Museu de Lisboa. Reserva Central abre pela primeira vez ao público

por Carla Quirino - RTP
Carla Quirino - RTP

Neste Dia Internacional dos Museus, as pessoas que se inscreveram na iniciativa inédita do Museu de Lisboa podem visitar peças do espólio que poucas vezes - ou nunca - chegaram ao olhar do público. Entre mobiliário do século XVI e pendões têxteis do Cortejo Histórico na capital em 1947, viaja-se no tempo e no trabalho invisível da conservação, restauro e gestão de coleções. A mostra está na Reserva Central, nas Laranjeiras.

O projeto Reserva Visitável abre portas esta quinta-feira, pela primeira vez, mas por apenas duas horas e a um número limitado de 15 pessoas.

Com o objetivo de dar a conhecer "uma ponta do icebergue" do trabalho que está por trás da gestão de bens patrimoniais, a Reserva Central do Museu de Lisboa foi reorganizada, tanto para ganhar espaço para novas incorporações assim como para facilitar a preservação dos objetos.

Um dos exemplos que a cordenadora do serviço de Corservação e Restauro do Museu de Lisboa, Aida Nunes, partilha com a RTP é a história de dois pendões têxteis que integraram o Cortejo Histórico de 1947.

O desfile assinalava os 800 anos da tomada de Lisboa aos mouros e foi desenhado por Leitão de Barros, na vigência do Estado Novo, para enaltecer o "orgulho nacional". O cortejo recuou Ao período áureo das descobertas e do reinado de D. Manuel I e retratou os diferentes setores da sociedade lisboeta, com trajes de época. Entre artífices de várias ordens religiosas, os grupos apresentavam-se com os respetivos pendões identificados.

Entre 1947 e 2009, os pendões estiveram em depósitos, arrumados sem cuidados de preservação, onde sofreram inúmeros danos. De um conjunto de 17 pendões acolhidos na reserva, dois podem ser vistos durante a visita.


Têm entre três metros de altura por dois, em média. Para estarem suspensos sem sofrerem tensões, foi encontrada uma solução com recurso a suportes colocados na retaguarda do tecido. Cada pendão foi preso nas laterais e topo, de forma a que o peso fosse distribuído | Carla Quirino - RTP 

Os objetos são de "matéria finita". Por isso, a conservadora realça a importância do trabalho preventivo realizado nas reservas. Para controlar e minimizar o impacto das agressões externas nas peças, o espaço de reserva tem que cumprir vários preceitos.

"Este espaço não é mais um museu que se abre, não foi pensado para isso. O conceito é visitas de excelência, é levantar a ponta do véu, mas não com caráter de regularidade para não pôr em causa a preservação das coleções. Habitualmente as áreas estão fechadas e só se entra para fazer uma verificação visual dos objetos.

"Monitorizamos os parâmetros convencionados de estabilidade para os objetos: temperatura a 18 graus e humidade relativa da sala a 50 por cento", explica. "Se passarmos a ter grupos com frequência, os parametros serão afetados. Por isso as visitas têm que ser pontuais".

No mesmo corredor fica-se a conhecer dois gigantes espelhos do séc XVIII, revestidos a folha de ouro, que nunca foram expostos. Chegaram ao Museu na última década. "Não se conhece a proveniência. Deram entrada no edífício da reserva em 2009. Eram seis mas apenas dois foram possiveis preservar.  Desde 2009 até 2018, estiveram sob paletes no corredor porque o espaço estava muito preenchido", descreve Aida.

Com os novos  métodos de organização, foram "desenhadas estruturas que aproveitam as vigas azuis já existentes" e os espelhos poderam "finalmente ser colocados sem consumirem espaço útil da sala", acrescenta.

Durante o ano de 2019, os espelhos foram intervencionados e em 2020 veio a pandemia. Por isso ainda não foram expostos fora da reserva. Nesta sala "passamos a ter uma entrada muito interessante com objetos provenientes de palácios e de igrejas". Os espelhos aqui colocados "criam uma profundidade de campo impressionante", remata a conservadora.


Os espelhos enquadram-se nos finais do séc. XVIII, princípios de XIX. Os espelhos são feitos em madeira com elementos decorativos modelados em gesso, revestidos a folha de ouro | Carla Quirino - RTP

À RTP, Paulo Almeida Fernandes, coordenador do serviço de Investigação e Inventário do Museu de Lisboa, explica que “a Reserva Central do Museu de Lisboa reúne bens que começaram a ser depositados nas coleções municipais há mais de um século”.

A coleção de objetos culturais é um testemunho da história das várias Lisboas ao longo dos tempos. “É uma reserva eclética que espelha a complexa história do museu e os seus muitos momentos de incorporação”, sublinha.

São cerca de 100 mil objetos que constituem o acervo do Museu de Lisboa. Para além das atuais exposições, os materiais estão distribuídos por três reservas: a central, a secundária, onde se concentram a azulejaria e as maquetas e ainda uma terceira, destinada sobretudo a objetos em pedra.

A diversidade de espólio espraia-se numa ampla cronologia. Os bens culturais mais antigos incorporados na coleção são “procedentes das escavações arqueológicas realizadas na área de Monsanto e dizem respeito a artefactos pré-históricos em sílex”, descreve Paulo.

O investigador estaca que “como museu de cidade, o acervo documenta, sobretudo, as diferentes etapas constitutivas de Lisboa, desde os primeiros povoadores até à atualidade”.

Num outro corredor, revisita-se pintura a óleo do projecto de Fernando Silva para o Parque da Liberdade em 1900 (atual Parque Eduardo VII). O quadro fez parte de uma Exposição Universal em Paris, também em 1900.


Reinterpretação de Fernando Silva para o atual Parque Eduardo VII (a meio). O quadro foi incorporado na exposição "A Lisboa que teria sido" em 2017, instalada no Pavilhão Preto do Palácio Pimenta | Carla Quirino - RTP

Paulo Almeida Fernandes acrescenta que “o período mais bem representado nas coleções do museu é o século XIX, altura de grandes modificações urbanísticas e um desenvolvimento sem precedentes da cidade para norte”.
História do espaço
O edifício que hoje acolhe a reserva central do Museu de Lisboa foi construído na década de 90 do século XX para o Centro de Informática do Grupo do Banco Comercial Português (BCP).

No início de 2000, no âmbito de uma permuta, o edifício passou para as mãos da Câmara Municipal de Lisboa. Foi “transformado em espaço de reserva para as coleções do então Museu da Cidade (designação alterada para a atual - Museu de Lisboa, em janeiro de 2015), criando-se espaços próprios para cinco categorias de objetos - mobiliário, cerâmica, têxteis, pintura e obra gráfica”, explica a coordenação.

“O crescimento das coleções determinou a necessária transformação e adaptação dos diferentes espaços, criando condições para o correto acondicionamento dos novos objetos”, acrescenta Aida Nunes.

Nos últimos anos, o Museu de Lisboa investiu nas reservas, de forma a criar espaços específicos para cada coleção, dotados de equipamentos de acondicionamento adequados às diferentes tipologias de objetos referem os coordenadores.

“A quantidade e diversidade do acervo determinou que, de acordo com as boas práticas internacionais, fossem destinadas salas específicas de acordo com as diferentes tipologias”, observa Aida. Neste processo, houve também “um reforço no inventário e na fotografia documental de alta resolução” para um melhor registo dos objetos.

Para tornar a Reserva Central visitável, equipas especializadas nas áreas de conservação e restauro e gestão dos acervos museológicos trabalharam em conjunto para dar a conhecer muito do espólio que muitas vezes fica de fora das exposições.
Reserva Visitável
Em 2011 o ICCROM - Centro Internacional de Estudos de Conservação e Restauro dos Bens Culturais e a UNESCO definiram 11 critérios de qualidade para uma reserva museológica ser considerada profissional.

Nesse sentido, “o Museu de Lisboa, em parceria com o ICCROM, realizou em outubro de 2018 o workshop internacional Re-Org Lisboa". Nesses trabalhos estiveram presentes mais de 20 conservadores e gestores de coleções nacionais e internacionais. Durante 15 dias e sob a orientação de Gaël de Guichen, responsável pela conservação da gruta de Lascaux em França, o grupo "reorganizou seis salas, aplicando o método Re-Org criado pelo ICCROM”, explicaram os coordenadores.

“No final foram alcançados todos os objetivos inicialmente propostos: a reserva central cumpria os onze critérios de qualidade de uma reserva profissional, podendo uma sala ser visitada, por marcação prévia, cumprindo-se, desta forma, o projeto “Reserva visitável”, concluíram.

Deste dia em diante, "podemos contar histórias sobre a cidade e a evolução dela, a partir destes objetos, numa única sala", reitera Aida.
Bastidores da Reserva
Grande parte do trabalho no Museu de Lisboa (em qualquer museu) é invisível para o público em geral, explica Aida. "Quando visitamos uma exposição e vemos as peças selecionadas, não se imagina o trabalho que está por trás de acondicionamento, restauro, correta arrumação, etc".

A importância de dar a conhecer ao público o acervo da Reserva "representa o contacto com um mundo mais desconhecido dos museus, onde as peças se encontram em repouso e sujeitas a um ambiente controlado (também de acessos)", sublinha.

Aida Nunes afirma que o Serviço de Conservação e Restauro é posto à prova diariamente no seu contato com os objetos.

Na Reserva Visitável, pode ser visto um conjunto de mobiliário que com a intervenção da arte do restauro têm revelado novas narrativas.

Um dos exemplos é esta cadeira, enquadrada nos fins do séc. XIX, início de XX. Apenas recentemente foi possível conhecer a decoração com revestimento em folha de ouro. Depois da limpeza e hidratação da madeira durante o restauro, é "possível começar a ver que havia cores diferentes".
 

Chegou-se então à conclusão de que "alguns dos elementos decorativos estavam cobertos por folha de ouro. Portanto há uma riqueza que nós durante muito tempo não percebemos", salienta Aida | Carla Quirino - RTP

Os investigadores destacam também uma outra peça de mobiliário: a cadeira do séc. XVI de madeira de teca entalhada e palhinha encastrada.

"Como existem pouquíssimos exemplares a nível mundial, esta peça ganha uma importância pela raridade", argumenta. "É ricamente decorada com motivos antropomórficos e vegetalistas. Desconhecemos ainda a função de cada figura, mas acreditamos que terão uma função de ritual, de evocação de divindades. Presumimos que se trata de uma peça de mobiliário asiática". O caráter de excelência permite pensar que terá pertencido a uma figura de relevo numa comunidade "talvez um soba". É a peça de mobiliário mais antiga na reserva.


Esta cadeira de braços faz parte de um conjunto de mobiliário que foi adquirido pela Câmara Municipal de Lisboa para a constituição de um Museu de Goa. O projeto seria instalado na Casa dos Bicos, mas nunca se concretizou | Carla Quirino - RTP

A visita faz-se numa área de aproximadamente 300 metros quadrados, onde se pode ver mais de 500 peças. No percurso definido, entre estantes repletas de história da cidade, os anfitriões terminam a visita com a Estufa. "É uma peça fabulosa. É um fogão de sala, a lenha para aquecimento doméstico, com assinatura da Real Fábrica de Louça do Rato", explica Aida. A Estufa foi produzida entre 1790-1795 de Faiança moldada, rodada e pintada.

De acordo com o Museu, as estufas cerâmicas são peças de fabrico cuidadoso, destinadas à elite do país, influenciada pelos ambientes palacianos do centro e norte da Europa. Em 1791, a própria rainha D. Maria I adquiriu uma estufa para a sua câmara real. Durante a remodelação do piso 1 do Palácio Pimenta, a estufa ficará acolhida na Reserva. Sendo uma peça cerâmica, é um "objeto frágil e já sofreu alguns acidentes na sua longa vida passada". A conservadora acrescenta que a peça irá ser intervencionada.


Estufa: ""Queremos que a peça brilhe e se aproxime da imagem que tinha na origem", remata Aida Nunes | Carla Quirino - RTP

De acordo com o Museu de Lisboa, as incrições para esta iniciativa esgotaram rapidamente, mas a conservadora garante que em breve irá repetir-se: "Trata-se de uma visita exploratória, mas plena de significado, depois de anos a organizar a Reserva Central. A intenção é que existam oportunidades para promover estas visitas, a princípio com uma periodicidade semestral".
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