Génesis, viagem ao berço da Terra pela mão de Sebastião Salgado

por Andreia Martins, RTP
Retrato obtido pelo fotojornalista Pedro A. Pina durante a montagem da exposição de Sebastião Salgado em Lisboa Pedro A. Pina, RTP Online

O fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado esteve nos locais mais recônditos do mundo e está agora em Portugal para contar e mostrar o que viu. Génesis vai estar em exposição no Torreão Nascente da Cordoaria Nacional, em Lisboa, até 2 de agosto. Fomos explorar o trabalho completo publicado em livro, um documento único e perene que imortaliza a parte da Terra que o homem ainda não destruiu.

Tal como o primeiro livro da Bíblia, também este Génesis, etimologicamente a palavra grega para “origem”, trata “o princípio de tudo” de um mundo que não mudou em milénios. As 250 imagens que compõem a exposição já foram vistas por mais de dois milhões de pessoas desde a inauguração em Londres, há dois anos, e chegam esta quinta-feira ao público português.

Génesis (Taschen) é o resultado de 32 viagens e oito anos de fotografias em condições extremas. Mas antes de ser exposição, este trabalho foi livro. Revisitamos as imagens que chegaram a público em 2013 e que compreendem desde a Antártida profunda até aos desconhecidos povos da Sibéria e outros santuários do mundo, intocados pelo homem.
Alma doente
O trabalho de grande fôlego sobre um planeta isolado da civilização partiu de um homem doente, ferido, profundamente afetado pelos cenários de guerra onde trabalhou. Ao assistirmos ao filme que entra também esta quinta-feira nos circuitos comerciais, confirmamos a força com que Sebastião Salgado foi abalado – a guerra no Ruanda, a seca profunda, a fome em Sahel, a destruição no Iraque, as calamidades da Bósnia.


Pedro A. Pina, RTP Online

“Tinha perdido toda a fé na humanidade”, confessou Salgado em várias ocasiões. Depois de Trabalhadores – Uma arqueologia da Era Industrial, terminado em 1993 e Êxodos (Editorial Caminho), de 2000, dois trabalhos, entre outros, de grande dureza, o fotógrafo sentiu-se “destruído”.

Durante anos, Salgado manteve-se distante da máquina fotográfica e quis voltar à terra onde nasceu. Deparou-se então com a erosão e desflorestação de uma floresta outrora fértil, que havia alimentado e sustentado a família durante a infância.

O “Instituto Terra” fundado em 1998, regenerou um ecossistema de quase dois mil hectares, com a plantação de quatro milhões de sementes.

Lélia, a esposa de Salgado que sempre acompanhou e apoiou o fotógrafo de 71 anos, teve a ideia de replantar árvores e trazer a vida de volta ao vale familiar.

Na zona de Rio Doce, em Aimorés, no Estado brasileiro de Minas Gerais, Salgado e a família combateram os efeitos nefastos do homem sobre a terra e começaram por cultivar mais de 300 espécies diferentes de árvores. A implantação desta ideia regenerou todo o ecossistema do local e trouxe de volta a Mata Atlântica então arruinada.
Homenagem ao planeta

Maravilhados, ambos, com a possibilidade de a Natureza se conseguir reestabelecer em tão pouco tempo e com relativa facilidade, cresceu o desejo de fazer algo pelos recursos naturais da terra sob ameaça.

Para além dos quatro milhões de sementes plantadas em Rio Doce, Génesis também foi uma semente nascida desta iniciativa: “A Natureza e a Humanidade não se podem separar. (…) A ruptura com os vínculos que temos com a Natureza constitui uma ameaça”, pode ler-se no prefácio do livro. “Cerca de 46 por cento da Terra permanece como estava no tempo do Génesis”. Foi esta a nova premissa com que Salgado partiu para uma aventura de oito anos, numa epopeia de pela vida obscura do planeta.


A primeira abordagem pensada para um novo projeto fotográfico foi a mais usual: mostrar e denunciar as mazelas que a urbanização e a ação do homem deixam no planeta Terra. Mas à porta de casa estava a prova de que a Natureza tem a capacidade de voltar à vida e de se restituir totalmente.

Génesis é “a carta de amor à Terra”, é a homenagem de Salgado à beleza da natureza, mas também a prova da sua grande fragilidade.


Sebastião Salgado/ Amazonas Images
Natureza, animais e povos

Em Génesis, Salgado estreou-se na fotografia de paisagens e natureza depois de ter dedicado décadas a registar o sofrimento humano. A ode visual à imponência e fragilidade da Terra mantém o preto e branco tão característico do seu trabalho, onde a textura de cada imagem nos conta a história e a profundidade dos instantes de um mundo sagrado e intemporal em que se embrenhou.

Não fosse a ligação bíblica óbvia que deriva da denominação do trabalho, Génesis propõe-se a um caráter quase divino. A iconografia latente nas imagens é acentuada pela força dos contrastes e pelas emoções.

Tal como a exposição, também o livro foi dividido em cinco diferentes temáticas e áreas geográficas: “Sul do Planeta”, onde vemos os pinguins e espécies características da Antártida e do extremo sul da Argentina e Chile; “Santuários”, com especial enfoque nas ilhas Galápagos, com os retratos das tribos de Sumatra e Nova Guiné; “África”, um local que fascinou o fotógrafo desde a primeira viagem, um regresso “feliz”, para acompanhar o início da humanidade, com enfoque na Etiópia, Uganda e toda a região do Sahara; “Espaços a Norte”, confins da Sibéria, regiões desconhecidas da Rússia, parques naturais do Alasca e no interior dos Estados Unidos; e finalmente, um último capítulo é dedicado à “Amazónia e Pantanal”, aos povos e culturas da América do Sul, à riqueza de fauna, flora e etnias que a região encerra.

O fotógrafo brasileiro regressa a Portugal com a sua "homenagem à natureza", exposta a partir de hoje no Torreão Nascente da Cordoaria Nacional, em Lisboa, até 2 de agosto. Oito anos e 32 viagens, uma epopeia pelo planeta desconhecido que o homem moderno ainda não transformou. Génesis é “a carta de amor à Terra”, o testemunho da beleza da natureza, mas também a prova da sua grande fragilidade. A exposição contou com a curadoria da mulher, Lélia Wanik Salgado.

A primeira expedição da lista, realizada em 2004, foi simbólica pelo testemunho da memória evolutiva. Sebastião Salgado arrancou com o projeto nos Galápagos, o mesmo território onde Darwin chegou num HMS Beagle, em 1835, numa viagem decisiva para a elaboração da Teoria Evolucionista.

Num cenário exótico entre as tribos Korowai e Yali, com hábitos de canibalismo e casas situadas a seis a 25 metros do solo, e as espécies endémicas dos Galápagos e Madagáscar, Salgado constrói a admiração pela tartaruga gigante, que pode viver até 150 anos. “Quem sabe esta mesma tartaruga não se tivesse cruzado com o próprio Darwin”, imagina o fotógrafo no filme de Wim Wenders hoje lançado.

A dignidade que confere aos elementos da natureza que encontra e fotografa, é aliás, uma marca do trabalho que viria a desenvolver nos anos seguintes, perante animais, perante a natureza morta. Na textura palpável do mar, nos retratos de momentos de confronto intimo entre elefantes marinhos, nas histórias ancestrais das montanhas e vales do Parque Natural do Alasca, no delineado surrealista das rochas do Grand Canyon, nas cerimónias e ritos singsing da tribo Yenchen e Kanganaman, na pose dos elefantes marinhos da Antártida que, por mediação, deixam que lhes sintamos a espessura da pele.


Sebastião Salgado/ Amazonas Images
Nós, humanos
Espécies, locais únicos e consagrados de um planeta onde dificilmente se chega, sob as condições mais extremas. Ao conhecermos Génesis, exploramos também o nosso próprio mundo e somos levados a conhecer os locais, cordilheiras, mares, ilhas e peculiaridades pouco conhecidas e que um comum mortal poucas vezes tem oportunidade de presenciar.

Olhar para as fotografias nas dunas desérticas da Zâmbia transporta-nos para uma nova dimensão espácio-temporal, e compreender a cultura, mitos e tradições dos povos isolados do Botswana, ou perceber as noções da vida de tribos no Sudão do Sul, totalmente desfasadas dos costumes ocidentais, povos como os Nenets, na península de Kamchatka, que espelham no rosto a tenacidade e a dureza de uma comunidade nómada que escolhe viver em constantes temperaturas negativas, conduzem-nos para um plano completamente paralelo ao da História, sem fronteiras políticas e o discurso ocidentalizado.


Sebastião Salgado/Amazonas Images

Se na abordagem de Salgado a fotografia é a arte da paciência, a aproximação ao objeto fotografado é também a arte do respeito perante o mesmo. De outra forma não seria possível captar o movimento monstruoso de uma baleia-franca-austral, que evita qualquer movimento brusco e até se deixa tocar por uma pequena tripulação próxima. De outra forma não seria possível a beleza estética dos retratos de zebras, leões, elefantes e leopardos, num encontro cara-a-cara com a Savana africana. 

Salgado não poderia deixar de homenagear também a Amazónia, o pulmão da Terra, tão brasileiro e tão rico de fauna, flora, espécies animais e indígenas. No interior da América do Sul encontramos o Pantanal, os misteriosos Zo’é, um parque indígena Xingú, em Matogrosso, “do tamanho da Bélgica” e voltamos a ver Adão e Eva, na simplicidade e na nudez, mas com as afinidades e vínculos familiares, e os traços da juventude e velhice, vemos, enfim, o berço da humanidade. 

No âmago de Génesis está uma conceção pouco otimista para o ser humano. O Homem na sua natureza é insignificante e exíguo para a Terra. Por mais que a destrua, a sua relevância é transitória e não ultrapassa a de qualquer outra espécie.
  
Mas o que é efémero é aqui eternizado no preto e branco, nos tons neutros preenchidos e densos, quase palpáveis.  

Sem quaisquer aspirações científicas, antropológicas ou documentais, o fotógrafo reúne um espólio valioso e consegue incluir-se nos vários campos de estudo. Por eternizar uma importante herança onde a terra virgem e inviolada é documentada, fará sentido regressar e estudar o seu trabalho ao longo das próximas décadas. Hans-Michael Koetzle, fotógrafo alemão, grande conhecedor da história da fotografia, considera Sebastião Salgado “uma espécie de Henri Cartier Bresson do final do século XX. Salgado é um especialista em ícones. O que fotografa torna-se em fórmula para o destino”.
Tópicos
pub