O tempo da `arquitetura do peixe` tem sido o mesmo "de acabar com o recurso"

por Lusa

Os autores do livro "Arquitetura do Bacalhau e Outras Espécies" consideram que o tempo de realização da `arquitetura do peixe` tem sido o mesmo "de acabar com o recurso", conectando os desenvolvimentos urbanísticos em terra ao esgotar das espécies.

"No primeiro momento da exploração do recurso, aquilo dá muito dinheiro, e esse dinheiro é investido, gasta-se para fazer uma fábrica maior, porque aquilo vai continuar a dar dinheiro. E o tempo da arquitetura, os anos que demora a construir aquele edifício, em geral, é o tempo de acabar com o recurso", disse à Lusa André Tavares, numa entrevista conjunta com o coautor Diego Inglez de Souza.

Quando é inaugurada uma fábrica, esta "vai à falência porque já não há peixe para processar", algo que se resolve com "mais investimento, ir pescar mais longe, outras espécies", criando um ciclo em que há "cada vez mais investimento em terra, cada vez mais pessoas dependentes do investimento que foi feito para explorar um determinado recurso, e cada vez menos recursos".

"É a história da humanidade", refere André Tavares, um dos autores do livro lançado há um ano pela Dafne Editora, falando à Lusa antes da conferência "Arquitecturas de Areia", com a investigadora Joana Gaspar de Freitas, que decorre na terça-feira na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, parte de um ciclo contínuo sobre a temática que se prolongará no tempo (continua em 2024) e no espaço (abrangerá toda a área do Atlântico Norte).

O livro e a investigação dos autores abordam a temática da arquitetura associada às pesca do bacalhau, sardinha, atum, pescada, e outras espécies como o polvo, peixe-galo e tamboril.

"Há uma relação, que não é direta, entre o que se constrói em terra e a transformação dos ecossistemas marinhos", refere André Tavares, frisando que o projeto "tenta perceber a relação entre esses dois mundos através dos peixes", sendo que para o arquiteto e editor da Dafne, "um bacalhau dá uma arquitetura diferente da sardinha, que dá uma arquitetura diferente do atum".

Quanto à arquitetura do bacalhau, "tem um lugar numa construção de uma identidade e de um discurso" relacionado com uma "tradição inventada" em Portugal, explica Diego Inglez de Souza, estimulada durante o Estado Novo com a construção de dois grandes armazéns frigoríficos em Lisboa (o atual Museu do Oriente, em Alcântara) e no Porto (em Massarelos, no Bicalho).

O ditador Salazar aposta no bacalhau e "ignora a pesca do arrasto", ao mesmo tempo que a Câmara do Porto investe "num congelador para fazer peixe congelado, o que significa desenvolver a pesca do arrasto", transformando um velho edifício numa lota moderna inaugurada em 1937, junto ao atual Museu do Carro Elétrico.

Dois anos depois, foi inaugurado o vizinho armazém do bacalhau, hoje reconvertido para habitação, uma "massa colossal, um edifício gigantesco com o brasão das quinas, os pescadores, a narrativa toda lá esculpida", com a lógica de "criar monumentos urbanos que tornassem visível a política do bacalhau e o argumento do bacalhau português", inviabilizando a pesca do arrasto no Porto.

No caso da sardinha, "a paisagem de Matosinhos é muito diferente do que a gente encontra no sul do Douro, por exemplo, quando havia secas [de bacalhau] no Cabedelo, em Lavadores", em Vila Nova de Gaia, refere Diego Inglez de Souza.

No início da sua exploração industrial como mercadoria, a sardinha apodrecia "muito rápido, e então é importante que essas fábricas estejam em cima da areia", mas em Matosinhos, segundo André Tavares, "foi a pesca que foi à boleia do desenvolvimento urbanístico".

"O investimento no porto, no final do século XIX [...] é um investimento que não é feito para a pesca. É um investimento que a pesca nunca seria capaz de pagar. Só quando esse investimento está feito, as indústrias da pesca percebem que têm ali uma infraestrutura que é capaz de as fazer crescer", complementa.

Por outro lado, o desenvolvimento urbanístico mais diretamente relacionado com a pesca (e depois com o turismo) será mais visível a sul de Espinho, "nas praias de areia de Esmoriz, Furadouro, Torreira", em fenómenos associados à arte xávega, até à região Centro, em Lavos, Leirosa ou Vieira de Leiria.

A configuração atual desses territórios "não cabe ao planeamento", já que o desenvolvimento "é feito de episódios muito mais acidentais", diz Diego Inglez de Souza.

"Uma coisa que o século XX demonstrou de uma maneira clara é que o planeamento é um falhanço. A lógica do planeamento, a ideia de que podemos planear e as coisas podem correr como planeámos é uma ilusão", defende André Tavares.

A falta de planeamento também tentou ser colmatada por edifícios como a antiga Docapesca de Pedrouços, em Lisboa, mas "enquanto os decisores políticos ainda pensavam em ampliar aquilo, já existiam sinais evidentes por parte do ecossistema e por parte dessa indústria da pesca de que aqueles limites estavam a ser sucessivamente atingidos", segundo Diego Inglez de Souza.

"É curioso perceber que o caos durou muito mais tempo e é muito mais longevo do que esse edifício muito planeado para desembarcar o peixe, de uma maneira muito pretensamente eficiente, muito racional, muito higiénica", complementa.

André Tavares ressalva, porém, que o pretenso caos que leva ao ordenamento arquitetónico da prática piscatória "é descrito por quem está de fora", com uma "visão de quem olha para aquilo e não entende nada", e "em geral, é isso que dá asneira".

Quanto ao atum, o arraial Ferreira Neto, em Tavira, "já dura mais como hotel, quase, do que durou como arraial de apoio ao atum, porque foi construído numa altura em que o atum já estava a escassear", sendo mais um exemplo de investimento como "último recurso para tentar manter esse circuito que depende do ecossistema", diz Inglez de Souza.

Ali, o tema da habitação para os trabalhadores "não é assunto", tal como não o foi na Parceria Geral de Pescarias, no Barreiro, segundo André Tavares, que classificou as parcas iniciativas neste campo como "areia para os olhos".

Em oposição, o projeto sobre a `arquitetura do peixe` tem como objetivo continuar a "ver um bocadinho mais do que a linha do horizonte quando olhamos para o mar", conclui.

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