Rituais funerários da Lisboa Romana em documentário

por Carla Quirino - RTP
Escavação Calçada-do-Lavra - Documentário Ecos da Cidade dos Mortos CML/ERA Arqueologia

No Dia Internacional dos Monumentos e Sítios propomos uma viagem aos testemunhos arqueológicos descobertos no subsolo da Praça da Figueira e ruas contíguas, em Lisboa, através do documentário "Ecos da Cidade dos Mortos", com realização de Raul Losada. O trabalho é dedicado à Necrópole Noroeste de Olisipo, a antiga cidade romana entre os séculos I a IV da nossa era.

As escavações arqueológicas nas últimas décadas em Lisboa têm revelado um conjunto de informações que permitem reconstituir a fisionomia do urbanismo e o quotidiano da população que residia e morria em Olisipo. 

Alguma dessa memória que chegou da grande Necrópole Noroeste, localizada na Praça da Figueira e ruas próximas, atravessou a lente de Raul Losada, que assina o documentário Ecos da Cidade dos Mortos, um filme dedicado às práticas e rituais funerários de Olisipo numa viagem que recua quase dois mil anos.

É um retrato dos comportamentos da comunidade romana perante a morte, ancorado nas evidências arqueológicas provenientes da necrópole e numa investigação transdisciplicar que reúne dados vindos desde a  antropologia à arquitetura. Raul Losada contou à RTP que filmou, durante quatro anos, escavações arqueológicas, especialmente em obras de renovação urbanística.
 
Como consultor científico e investigador dedicado à Lisboa romana Rodrigo Banha da Silva acompanhou o alinhamento do documentário. Este trabalho também recorre a reconstituições com atores, à recriação virtual 3D - desenvolvida por César Figueiredo - de Olisipo e da Necrópole Noroeste e a imagens inéditas do arquivo da RTP. Durante 55 minutos, o realizador costurou uma narrativa onde ecoam as memórias de quem não quis ser esquecido.


Recriação virtual da estrada romana e monumentos funerários - César Figueiredo | CML/ERA Arqueologia

Ecos de alguns mortos romanos
À RTP, o arqueólogo Rodrigo Banha da Silva deu exemplos das histórias que foram sendo reveladas sobre o dia-a-dia da Olisipo fúnebre. Na Rua das Portas de Santo Antão, o investigador descreve como "uma jovem adulta levou para a sepultura, fechado na mão, um compasso". Provavelmente seria uma artesã dedicada a uma arte de precisão, como a joalharia.

Na Calçada do Lavra um homem fez-se enterrar com o estojo de instrumentos de oftalmologia. Seria, eventualmente, um medicus ocularius.

Numa outra sepultura, na mesma área, a equipa identificou peças de um tabuleiro de jogo e dados. "Não temos o tabuleiro, mas temos as peças, brancas e negras. Era um aficionado do jogo, que nem na morte se separou delas", sublinha o arqueólogo.
Necrópole noroeste
Estes excertos da memória funerária de Olisipo fazem parte da grande Necrópole Noroeste que se estendia pelo eixo viário que saía da cidade e se dirigia para norte, em direção a Scallabis, a atual Santarém.

Alguns talhões das bermas eram ocupados por construções funerárias com maior ou menor monumentalidade, que refletiam "a afirmação da diferenciação social", também na morte.

Essa estrada romana, com perto de seis metros de largo, coincide com o traçado lisboeta que parte da atual Praça da Figueira e sobe paralela à Avenida da Liberdade. Cruza o Largo de S. Domingos, a Rua das Portas de Santo Antão, a Rua de São José e a Calçada do Lavra até para lá de Santa Marta.

"Os romanos clássicos têm uma particularidade relativamente às cidades que se distinguem do nosso mundo contemporâneo. Nós hoje confinamos os mortos em cemitérios - os romanos não tinham cemitérios, tinham espaços de necrópoles. Significa que aquilo que era delimitado era o mundo dos vivos" observa o arqueólogo. A cidade era dos vivos e dos deuses e, por lei, não podia haver práticas funerárias dentro desse limite.


Rodrigo Banha da Silva - Ecos da Cidade dos Mortos | CML/ERA Arqueologia

As necrópoles localizadas na periferia da urbe pulverizavam-se, assim, em torno das principais estradas de saída/entrada, onde as estruturas funerárias incluíam inscrições grafadas na pedra com o nome do morto e votos para a paz eterna.

Não eram apenas as elites as pessoas sepultadas nestes espaços. Outros grupos sociais também se faziam enterrar junto ao caminho. O investigador dá o exemplo de uma inscrição encontrada no subsolo da Praça da Figueira, que provavelmente estaria integrada num monumento, que anunciava que "Creusa, de 16 anos, escrava de Avita, está aqui sepultada".

"É toda uma paisagem funerária que se mostra a quem vem a entrar na cidade, a quem vem de fora por essa estrada principal", sublinha Banha da Silva. "Portanto a paisagem vai sendo lida porque há muita inscrição romana funerária que comemora os seus mortos. Pronunciar o nome do morto fazia com que a sua memória permanecesse entre nós", acrescenta.
Arqueologia da morte em arquivo da RTP de 1962
As obras realizadas para a implementação do metropolitano na cidade de Lisboa, no início dos anos 60, revelaram um conjunto de estruturas funerárias romanas no subsolo da Praça da Figueira. Ao local compareceu, então, uma equipa da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa liderada pelo investigador Fernando Bandeira Ferreira. "Nas memórias manuscritas da escavação vem a referência de uma equipa da RTP que ali fez um dia de filmagens", diz Banha da Silva. Foi o realizador, Raul Losada, que resgatou as imagems do Arquivo da RTP e as integrou no documentário.
 
"Vêm-se os arqueólogos com uma indumentária engraçada, da época, a descer pelas escadarias ainda em tosco da estação de metro para escavarem as sepulturas romanas associadas a pelo menos dois monumentos funerários", observa. "É um pedacinho muito saboroso porque há vinte tal anos que eu via esta referência. Para mim e para todos os arqueólogos é uma delícia ver aquelas filmagens de escavações", realça.

A equipa que escavou a necrópole, situada cerca de seis metros abaixo da atual Praça da Figueira, conseguiu registar e salvar várias estelas funerárias e um diversificado espólio associado aos enterros. Essa informação arqueológica acrescentou conhecimento sobre a tipologia, tanto de monumentos funerários como de rituais praticados em Olisipo.

  Algumas destas imagens foram incluídas no documentário | Praça da Figueira, 1962, Arquivo RTPRitos de cremação e inumação
Durante os séc I e II da nossa era, a maior parte das pessoas era cremada. Os restos mortais poderiam ser colocados em urnas cerâminas que depois de enterradas, um monumento funerário seria construído por cima integrando uma placa de pedra inscrita com o nome do morto. É um período iminentemente pagão e "vai incidir numa época em que o império romano está no seu esplendor", observa Banha da Silva.

Mas nesse momento assiste-se também "à introdução da inumação, ou seja, à deposição do corpo numa caixa, numa cova ou noutro espaço acondicionado para o efeito", explica o arqueólogo. Esse novo ritual vai-se afirmar no século III e a prática da cremação perde terreno. Esta transição é desencadeada pelas religiões que sopram do oriente nomeadamente o cristianismo que está em expansão.

"Esses ventos também trazem novas tendências para o tratamento diferenciado do corpo que justificam este predomínio da inumação", sublinha o investigador. Com a afirmação do cristianismo na cidade, a morte torna-se mais discreta.
Ritual da Moeda
Nas sepulturas, junto aos restos mortais, é usual encontrar moedas romanas. A colocação de uma moeda por cima do morto correspondia a um dos gestos fúnebres mais conhecidos.
Banha da Silva explica que "a moeda é mais uma versão com sabor grego que alguns romanos adotam e outros não”, por isso não está omnipresente em todas as sepulturas.

"O ritual da colocação da moeda só existe porque servia para pagar ao barqueiro Caronte a travessia do rio do esquecimento e nem todos levavam dinheiro para pagar", porque não se filiavam nessa tradição.
Mundo dos objetos funerários
Porque grande percentagem da comunidade acreditava na vida do além, ou pelo menos seriam bastante supersticiosos, o ritual da morte também era acrescentado com muitos objetos que acompanhavam os restos mortais, fossem eles cremados ou inumados. "Há alguns objetos que gozam de sucesso momentâneo como por exemplo os balsamários, uns pequenos recipientes - primeiro em cerâmica e depois em vidro - que continham unguentos perfumados e são bastante comuns durante os séculos I e início do II", descreve Banha da Silva.

"Quando chegamos ao séc. III (e isto não é obrigatório), a lucerna parece que adquire uma importância enorme", diz o investigador. "O século III é o século do deus Hélio, que na mitologia romana é o deus Sol. Portanto, a luz tem muita importância que se expressa-se pela presença assídua de lucernas nas sepulturas".

Rodrigo Banha da Silva realça que algumas delicadezas desta necrópole "prendem-se com a identidade individual das pessoas". No subsolo da Praça da Figueira, foi recuperado um testemunho "que toca a sensibilidade das pessoas". Foram exumadas as cinzas de uma menina que teria entre seis e nove anos, enterrada com dois brincos, dois anéis, um amuleto e um pingente, "objetos em ouro muito pessoais". Para o arqueólogo, o sentimento de perda no momento da despedida dos familiares, há cerca de 1700 anos, está plasmado neste espólio. Para além de irem contra a lei romana, ao colocarem pertences em ouro na sepultura (proibição que ainda hoje persiste na lei portuguesa e foi herdada dos romanos), deixaram também uma mensagem gravada num dos anéis com a abreviatura VTF: UTere Felix, do latim, "Sê Feliz"."Esta é uma história contada para todos e que a todos interessará"
O documentário Ecos da Cidade dos Mortos foi produzido pela empresa ERA Arqueologia para a Câmara Municipal de Lisboa (CML), no âmbito do Projeto Lisboa Romana.

Este trabalho tem um papel "fundamental em termos de transmissão de conhecimento, de afirmação dos valores do património e de capacidade para gerar empatia com o público em geral", defende Miguel Lago, arqueólogo e administrador da empresa ERA Arqueologia, que sublinha ainda a necessidade de a mensagem "chegar ao maior número de cidadãos".

A Direção Municipal de Cultura da CML, através de António Marques, coordenador do Centro de Arqueologia de Lisboa (CAL), acrescenta que o documentário pretende "captar novos públicos e divulgar o património arqueológico de uma forma lúdica e recreativa, atual e apelativa, mas sempre com uma forte base científica, desenvolvida a partir do conhecimento atualizado em função da investigação arqueológica mais recente".

"Conhecer a Lisboa romana é fundamental para compreender a forma como a nossa cidade se estruturou nos primórdios do seu urbanismo. A atual geografia e organização espacial de Lisboa, nomeadamente nas denominadas zonas históricas, é muito marcada pela ocupação romana", sustenta Lago. Relembra que "os nossos cemitérios, os nossos jazigos e muitos dos gestos e rituais com que celebramos ou homenageamos os nossos mortos estão ancorados em formas muito similares aos dos nossos antepassados do período romano".

O coordenador do CAL sublinha que "Lisboa é uma cidade viva, com 4000 anos, e com imensas histórias por descobrir no seu subsolo que devem ser partilhadas com a comunidade e com o público em geral".

Para isso, a CML "alocou cerca de 90 mil euros na produção deste documentário", e contou com parcerias desenvolvidas entre "empresas de arqueologia e os arqueólogos que aceitaram participar, cedendo imagens e depoimentos", esclareceu António Marques. Estreado recentemente, os promotores dizem que está previsto que excertos façam parte do portal Lisboa Romana e poderá ser visto em sessões públicas em museus e festivais.



O documentário evidencia o "fascínio gerado pelas escavações arqueológicas, por aquilo que a terra que pisamos pode esconder e que conseguimos revelar", faz notar Lago.

"A arqueologia portuguesa é uma realidade de grande dimensão, quase sempre escondida, desconhecida ou envergonhada", afirma. Adverte que é necessário combater "esta arqueologia ocultada por tapumes de obras e que fica encerrada em relatórios enviados à tutela do Património. É fundamental ativar socialmente o património arqueológico e credibilizar a atividade através da visibilização dos resultados obtidos pelas milhares de escavações que anualmente são realizadas em Portugal e de que quase ninguém ouve falar".

Miguel Lago defende que a arqueologia só faz sentido quando a sua importância é reconhecida pela população e remata: "Esta é uma história contada para todos e que a todos interessará".
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