"O comboio de Lenine": começo de uma epopeia

por RTP
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A viagem de regresso à Rússia de um punhado de exilados realizou-se em Março de 1917, mas é parte integrante e indissociável da Revolução de Outubro. Sem o "vagão blindado", dificilmente os bolcheviques teriam liderado os sovietes e dificilmente estes teriam tomado o poder.

A coprodução franco italiana dirigida pelo realizador Damiano Damiani foi estreada em 1988, na recta final da "perestroika" gorbachoviana, três anos apenas antes de se desagregar a União Soviética.


Lenine era ainda a figura de referência da história oficial soviética e o filme apresentava uma novidade que até aí só era possível no cinema ocidental: a história do triângulo amoroso entre o próprio Lenine, sua mulher Nadejda Krupskaia, e a militante bolchevique franco-russa, e talentosa pianista, Inessa Armand.

Ainda sete anos antes, o filme soviético "Ленин в Париже" ("Lenine em Paris"), de Sergei Jutkewitschs tivera de tratar outro cenário desse drama, o exílio parisiense, vergando-se ao rigoroso black out censório da URSS, e omitindo qualquer alusão ao tema.

No filme de Damiani,  a discreta actriz Leslie Caron surge como Krupskaia, mas Dominique Sanda interpreta brilhantemente Inessa Armand e o sempre inspirado Ben Kingsley interpreta Lenine. O mesmo Kingsley que se notabilizou em papéis como o de Gandhi, dá-nos aqui mais uma demonstração da sua inteligência e versatilidade.

Para além desse seu lado romanesco, o filme dá conta da principal preocupação de Lenine, ao organizar a viagem. A urgênca de regressar à Rússia, logo ao serem conhecidas as primeiras notícias sobre a Revolução de Fevereiro, obrigava a procurar um acordo com alguma das potências beligerantes, que facilitasse o acesso ao território russo. E, qualquer que fosse a potência parceira desse acordo, ela iria sempre originar contra os viajantes acusações de se terem deixado enfeudar a um dos lados da Primeira Guerra Mundial.

No filme é mostrada com alguma verosimilhança a discussão entre Lenine e o seu rival menchevique Julius Martov. O dirigente revolucionário queria criar um consenso com exilados de outros partidos, para que as previsíveis acusações de enfeudamento não apontassem apenas contra o partido bolchevique. E, com efeito, a viagem acabou por fazer-se com passageiros de várias tendências.

Por outro lado, Lenine procurou antecipar-se a essas acusações realizando uma diligência que não parece ter sido do conhecimento de Damiani, à data da rodagem do filme. Antes de estabelecer um contacto com as autoridades alemãs, ligou para o consulado norte-americano em Berna. Chegar à Rússia com ajuda dos EUA teria inegáveis vantagens. Os EUA, embora já tivessem declarado a guerra, tinham-no feito tardiamente e ainda não tinham desembarcado tropas na Europa. Eram, das grandes potências, a que ainda estava menos suja de sangue.

Mas o telefonema foi recebido no consulado por uma secretária que chamou ao aparelho um jovem funcionário, na altura mais interessado em começar o seu fim de semana com uma partida de ténis do que em atender um exilado russo, de nome Vladimir Ilitch Ulianov.

O funcionário, Allen Dulles, tinha à sua frente um brilhante futuro e chegaria a ser o chefe máximo da CIA. Mas durante toda a vida contou esse episódio como ilustrativo do tipo de negligência que não se deve cometer. Por rejeitar o telefonema de Lenine, perdeu uma oportunidade única para influenciar a história universal.

Lenine, com pressa em partir, contactou seguidamente com a Alemanha, que imediatamente satisfez a sua principal condição: um vagão em que não podiam entrar autoridades alemãs e só por isso ficou conhecido como "vagão blindado". No filme surge o episódio do simbólico traço de giz, traçado no vagão por ordem de Lenine, e para lá do qual se considerava que nenhum responsável alemão poderia passar.

O filme de Damiani mostra o peso que tinha a palavra de Lenine na resolução de todas as questões envolvidas na viagem. E, com efeito, são conhecidos alguns detalhes anedóticos mas altamente reveladores. Um deles tem que ver com as regras para o fumo de tabaco.

Por imposição do feroz antitabagista que era Lenine, só era permitido fumar no WC. Mas, como havia apenas um WC, as pessoas que tinham de usá-lo para as suas necessidades eram prejudicadas pela frequente ocupação dos fumadores. Lenine estabeleceu então um sistema de duas senhas de utilização: umas para não-fumadores, que tinham sempre prioridade; e outras para fumadores, que precisavam de esperar um momento em que o WC não estivesse a ser palco de uma utilização prioritária.

No entanto, outros aspectos do filme são menos convincentes: a autoridade de Lenine certamente não ocasionou uma cena como aquela em que o dirigente vem ao corredor, comunicar aos seus companheiros de viagem como irá chamar-se no futuro, por decisão sua, o partido - não mais Partido Social-Democrata, mas Partido Comunista.

E a urgência da viagem não é plenamente explicada com o pano de fundo político: em Petrogrado constituíra-se um governo provisório apoiado pelos mencheviques e  e esse-erres ("socialistas-revolucionários"). O próprio Pravda, jornal bolchevique, mostrava sob a direcção de Kamenev e Estaline uma clara tendência para contemporizar com o governo.

A chegada de Lenine a Petrogrado, que o filme retrata apenas no seu ambiente apoteótico, foi um primeiro passo para a alteração do rumo do partido. Poucos dias depois, com a aprovação das "Teses de Abril", ficaria definido o rumo: todo o poder aos sovietes. Iniciava-se o caminho para a Revolução de Outubro.

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