A olhar para o lado errado

por Filipe Vasconcelos Romão, comentador Antena 1 de Assuntos Internacionais
Por muito poucas que sejam as simpatias suscitadas por Trump, devemos reconhecer que esta é uma vitória, no essencial, sua Roman Pilipey - EPA

A partir do estrangeiro, tende a olhar-se para os Estados Unidos à luz da sua política externa, sem que haja uma noção exacta de que, como em qualquer outro país, o debate político gira sobretudo em torno de questões internas. Ao contrário do que ocorreu aquando da reeleição de George W. Bush (2004), Donald Trump, à semelhança de Barack Obama, foi eleito por corporizar discursos anti-sistema centrados, essencialmente, em problemas nacionais. Não por acaso, ambos derrotam Hillary Clinton (Obama nas primárias democratas de 2008 e Trump na eleição presidencial de 2016), entendida pela generalidade do eleitorado como alguém que corporiza o tão desprezado “sistema”.

Por muito poucas que sejam as simpatias suscitadas por Trump, devemos reconhecer que esta é uma vitória, no essencial, sua e que dificilmente seria alcançada (desta forma e nestes estados) por outro candidato republicano. O seu discurso inflamado e arrogante que acompanhou toda a campanha, sabe-se agora (e só agora), foi fundamental para arregimentar e fixar um eleitorado desprezado pela campanha adversária e por boa parte dos comentários e análises relacionadas com estas eleições.

Durante muitos anos, andámos a falar sobre as alterações demográficas que conduziriam a mudanças no comportamento eleitoral dos norte-americanos, partindo do princípio de que um aumento do peso das denominadas “minorias” latina e afro-americana permitiria superar a denominada “maioria” branca. Também supusemos que o seu voto liberal, conjugado com o voto dos liberais da “maioria” branca, levaria os democratas a autênticos “amanhãs que cantam” com décadas de poder. Porém, falhámos ao desvalorizar a possibilidade de mudança na direcção do voto e na participação, em função das alterações que os Estados Unidos enfrentam.

Depois das eleições, voltar a ver os três debates entre Clinton e Trump pode permitir a sua reinterpretação. Enquanto todos nos vangloriávamos pela vitória da mais do que previsível primeira mulher Presidente, Trump vangloriava-se por ter conseguido passar uma mensagem destinada a um público muito específico: o eleitor branco, descontente e sem qualquer esperança no “sistema”. O único que poderia garantir a sua eleição. Por cada analista indignado com os apartes desagradáveis, banais e vulgares de Trump, milhares de norte-americanos vibravam ao ponto de votar quando não pensavam fazê-lo.

Uma pergunta ficou no ar e tem sido repetidamente feita desde a eleição: Bernie Sanders poderia ter feito melhor do que Hillary Clinton, ao ser também ele um candidato anti-sistema? É difícil ter uma resposta cabal. Parece evidente que o seu discurso teria ido mais ao encontro do eleitorado tradicionalmente democrata de estados industrialmente mais deprimidos, como o Wisconsin ou o Michigan. Porém, não nos podemos esquecer de que Sanders se assume como um socialista e de que esta autodefinição dificulta muito a vida a um candidato presidencial nos Estados Unidos. Muito provavelmente, o “socialismo” assumido de Sanders teria sido amplamente utilizado pela campanha de Trump que, como se viu, tem um enorme potencial para arregimentar conservadores.
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