Direitos de autor. Google e Facebook podem estar prestes a pagar aos media portugueses pelas notícias

por Joana Raposo Santos - RTP
A diretiva sobre os direitos de autor é de aplicação geral em todos os países da União Europeia, mas cada um deles dispõe de margem de manobra neste processo. Foto: Dado Ruvic - Reuters

Gigantes tecnológicos como a Google, o Facebook ou o YouTube poderão vir a pagar pela utilização de conteúdos de terceiros em Portugal - tudo graças à diretiva de propriedade intelectual aprovada pela União Europeia em 2019 e que tem de ser transposta para a legislação portuguesa até 7 de junho. Em causa está a proteção da titularidade dos conteúdos de músicos ou escritores, mas também de jornalistas na internet. RTP, Impresa e TVI concordam que, à semelhança do que já acontece na Austrália - e que abriu um precedente para o resto do mundo -, as plataformas onde as notícias são partilhadas devem pagar uma quota aos órgãos de comunicação social. Google e Facebook disseram à RTP concordar com a diretiva e querer apoiar o jornalismo, mas frisaram que o documento não obriga a um pagamento, abrindo apenas portas à negociação.

Em fevereiro deste ano, uma proposta de lei do governo australiano gerou polémica internacional ao tentar que, nesse país, a Google e o Facebook pagassem aos órgãos de comunicação pelos links das notícias partilhadas nessas plataformas.

Segundo os reguladores australianos, por cada 100 dólares gastos em publicidade online nesse país, 53 dólares vão para a Google e 28 para o Facebook. Sendo que, atualmente, uma larga percentagem da população da Austrália – e do resto do mundo – utiliza essas plataformas para consumir notícias, a proposta de lei sugeria que os media recebessem parte das verbas. “É como forçar os fabricantes de carros a financiar estações de rádio porque as pessoas poderão ouvir rádio no carro – e deixar as estações decidirem o preço”, comparou, em fevereiro, Nick Clegg, responsável pelo departamento de Assuntos Globais do Facebook.

Seguiu-se uma guerra virtual, com Mark Zuckerberg a “varrer” as contas dos órgãos de comunicação australianos do Facebook. Quatro dias depois, após entrar em negociações com o Governo australiano para alterar a proposta de lei, a rede social anunciou que iria desbloquear as páginas dos media.

Das negociações resultou, por fim, um acordo: a Austrália incluiu quatro emendas à proposta, entre as quais uma segundo a qual o Facebook não terá de pagar uma quota aos órgãos de comunicação caso demonstre uma “contribuição significativa” para a visibilidade do jornalismo local.

Além disso, a lei permite que as grandes plataformas e os media possam discutir durante dois meses até chegarem a um acordo privado sobre a quantia a pagar pelas publicações. Apenas caso não seja alcançado um acordo, o Governo poderá intervir para estabelecer um valor.

O caso australiano veio, assim, abrir um precedente para o resto do mundo, e o modelo adotado dá luzes sobre o que pode vir a desenrolar-se muito em breve na Europa, na forma de “diretiva de propriedade intelectual”.

Em Portugal, esta diretiva terá de ser transposta para a legislação já a 7 de junho.
O que está em causa em Portugal e na UE?
“A rápida evolução tecnológica continua a mudar a forma como as obras e outro material protegido são criados, produzidos, distribuídos e explorados”. Este é um dos pontos essenciais salientados pela diretiva europeia que servirá de base para a nova legislação portuguesa sobre os direitos de autor.

Numa altura em que continuam a surgir “novos modelos empresariais e novos intervenientes”, torna-se necessária uma legislação “orientada para o futuro, para não limitar a evolução tecnológica”, clarifica o documento.

Seguindo esta linha de raciocínio, a União Europeia defende que diretivas deste género contribuem para o funcionamento do mercado interno ao mesmo tempo que protegem os titulares de direitos de autor, simplificando a obtenção de direitos.

Se isto é verdade para músicos ou escritores, também o é para os jornalistas: na era das novas tecnologias, a maioria dos órgãos de comunicação apostou no digital. E, com as notícias disponíveis online, rapidamente surgiram agregadores de notícias – como o Google News – que facilitam o acesso às mesmas. No campo das redes sociais, como o Facebook, é agora comum a partilha de conteúdos noticiosos, quer pelos próprios media, quer pelos leitores.

Ora, para Bruxelas, agora mais do que nunca é necessário garantir uma “imprensa livre e pluralista”, algo “indispensável para assegurar um jornalismo de qualidade e o acesso dos cidadãos à informação”, assim como o debate público e o correto funcionamento de uma sociedade democrática. “É necessário estabelecer à escala da União uma proteção jurídica harmonizada para publicações de imprensa no que diz respeito às utilizações em linha pelos prestadores de serviços da sociedade da informação”, frisa a diretiva europeia.

A ideia fundamental da diretiva da UE sobre os direitos de autor - que estará na base da legislação a adotar em Portugal - é, de certa forma, semelhante à da norma que acabou por ser adotada na Austrália.

Segundo o documento, os titulares de direitos - entre os quais músicos, escritores ou órgãos de comunicação - deverão receber uma “remuneração adequada pela utilização das suas obras ou outro material protegido”. Quem fica responsável por esse pagamento são os “prestadores de serviços” de conteúdos online, isto é, as empresas cujas plataformas são usadas para a partilha das notícias.

Bruxelas entende que um “prestador de serviços de partilha de conteúdos em linha [online]” é um prestador de um serviço da sociedade da informação que tem entre os seus principais objetivos “armazenar e facilitar o acesso do público a uma quantidade significativa de obras ou outro material protegido por direitos de autor carregados pelos seus utilizadores”.

Tanto a Google como o Facebook podem encaixar nesta definição: o agregador de notícias Google News reúne as principais notícias nacionais e internacionais e disponibiliza-as aos utilizadores, e o Facebook armazena as notícias lá partilhadas quer pelos próprios órgãos de comunicação, quer pelos leitores que as divulgam nessa rede.
O que dizem os órgãos de comunicação portugueses?
No mês passado, RTP, Grupo Impresa, Media Capital e Google juntaram-se na 30ª edição do Digital Business Congress e um dos temas em debate foi, precisamente, o da diretiva europeia.

Todas as medidas que contribuam para que a qualidade do jornalismo – seja ela do serviço público, seja ela dos privados, e é importante haver esse pluralismo e essa diversificação para o bom funcionamento de todas as instituições – serão sempre medidas bem-vindas”, defendeu Hugo Figueiredo, do conselho de administração da RTP.

A posição foi apoiada por Francisco Pedro Balsemão, presidente executivo do Grupo Impresa (que detém a SIC), que concordou que seja pago “um valor justo, digno”, aos órgãos de comunicação por parte das grandes plataformas, de modo a que “haja aqui uma retribuição por aquilo que nós produzimos”.

Luís Cunha Velho, administrador da Media Capital (à qual pertence a TVI), quis frisar que não é contra as chamadas “big techs”, empresas de tecnologia que dominam o mercado. É, no entanto, “a favor de que elas sejam olhadas, de certa forma, com os conteúdos que utilizam e com o real valor que esses conteúdos têm e que, efetivamente, possamos vir mais tarde a ser renumerados em relação a isso”.

A diretiva europeia que está prestes a ser aplicada em Portugal tem em conta estes argumentos. “A contribuição em termos financeiros e organizativos dos editores para a produção de publicações de imprensa tem de ser reconhecida e mais encorajada, a fim de garantir a sustentabilidade do setor da edição e, por conseguinte, promover a disponibilidade de informação fidedigna”, lê-se no documento.

Segundo a União Europeia, para os agregadores de notícias como o Google News “a reutilização de publicações de imprensa constitui uma parte importante dos seus modelos de negócio e uma fonte de receitas”. A Google, porém, já clarificou esta afirmação.

“A maior parte dos mitos que eu costumo ouvir também é que nós [Google] fazemos imenso dinheiro com o conteúdo de notícias. Não fazemos”, disse o diretor-geral da Google Portugal, Bernardo Correia, na 30ª edição do Digital Business Congress. “Não existe aquele pote de ouro no final do arco-íris que muitas vezes a indústria acha que existe”.
Google apoia diretiva e já falou com Ministério da Cultura
À RTP, uma fonte da Google esclareceu que o valor económico direto que a empresa obtém do conteúdo de notícias através do motor de busca é muito pequeno. Primeiro, porque “as pesquisas de notícias representam menos de 2% do total de pesquisas”, e segundo, porque “os anunciantes, normalmente, não procuram mostrar anúncios em conteúdos de notícias na Pesquisa, porque uma pesquisa pelas notícias de atualidade não costuma dar um sinal claro sobre o que alguém possa estar interessado em comprar”.

“Também não exibimos anúncios no Google Notícias nem no separador de resultados de notícias na Pesquisa Google”, acrescentou a mesma fonte. “A maior parte da receita da Google advém, não de pesquisas de notícias, mas de uma pequena percentagem do total de pesquisas que temos onde as pessoas estão a pesquisar para fazer uma compra, como quando escrevem "sapatilhas de corrida" e depois clicam num anúncio”.

Quanto à diretiva europeia, a Google demonstrou o seu apoio, apesar de salientar que esta “não inclui um direito automático à renumeração”. “A lei, e como disse o Comissário [europeu do Mercado Interno, Thierry] Breton, é um direito exclusivo que os publishers têm o direito de usar como acharem adequado e controlar a forma como o exercem”.

Na prática, a diretiva europeia dá aos órgãos de comunicação um maior controlo sobre a forma como as notícias surgem nas diferentes plataformas e abre portas a negociações sobre renumeração, mas não obriga os gigantes tecnológicos a pagarem aos media pelos conteúdos.

Fonte da Google garantiu à RTP que a gigante tecnológica está a acompanhar o processo de implementação da diretiva europeia e que está empenhada em continuar a apoiar o acesso à informação e ao jornalismo em Portugal, tal como tem vindo a fazer há vários anos. Em Portugal, o fundo Digital News Initiative da Google atribuiu a 32 projetos de media portugueses 7,7 milhões de euros, dos quais 49% se destinaram à exploração de novas tecnologias, 24% ao combate à desinformação, 15% à divulgação de histórias locais e 12% ao impulsionamento das receitas digitais.

“Portugal está num processo de transposição da diretiva para o direito nacional e esperamos participar na discussão quando partilharem a primeira versão preliminar”, assegurou, acrescentando que a Google já partilhou a sua visão sobre o tema com o Ministério português da Cultura.

Ainda este mês, durante o Digital Business Congress, o diretor-geral da Google Portugal tinha mencionado o valor substancial do tráfego que a empresa envia para os sites de notícias. À RTP, fonte da empresa sublinhou que são mais de oito mil milhões as visitas mensais que os órgãos de comunicação da UE recebem através da Google, gratuitamente.

“E, para além do tráfego, financiamos e desenvolvemos produtos e programas que nos tornam um dos maiores apoiantes financeiros do jornalismo no mundo. Isto culmina no nosso mais recente investimento global de mil milhões de dólares no Google News Showcase, o nosso programa de licenciamento para notícias”, elucidou a fonte.

Já em 2015, a Google lançou a Digital News Initiative, uma iniciativa de 150 milhões de euros para apoiar o jornalismo de alta qualidade. Em Portugal, foram investidos 7,7 milhões de euros no apoio a 32 projetos, “porque acreditamos que a inovação é o melhor caminho a seguir para a sustentabilidade a longo prazo do ecossistema noticioso, tanto em Portugal como além-fronteiras”, referiu fonte da empresa.
Facebook diz ser “prematuro” falar na legislação portuguesa, mas apoia diretiva
Do lado do Facebook, a posição quanto à diretiva europeia é semelhante à da Google. Em declarações à RTP, um porta-voz da rede social disse ser “prematuro” comentar a legislação que virá a ser adotada em Portugal, mas garantiu que o Facebook “apoia totalmente” aquelas que serão as suas obrigações perante a diretiva sobre direitos de autor.

“Estamos comprometidos a construir sistemas robustos que promovam e protejam as notícias e os conteúdos criativos nas nossas plataformas”, frisou o responsável.

A plataforma criada por Mark Zuckerberg deixa, porém, bem claro que o Facebook fornece “um valor substancial” aos produtores de notícias e restantes utilizadores quando estes “escolhem partilhar os seus conteúdos” nessa rede social, uma vez que lhes dá maior visibilidade e, consequentemente, mais leitores.

“Já estabelecemos produtos, investimentos e iniciativas que asseguram que essas partes [que publicam na rede social] possam continuar a colher conhecimentos e resultados através dos seus conteúdos em colaboração com o Facebook – e continuamos comprometidos a fortalecer as nossas ofertas, uma vez que essas indústrias vão ao encontro das exigências de uma era cada vez mais digital”, adiantou o porta-voz à RTP.

Efetivamente, desde 2018 o Facebook já investiu um total de 600 milhões de dólares no apoio aos media de todo o mundo e, nos próximos três anos, a empresa pretende investir pelo menos mais mil milhões de dólares.

A rede social de Zuckerberg tornou-se, nos últimos anos, um palco importante para os órgãos de comunicação que escolhem lá partilhar as suas notícias de modo a chegar a mais leitores. Dados da empresa revelam que, em 2020, o chamado “feed de notícias” do Facebook enviou mais de 180 mil milhões de cliques para sites de notícias sem qualquer custo adicional para os mesmos.
Partes envolvidas foram ouvidas no Parlamento
É já na próxima segunda-feira que termina o prazo para que a diretiva de propriedade intelectual seja transposta para a legislação portuguesa. Mas, antes disso, as várias entidades envolvidas foram ouvidas no Parlamento, incluindo o Facebook Portugal, a Google Portugal, a Visapress - Gestão de Conteúdos dos Media e a Associação Portuguesa para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação.

Em discussão esteve um projeto de lei do PS que, no âmbito desta legislação, pretende determinar quem vai fiscalizar a presença ilegal de conteúdos protegidos por direitos de autor na internet. A intenção é conferir à Inspeção-Geral das Atividades Culturais (IGAC) as funções de fiscalização, controlo, regulação e determinação de remoção ou impedimento de acesso a conteúdos protegidos em ambiente digital.

Esta ideia não reuniu, porém, consenso entre as partes ouvidas no Parlamento na semana passada. Para a D3 - Associação Defesa dos Direitos Digitais, a eventual concentração de poderes na IGAC permitirá que esta atue “como polícia, juiz e carrasco”.

Já Ana Ramalho, da Google Portugal, considerou o projeto de lei demasiado amplo quando se refere aos tipos de prestadores intermediários de serviços online, uma vez que as limitações poderão atingir motores de busca, causando “repercussões negativas para a liberdade de expressão”.

Do lado da imprensa a proposta foi melhor recebida, com a Visapress - Gestão de Conteúdos dos Media e a Associação Portuguesa para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação a concordarem que o projeto de lei é positivo na defesa dos titulares de direitos de autor.

A Associação Portuguesa de Imprensa, também presente na discussão, defendeu a liberdade de imprensa e de expressão como faróis que devem ser salvaguardados perante a pirataria de conteúdos jornalísticos e “no meio de tanta desinformação”.

A diretiva sobre os direitos de autor é de aplicação geral em todos os países da União Europeia, mas cada um deles dispõe de margem de manobra neste processo, tendo em conta as especificidades nacionais.
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