Cultura
Guerra na Ucrânia
Criticar ou ser cúmplices da guerra e de Putin. Artistas russos chamados ao palco político
O coreógrafo Alexei Ratmansky criticou o bailarino Mikhail Baryshnikov por este apelar à tolerância para com os russos mais proeminentes que não ergam a voz contra o conflito na Ucrânia.
“É humilhante pensar que os bailarinos deveriam apenas dançar e concentrar-se na sua arte, ignorando o que se passa em torno deles”, afirmou Ratmansky no Facebook a 22 de março, em resposta também a Vladimir Putin, que criticou o cancelamento da "cultura" russa por parte do ocidente.“Não possuem apenas bonitas pernas, também têm cérebros e corações”, opinou o coreógrafo.
Dias antes, Baryshnikov tinha considerado injusto castigar aqueles que mantinham uma posição neutral, “que pode ser considerada poderosa em pessoas tão expostas”. “Não creio ser correto colocar o peso das decisões políticas de um país nos ombros de artistas ou atletas, que podem ter familiares vulneráveis no seu país de origem”, afirmou o bailarino, que fugiu da União Soviética em 1974.
“É difícil concordar com Misha”, contrapôs Ratmansky, usando o diminutivo de Baryshnikov e lembrando a cumplicidade de muitos nomes sonantes da vida cultural russa com o presidente e o seu apoio dado à anexação da Crimeia em 2014.
Catadupa de demissões
O agora ex-coreógrafo do Teatro Bolshoi, que após a invasão abandonou a Rússia com toda a sua equipa em plenos ensaios de uma nova produção e que admitiu ao New York Times não regressar à Rússia enquanto Putin estiver no poder, não está sozinho nas suas críticas.
Logo no primeiro dia de guerra, Yelena Kovalskaya, diretora do prestigiado teatro estatal russo Meyerhold Center, demitiu-se em protesto chamando “assassino” a Putin. “Não posso trabalhar para um assassino e ser paga por ele”, afirmou Kovalskaya no Facebook, seguida pelo resto da companhia.
O curador Raimundas Malašauskas e os artistas Kirill Savchenkov e Alexandra Sukhareva, representantes da Rússia na Bienal de Veneza, também se demitiram, num gesto caracterizado como “nobre e corajoso” pela organização do evento.
A bailarina Olga Smirnova, uma das mais brilhantes bailarinas da Rússia, trocou por seu lado a companhia de bailado Bolshoi pela Companhia Nacional de Bailado dos Países Baixos, em protesto contra a invasão. “Nunca pensei sentir vergonha da Rússia”, escreveu nas redes sociais, no mesmo dia em que uma conhecida jornalista russa recusou continuar a ser cúmplice do regime russo.
O maestro Selyon Bychkov cancelou concertos previstos em breve com a Orquestra Sinfónica Nacional da Juventude Russa e um dos mais famosos rappers e celebridades da Rússia, Oxxymiron, cancelou seis espetáculos já esgotados.
“Por mais que se tente explicar que não é agressão mas defesa, não foi a Ucrânia quem invadiu o território russo. É a Rússia a bombardear um estado soberano neste momento”, explicou o músico na sua conta Instagram.
Tempos negros
Mais de 17.000 artistas e funcionários da cultura russa subscreveram logo a 25 de fevereiro uma carta “contra a guerra”. “Qualquer imposição da paz através da violência é absurda”, afirmaram.
Amplamente divulgada por toda a Rússia nos dias seguintes, a carta antevia tempos negros para o setor. “O envolvimento com a cultura e as artes será quase impossível nestas condições”.
Uma previsão que se revelou profética.
Novas leis emanadas do Kremlin proibiram em meados de março quaisquer referências negativas à guerra e ao exército russo com as penas a ir de simples multas até aos 15 anos de prisão.
Dmitry Vilensky, do coletivo artístico russo Chto Delat, afirmou ao Art Newspaper que o Governo russo tornou praticamente impossível protestar “contra o que se passa”.
“Muitas pessoas da cena artística contemporânea russa não apoiam a deriva reacionária nas cenas cultural e política da Rússia e certamente não apoiam qualquer colonialismo e [ação] militar na Ucrânia”, afirmou, “mas devido ao controlo apertado da atmosfera pública, é difícil articular o seu desacordo publicamente, além de publicações nas redes sociais”.
Há quem organize angariações de fundos a favor da Ucrânia, como Baryshnikov e Nadia Tolokonnikova, das Pussy Riot, e quem boicote museus e galerias de arte a partir do exterior.
Calar ou protestar
Entretanto, a ocidente, em poucos dias as portas fecharam-se a todos os que na cultura e no desporto não tomaram posição contra o presidente russo e o conflito na Ucrânia.
Salas como a Ópera Metropolitana de Nova Iorque cortaram laços com os artistas que não se oponham ao senhor do Kremlin, a Royal Opera House de Londres cancelou uma digressão do Bolshoi, o Festival Eurovisão da Canção negou a participação russa este ano, a Disney, a Sony e a Warner Brothers desmarcaram estreias dos seus filmes e os campeonatos mundiais de Patinagem Artística ficaram marcados pela ausência dos atletas russos.
Vladimir Putin chamou-lhe o “cancelamento” e a “discriminação gradual de tudo o que esteja ligado à Rússia”.
“Estão a tentar cancelar toda uma cultura de mil anos, o nosso povo”, acusou o Presidente russo.
Dois dias depois, Yevgenia Isayeva, uma artista russa encharcou-se em sangue falso na escadaria da assembleia municipal de São Petersburgo, repetindo a frase “o meu coração sangra”. Foi detida e levada pela polícia.
O protesto solitário de Isayeva contra a guerra ecoou o de Elena Osipova, pintora de 76 anos na mesma cidade. Fez cartazes contra Putin, retratando-o como um demónio. “Não queremos morrer por Putin” referia num deles. Levou-os para a rua ao quarto dia de guerra e gerou algum apoio antes de ser detida e levada. Ainda não recuperou os cartazes.
A esperança de Osipova, como a de Ratmansky, é que apesar de tudo a sua arte exprima a sua indignação e inspire outros.
"Responsabilizados"
Na sua tomada de posição no Facebook e em resposta ao "cancelamento" invocado por Putin, o agora ex-coreógrafo do Bolshoi lembrou a carta de 2014 em que mais de 500 figuras conhecidas das artes russas, incluindo muitos bailarinos, apoiaram a anexação da Crimeia defendida por Putin.
“Após esta carta”, escreveu, “todo o espetáculo ou qualquer ação destes 500 pode ser vista como um ato de propaganda. Especialmente por parte dos que foram atuar no ocidente. Estas pessoas fizeram uma forte declaração pública em apoio às ações ilegais do presidente. Entraram no jogo político e por isso deveriam ser responsabilizadas ou no mínimo ser questionadas seriamente.”“Foi precisamente devido a este apoio das figuras mais visíveis da cultura russa que Putin conseguiu o seu poder ilimitado que agora usa contra a humanidade nesta guerra sangrenta que está a destruir a Ucrânia”, acusou Ratmansky.
“O assassínio em massa das pessoas inocentes na Ucrânia é perpetrado também em seu nome, no nome da Grande Rússia da Cultura que até há pouco era tão admirada no mundo inteiro”, lamentou o coreógrafo, que cresceu na Ucrânia e que tem família em Kiev.
O coreógrafo afirmou ainda que não acredita que muitos dos bailarinos com quem trabalhou na Rússia estejam assim tão ignorantes do que se passa na Ucrânia. Simplesmente "preferem" apoiar Putin. "É o ponto de vista que escolhem".
Tal como Smirnova, Ratmansky foi acolhido no ocidente e tem um novo cargo no American Ballet Theater, com quem estreou o seu bailado The Seasons em São Francisco durante o qual expôs uma gigantesca bandeira ucraniana no palco. Está agora em Munique a preparar nova estreia.
Destino oposto ao da cantora de ópera Anna Netrebko e do maestro Valery Gergiev.
De estrelas a proscritos
Anna Netbreko, que tem ligações a Vladimir Putin e que chegou a ser fotografada com a bandeira de separatistas russos, já tinha visto cancelado um concerto a 25 de fevereiro na Dinamarca e a sua participação na ópera Turandot de Puccini em abril está em risco. Anna afirmou “não sou uma pessoa política” para justificar a sua neutralidade perante a guerra.
Juntamente com o marido, o cantor azeri Yusif Eyvazov, a intérprete lírica publicou um comunicado com apelos à paz. “Forçar artistas ou quaisquer figuras públicas a dar voz pública às suas opiniões políticas e a denunciar a sua pátria não está certo”, afirmaram os artistas. “Devia ser uma escolha pessoal”.
Já Gergiev parece ter o destino traçado.
Amigo próximo de Putin há mais de 30 anos, o maestro viu cair subitamente a pique o seu prestígio nas salas mais emblemáticas do mundo por recusar abandonar o apoio ao Presidente. Foi demitido do cargo de maestro da Orquestra Filarmónica de Munique e da direção de diversos festivais.
Gergiev foi ainda substituído pelo Carnegie Hall de Nova Iorque em três concertos com a orquestra Filarmónica de Viena. A prestigiada sala também cancelou dois espetáculos de maio de Gergiev com a Orquestra Mariinsky e um concerto com o pianista pró-Putin Denis Matsuev.
A Ópera de Milão, a La Scala, cancelou por seu lado um concerto liderado pelo maestro no início de março.
O maestro perdeu ainda o seu agente, Marcus Felsner, que considerou “impossível” continuar a defende-lo, “um dos maiores maestros de todos os tempos” que “se recusa, ou não pode, terminar o seu apoio expresso há muito a um regime que tem estado a cometer tais crimes”.
Como consolação, Vladimir Putin ofereceu ao seu amigo a direção tanto do Teatro Bolshoi como do seu principal rival, o Ballet Mariinsky de São Petersburgo, antigo Kirov, de acordo com a agência Tass. Gergiev terá considerado uma boa ideia “coordenar esforços” das duas companhias.
Nem todos no mundo das Artes apoiam estas exigências de posição política. Como Baryshnikov, lembram que a cultura serve para construir pontes e que as sanções de opinião não têm nela lugar.