamente mutilada, como se Modigliani fosse um inapto que cometeu erros demasiado graves neste nu.




Mas este não é caso nem único nem pioneiro. Há meio ano, os ultraconservadores da Fox News fizeram igualmente um blur sobre os seios das mulheres que apareciam no “Les Femmes d’Alger” (na designação original) de Pablo Picasso. O quadro é o mais valioso de entre todos os que foram levados a leilão, tendo chegado aos 179,3 milhões de dólares em maio deste ano.

Mas a cadeia de televisão norte-americana não quis arriscar mostrar os seios destas mulheres. Não apenas o mamilo, mas todo o seio. Alguns críticos de arte chamaram os responsáveis da Fox News de “sexualmente doentes”. E no entanto reproduzem-se: meio ano depois aqui estão eles a fazer escola.
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