Tentativa abortada para levar comida aos deputados cercados em 1975 em foco no novo livro de Isabel Nery

por Lusa

A tentativa falhada do piloto da Força Aérea Luís Araújo para levar comida aos deputados da Assembleia Constituinte cercados durante 36 horas por cerca de 100 mil manifestantes, em novembro de 1975, é uma das abordagens em destaque no novo livro da jornalista Isabel Nery, "Cerco ao Parlamento".

Comparado a Ícaro, personagem da mitologia grega que queimou as asas ao tentar voar junto ao sol acabando por cair no mar Egeu, o piloto do helicóptero "Allouette" conta o susto que apanhou quando a multidão em fúria se pendurou no aparelho, que ficou "cheio de mossas causadas pelos paus e pedras que lhe tinham atirado".

"Ninguém protegeu o presidente da Assembleia, ninguém me protegeu a mim, ninguém tirou a carga e o pipo, foi tudo para o chão. Aterrei em Monsanto, saí do helicóptero e ia matando os que me tinham dito que a segurança estava garantida", relata o antigo piloto no livro da jornalista, que integrou as redações da RTP, SIC e Visão, entre outras, e recebeu vários prémios, entre os quais da UNESCO.

Luís Araújo diz que só quando foi dormir é que nesse dia é que percebeu o que tinha passado. "Quando me deitei à noite é que parei e pensei: Que grande cagaço! Iam-me matando ali, depois de andar na guerra!"

Quem o ía matando foram os manifestantes, cerca de 100 mil, maioritariamente trabalhadores da construção civil em luta pela assinatura de um contrato coletivo de trabalho, que cercaram o Palácio de S. Bento entre os dias 12 e 13 de novembro, em pleno PREC (Processo Revolucionário em Curso), onde decorriam os trabalhos da então Assembleia Constituinte.

Os manifestantes impediram deputados e funcionários de sair durante 36 horas, tendo também a residência oficial do primeiro-ministro, contígua ao Palácio de São Bento, sido controlada, com o então chefe do Governo, Pinheiro de Azevedo, sequestrado. A sessão da Constituinte só seria retomado no dia 18 de novembro desse ano.

Isabel Nery indica que nos muitos anos que se seguiram a este episódio de "Ícaro", o nome de código que utilizou na operação, Luís Araújo recebeu "inúmeras condecorações", mais de uma dezena de "Medalhas de Ouro e de Prata" por serviços prestados, mas o próprio desvaloriza a maioria dessas distinções.

"Não quero ser nenhum herói... só três ou quatro medalhas é que valem, as outras são por vinhos e petiscos", assume, apesar de manifestar orgulho numa das condecorações, "a Cruz de Guerra por salvar um camarada, que levou tiros" e Luís Araújo ficou para o socorrer.

Isabel Nery remata o livro com o risco para o país que poderia ter representado a missão de "Ícaro". "Arriscada. Inopinada. Incongruente".

"A missão, que nem resgata ninguém, nem mata a fome aos reféns, podia ter precipitado o país para a guerra civil. Podia ter sido a tragédia. Como todo o ano de 1975. Especialmente novembro de 1975", escreve a jornalista, concluindo: "Podia, mas não foi. Graças à perspicácia do seu piloto. Herói de um país que se libertou do jugo ditatorial pela mão dos militares, mas que, por temor ou ingratidão, os desfocou na fotografia da História".

Tópicos
PUB