Fim de uma era para o jogo em Macau sob o olhar de Pequim e de uma esfinge egípcia

Centenas de pessoas despediram-se esta madrugada do Landmark, o último `casino-satélite` de Macau a encerrar as portas e um capítulo da história do jogo no território.

Lusa /
Foo: D.R.

Samuel Lei e o casino Landmark são retratos de uma era prestes a extinguir-se. Lei é imagem de uma geração que, no início do século, transitou do secundário para trabalhar como `croupier` nos casinos de Macau que surgiram após a liberalização do jogo.

Já o Landmark, então chamado de Pharaoh`s Palace, foi o primeiro `casino-satélite` do território, um modelo de gestão adotado por Stanley Ho Hung-sun (1921-2020) - que deteve até 2002 o monopólio do jogo -, para fazer frente à concorrência.

O Landmark, sob a tutela da Sociedade de Jogos de Macau (SJM), foi também o último a fechar portas, depois de a nova lei que regula o jogo, aprovada em 2022, estabelecer o dia de hoje como data limite para terminar a atividade destes `satélite`.

São 22:00 (15:00 em Lisboa) de terça-feira. Samuel, acompanhado de três antigos colegas, presta um último tributo ao lugar onde trabalhou entre 2003 e 2006. Começou por ganhar 11 mil patacas (1.168 euros ao câmbio atual).

"Na altura, o salário médio em Macau eram cinco ou seis mil patacas [530 ou 637 euros] e se te formasses na universidade ganhavas talvez oito mil [849 euros]. Era um atrativo para adolescentes", conta à Lusa.

Duas décadas depois, nota Samuel, a opção da mesa de jogo em detrimento do ingresso no ensino superior é menos saliente, com uma subida magra dos salários dos `croupiers`, que "rondam 18 mil patacas [1.911 euros]".

Samuel e os amigos encontram-se no terceiro andar do casino, onde em tempos funcionou a única sala do Pharaoh`s Palace. A encarar os quatro vultos, uma esfinge gigante, representação da pegada egípcia pensada pelo empresário local David Chow Kam Fai - "o primeiro casino temático de Macau", lê-se na página do projeto.

No bengaleiro, já nada resta. Sem mais malas ou casacos por velar, Yu, uma das mais de mil funcionárias do espaço, conta os minutos para "este momento importante".

"Quero ir lá para baixo, gostava de filmar", nota a funcionária, que vai ser transferida para o casino Lisboa, propriedade da SJM. A empresa, que só este ano encerrou oito `casinos-satélite`, comprometeu-se a assegurar os empregos dos trabalhadores.

Pelas 22:30, já só há atividade no rés-do-chão. Numa das alas, funcionários, de colete vermelho, contam fichas de uma mesa do jogo de dados `big and small`, que acabou de vagar.

Mais de uma centena de pessoas inclinam-se sobre seis mesas de bacará, o jogo que mais dinheiro faz circular nos casinos locais. Aposta-se até ao último minuto. A civilização egípcia, estampada nas paredes deste salão, e funcionários da Direção de Inspeção e Coordenação de Jogos, do Governo de Macau, testemunham o momento.

"Vim de propósito assistir ao encerramento", diz Xiao Xiao, da província de Hubei, centro da China. "Tantas pessoas de Hubei que aqui estão", complementa.

Numa mesa oposta, Gaia, de Macau, joga pelo simbolismo. Tem na mão uma ficha no valor de 500 dólares de Hong Kong (50 euros). "A minha mãe trabalha aqui há mais de 20 anos, é um momento muito especial", diz.

Os `casinos-satélite` apareceram em Macau no despontar do século como consequência da liberalização do jogo, embora fundados sobre um modelo existente durante a administração portuguesa: casinos de privados mas geridos pela empresa de Stanley Ho.

Segundo este modelo, conhecido como "4+4+2", 40% das receitas revertiam a favor do Governo, 40% de Ho e 20% dos proprietários, explica à Lusa o especialista de jogo Ben Lee.

Com a liberalização do setor, nota Lee, evoluiu-se para um novo arranjo, mantendo-se os 40% do Governo, "cerca de 4% a 5% - pura taxa de franquia - para a SJM" e o restante para os proprietários, sendo-lhes conferida a totalidade da gestão.

"A expansão dos `casinos-satélite` foi também uma das estratégias de Stanley Ho para contrariar a entrada dos novos grandes casinos-resorts. O velho ditado: a quantidade tem a sua própria qualidade, e durante algum tempo foram muito eficazes", analisa ainda o fundador da consultora de jogo IGamix.

Após a transferência de Macau, nota o especialista, Ho "encontrou uma lacuna que permitiu a proliferação" destes casinos. "E o Governo, de alguma forma, aceitou isso como um `fait accompli`, sem realmente investigar a legalidade", acrescentou.

Lee, que chegou a administrar o `casino-satélite` Diamond, no hotel Holiday Inn, recorda como Pequim foi apanhado "de surpresa" com a distribuição das licenças de jogo.

Em 2002 foram celebrados contratos entre o Governo de Macau, a SJM, a Galaxy Casino e a Wynn Resorts Macau para a atribuição de três concessões.

No fim desse ano, foi feita uma alteração ao contrato de concessão do Galaxy Casino, que permitia à Las Vegas Sands entrar no jogo, mediante subconcessão. A SJM e a Wynn vieram também a assinar contratos de subconcessão, com a MGM e a Melco Resorts, respetivamente.

Há cerca de uma década, acrescenta Lee, "começou a dizer-se" que representantes de Pequim estavam em contacto com pessoas ligadas ao setor.

"E as perguntas que faziam: Como é que três concessões se tornaram seis? E como acabaram três operadores norte-americanos a controlar 50% das concessões e subconcessões, quando inicialmente só se falava num? E os casinos satélite surgiram sem aviso prévio. (...) E então, penso que a mensagem ficou muito clara: `limpar tudo`", explica.

Pelas 23:35, é dada ordem para sair. Lá fora, mais de duas centenas de pessoas esperam pela contagem decrescente, até que, chegadas as 23:59, a cortina, ali colocada para cobrir o nome do casino, bloqueia e ameaça cair. Só dois homens empoleirados numa plataforma elevatória conseguem completar a derradeira tarefa. E o Egito dá por fim o último suspiro em Macau.

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