O incêndio do Reichstag foi há 80 anos

Em 27 de fevereiro de 1933, o edifício do parlamento alemão foi em grande parte reduzido a escombros por um fogo posto da autoria de Marinus van der Lubbe. Hermann Göring, ministro sem pasta no Governo de Adolf Hitler, reagiu imediatamente, lançando uma vaga de detenções. À distância de 80 anos continua em dúvida se os próprios nazis terão fabricado esse pretexto tão conveniente para desferirem contra a actividade parlamentar o golpe de misericórdia que sempre tinham desejado, ou se tinham, simplesmente, aproveitado uma oportunidade favorável.

RTP /

Logo no dia seguinte, o gabinete de crise (Hitler, Goebbels, Göring,  Frick e Heldorf) decretou o estado de emergência e suspendeu as garantias constitucionais. Iniciou-se uma vaga de prisões contra a oposição, que tinha os comunistas como primeiros alvos. Essa vaga prolongou-se nos meses seguintes e em maio já tinham sido detidas cerca de 100.000 pessoas.
A resposta fulminante de Hitler e Göring O alvo principal das detenções foram os comunistas. O KPD (Partido Comunista da Alemanha) viu ser capturada quase toda a sua direcção, incluindo os deputados e o presidente do partido, Ernst Thälmann. Mas outros oposicionistas destacados, como o Nobel da Paz Carl von Ossietsky, foram igualmente detidos.

O estado de emergência permitia buscas e detenções sem mandado judicial. As detenções podiam ser feitas pela polícia, mas também, em muitos casos, pela milícia nazi (as SA - Secções de Assalto). Os presos podiam ser mantidos em local secreto, muitas vezes prisões clandestinas das SA, sem contacto com advogados ou com a família.

A destruição do Reichstag e o estado de emergência ocorriam no meio da campanha eleitoral, mas as eleições não foram suspensas. Uma semana depois, em 5 de março, elas deram maioria absoluta ao bloco dos nazis e dos nacional-alemães (DNVP). No dia da votação, houve sete dezenas de mortos em confrontos.

Cerca de três semanas depois, o novo parlamento foi chamado a reunir-se na ausência dos 81 deputados comunistas que, apesar de tudo, tinham sido eleitos; e foi confrontado com a chamada Ermächtigungsgesetz - uma autorização legislativa ilimitada, que permitia ao Governo nazi emitir leis e decretos, mesmo contra a Constituição.

Além dos nazis e dos seus aliados nacional-alemães, votaram a favor do cheque em branco os deputados do partido católico, o Zentrumpartei. Os deputados do SPD votaram contra. Uma maioria parlamentar de dois terços subscrevia a defunção do próprio parlamento.
Receitas diferentes para esvaziar o parlamentoA prontidão com que os chefes nazis responderam ao incêndio ficou documentada em declarações como a de Hitler: „Agora não há contemplações. Quem se atravessar no nosso caminho será eliminado. O povo alemão não será compreensivo para com a frouxidão. Cada funcionário comunista será fuzilado, onde quer que o encontrem. Os deputados comunistas têm de ser enforcados ainda nesta noite. É preciso prender todos os que estejam em aliança com os comunistas. Tão-pouco serão poupados os social-democratas e os Reichsbanner [membros da milícia social-democrata]".

A ilegalização do KPD, a prisão dos seus militantes e o confisco dos seus bens era, na verdade, o prelúdio para perseguições contra os social-democratas e, mais tarde, contra os restantes partidos - todos eles dissolvidos durante a posterior campanha de Gleichschaltung. Mesmo os aliados nacional-alemães e os católicos que tinham votado a favor dos plenos poderes do executivo acabaram depois por ser dissolvidos. Os mais reticentes sofreriam, ao longo dos doze anos do nazismo, diferentes medidas de repressão.

O incêndio do Reichstag foi, assim, o conveniente pretexto, que, menos de um mês depois de Hitler ser investido como chanceler, permitiu ao nazismo formatar o Estado à medida do seu programa e dar-lhe os contornos precisos que, no essencial, iriam permanecer durante os doze anos do regime hitleriano.

A liquidação do parlamento foi, na Alemanha, muito mais rápida e fulminante do que em Itália. O assassínio, em 1924, do deputado socialista Giacomo Matteoti por fascistas italianos colocara Mussolini à defensiva, levara-o a repudiar o atentado e a deixar julgar os autores materiais do crime. Os deputados da oposição tinham mesmo criado um parlamento alternativo - a chamada assembleia do Aventino -, na esperança vã de que o rei se colocasse do seu lado e contra Mussolini. Quando finalmente o Duce decidiu avançar para a cassação de mandatos dos deputados aventinistas, já tinha passado um ano. E o parlamento só acabaria por desaparecer inteiramente de cena cerca de dois anos depois do assassínio de Matteoti.
As suspeitas de uma encenação naziO contraste com a rapidez dos nazis era tal que imeditamente se levantou a suspeita de uma provocação encenada pelo próprio Göring. Essa suspeita reforçou-se consideravelmente na sequência do mediático processo judicial que se seguiu. Os dignitários nazis queriam ver confirmado nele a tese do complot comunista, orquestrado pelo dirigente da Internacional Comunista, o búlgaro George Dimitrov, que nesse momento se encontrava clandestinamente na Alemanha.

Durante o julgamento, o procurador tentou mostrar que o pedreiro holandês de 23 anos e dissidente comunista, Marinus van der Lubbe, autor material do incêndio (na foto, durante o julgamento), não podia ter ateado sozinho tantos focos de incêndio em cerca de um quarto de hora de que dispôs dentro do edifício. O absurdo político de esse dissidente estar combinado com o KPD de obediência oficial estalinista não embaraçava o procurador.

Mas a atenção prestada pela imprensa internacional ao processo permitiu a Dimitrov desmontar as acusações e sair vencedor da justa verbal contra a acusação. O líder búlgaro acabaria depois por ser libertado e por regressar à URSS.

Mas, precisamente os argumentos técnicos do procurador, que sublinhavam a impossibilidade de um homem só atear os vários focos de incêndio em tão pouco tempo, foi depois largamente utilizada pela tese mais corrente nos meios antinazis: van der Lubbe não podia ter actuado sozinho e precisamente essa impossibilidade indicaria que os nazis tinham de estar por dentro de uma meticulosa encenação. O argumento do procurador voltava-se contra os seus mandantes.

A historiografia mais recente, com destaque para o prestigiado investigador alemão Hans Mommsen, inclina-se para uma explicação diferente. Van der Lubbe não era essa espécie de mentecapto que tanto os comunistas como, mais tarde, os nazis quiseram fazer dele. A sua competência técnica na organização do atentado não permite de modo algum excluir que ele tivesse ateado sozinho os vários focos de incêndio.

Em todo o caso, a eventual ignorância dos nazis sobre o plano de van der Lubbe não apaga o facto de estarem preparados para decretar o estado de emergência, com o seu longo e sistemático cortejo de medidas adjacentes. Precisavam que alguém lhes fornecesse um pretexto e tê-lo-iam fabricado se ninguém lho tivesse fornecido - um padrão de comportamento que viria a repetir-se cinco anos mais tarde com a chamada "Noite de Cristais" (9 de novembro de 1938).
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