Um ano de guerra. O peso da crise energética em Portugal

Há precisamente um ano, as tropas russas que há vários meses realizavam exercícios militares junto à fronteira da Ucrânia ultrapassaram os limites territoriais e invadiram o país vizinho. Não tardou a sentir-se internacionalmente o impacto da guerra, em particular na economia. O setor da energia foi dos mais afetados, entrando numa crise profunda que originou taxas de inflação recorde e deixou carteiras mais leves por toda a Europa. Em Portugal, o maior peso fez-se sentir no preço dos bens alimentares. Os alertas das principais instituições financeiras são claros: são necessárias mais políticas de eficiência energética e uma maior aposta nas energias verdes.

Já no final de 2021, no rescaldo da pandemia de covid-19, Bruxelas tinha começado a analisar as causas do aumento do custo da energia. Os preços do gás natural atingiam então valores recorde, ao mesmo tempo que as tropas russas continuavam instaladas junto à fronteira ucraniana, criando receios e especulações sobre o início de uma guerra.

A 24 de fevereiro, Moscovo lançou a ordem de invasão aos seus militares, levando o Conselho Europeu a reunir de emergência. Para além de condenarem a invasão russa, os líderes europeus pediram à Comissão que avançasse com medidas de contingência para dar resposta à situação delicada do mercado da energia.

Começaram, nessa altura, a intensificar-se as preocupações sobre a dependência do Ocidente do gás e petróleo russos. Em março, a UE iniciou o debate sobre formas de reduzir essa dependência de forma faseada e de combater o impacto do aumento do custo da energia e dos combustíveis.

Em agosto, a maior empresa de energia russa, a Gazprom, suspendeu o fornecimento a vários países europeus, naquela que foi vista como uma retaliação à imposição de sanções a Moscovo por parte de Bruxelas.

Entretanto, os Estados-membros já tinham começado a preparar medidas de racionamento de energia, preparando-se para o inverno. Em comum foi avançado um acordo para o armazenamento de gás e para a partilha solidária entre os 27.

Em setembro, Portugal apresentava um Plano de Poupança de Energia no qual propunha a promoção do teletrabalho, cortes nos horários de iluminação nas Administrações Públicas e privados, regulação das temperaturas dos equipamentos de climatização e limitações horárias para as iluminações de Natal.
“A primeira crise de energia verdadeiramente global”: o impacto em Portugal
Com a guerra, o preço do gás natural atingiu recordes, assim como a eletricidade em alguns mercados. Já os preços do petróleo atingiram o nível mais alto desde 2008. Em outubro, a Agência Internacional de Energia (AIE) considerou esta “a primeira crise de energia verdadeiramente global”, superando a dos anos 1970, quando as economias do mundo ainda não estavam tão interligadas.

“Os preços mais altos da energia contribuíram para uma inflação dolorosamente alta, empurraram as famílias para a pobreza, forçaram algumas fábricas a reduzir a produção ou até a fechar, e desaceleraram o crescimento económico ao ponto de alguns países caminharem para uma recessão severa”, alertou na altura a AIE.

A taxa de inflação homóloga na zona euro chegou, em outubro, ao recorde de 10,6%. Em Portugal outubro foi também o pior mês, com registo de 10,2%, o valor mais elevado dos últimos 30 anos. A nível anual, a taxa de inflação no país passou de 1,3% em 2021 para 7,8% em 2022.



O impacto da inflação fez-se sentir fortemente nos salários. Apesar de, no quarto trimestre do ano passado, a renumeração bruta mensal média dos trabalhadores ter aumentado 4,2% em relação ao mesmo período do ano anterior, a inflação não permitiu que essa subida fosse real. Tendo em conta esses números, em termos reais a renumeração bruta mensal recuou 5,2%.

Em janeiro deste ano, o Instituto Nacional de Estatística apontou para uma inflação homóloga de 8,4%, referindo a subida dos preços dos bens alimentares como a principal causa do agravamento do custo de vida dos portugueses.

O maior aumento foi no grupo alimentar do “açúcar, confeitaria e mel”, subindo 7,1% no espaço de um mês. No período de um ano, no entanto, o que passou a custar mais foram os “óleos e gorduras”, com um aumento de 33,6%, assim como “leite, queijo e ovos”, com 30,8%.

Estas subidas refletem-se no preço do cabaz de bens alimentares, que indica o orçamento mensal necessário para uma ingestão adequada de alimentos por uma pessoa saudável. Em janeiro de 2021, segundo dados da DECO, o valor do cabaz era 187,70€. Um ano depois, fixa-se em 224,67€.


Este cabaz é composto por carne, peixe, congelados, frutas e legumes, lacticínios e produtos de mercearia (como enlatados, cereais ou bolachas).

O setor dos combustíveis foi outro dos mais afetados. Se já antes da guerra na Ucrânia os preços da gasolina e gasóleo aumentavam sem tréguas, levando o Governo a decretar a descida do Imposto sobre os Produtos Petrolíferos e Energéticos (ISP) para fazer face aos preços, desde que a Rússia invadiu o país vizinho a situação escalou.

Em março, menos de duas semanas depois do início da guerra, os combustíveis em Portugal sofreram o maior aumento semanal de sempre até então. No caso do gasóleo, atestar um depósito de 50 litros passou a custar 91,40€, enquanto na gasolina o valor subiu para 96,30€.

Na altura, os portugueses fizeram uma corrida aos postos de abastecimento antes das subidas previstas nos preços dos combustíveis, criando longas filas. O pico do aumento dos preços aconteceu em junho do ano passado, quando o litro da gasolina subiu para 2.131€ e o do gasóleo para 1.982.


Numa tentativa de contornar estes aumentos, o executivo de António Costa aumentou o reembolso do Autovoucher, medida que tinha sido criada em novembro de 2021. De um reembolso de 5€, os contribuintes passaram em março a receber 20€ após um abastecimento de combustível num dos postos aderentes.

No mesmo mês, o Governo decidiu reduzir o Imposto sobre Produtos Petrolíferos (ISP), contendo assim a escalada do preço do gasóleo e gasolina. Apesar de o desconto sobre o ISP ter entretanto sofrido cortes, continua atualmente a aplicar-se.

Estas medidas fizeram com que o preço por litro dos combustíveis desacelerasse, regressando em janeiro deste ano praticamente aos níveis pré-guerra.

Tal como nos combustíveis, também na eletricidade e gás os preços baixaram. Apesar de estes dois últimos se manterem elevados no primeiro mês deste ano, revelaram um recuo em relação a dezembro de 2022 – tal como tem vindo a acontecer nos últimos quatro meses -, sendo este o fator responsável pelo recente abrandamento da inflação.

De acordo com o INE, de dezembro para janeiro os preços dos produtos energéticos caíram 8,9%. Na eletricidade doméstica, o recuo foi de 22,7%, enquanto no gás foi de 5,6%.
O que estamos a fazer para combater a crise?
“A situação de crise energética caracteriza-se pela ocorrência de dificuldades no aprovisionamento ou na distribuição de energia que tornem necessária a aplicação de medidas excecionais destinadas a garantir os abastecimentos energéticos essenciais à defesa, ao funcionamento do Estado e dos setores prioritários da economia e à satisfação das necessidades fundamentais da população”, lê-se num decreto-lei de 2001 publicado em Diário da República.

As medidas de resposta à crise originada pela guerra passaram pela criação, em maio, de um mecanismo ibérico temporário para limitar o preço do gás para produção de eletricidade, protegendo quem não possuía contratos de tarifa fixa de eletricidade e procurando, assim, gerar poupança para famílias e empresas.

Mais tarde, em agosto, o Governo propôs o levantamento das restrições legais existentes para permitir o acesso às famílias e pequenos negócios ao mercado regulado do gás natural, face aos sucessivos aumentos dos custos.A 23 de março, a Comissão Europeia adotou um "Quadro Temporário de Crise" que flexibilizou as regras da concessão de ajudas de Estado, de modo a permitir aos Estados-membros apoiarem a economia face aos efeitos da invasão russa da Ucrânia. No total, até ao momento Portugal concedeu 2.381 milhões de euros em ajudas de Estado ao abrigo do Quadro, segundo dados divulgados este mês pela Comissão Europeia. Este montante representa apenas 0,35% do total de apoios atribuídos pelos países da UE para dar resposta à crise económica provocada pela guerra.

Em setembro do ano passado, o Conselho de Ministros aprovou um Plano Extraordinário de Apoio às empresas que passou pela criação de linhas de crédito e financiamento, incentivos à aceleração da transição energética e apoio ao emprego.

No mês seguinte, um dos apoios mais polémicos do último ano foi anunciado por António Costa: um pacote de medidas de apoio ao rendimento das famílias que previa o pagamento extraordinário de 125 euros a cada cidadão não pensionista com rendimento até 2.700€ mensais, assim como o pagamento extraordinário de 50€ por cada descendente criança ou jovem até aos 24 anos.

O primeiro-ministro anunciou também a redução de 13% para 6% da taxa do IVA sobre a eletricidade e o aumento das pensões, em 2023, de 4,43% para pensões até 886 euros, de 4,07% para pensões entre 886 e 2.659 euros, e de 3,53% para as outras pensões sujeitas a atualização. Os pensionistas receberam ainda um bónus de meia pensão em outubro.

O conjunto de medidas deste pacote de apoio ao rendimento das famílias teve um valor global de 2.400 milhões de euros. O objetivo do Governo era responder à inflação e ao aumento do custo de vida, mas em troca recebeu críticas sobre o que a oposição considerou um plano “curto” feito de “migalhas”.

Em particular, os partidos da oposição acusaram o executivo de fraude e de enganar os pensionistas, dizendo não haver dúvidas sobre um corte nas pensões. Os próprios pensionistas reagiram negativamente à meia pensão extraordinária paga pela Segurança Social, com muitos a afirmar que preferiam um maior aumento das pensões no ano seguinte do que um "bónus imediato".

Em dezembro, o Banco Português de Fomento anunciou uma linha de apoio dirigida às micro, pequenas e médias empresas afetadas pelo aumento dos custos energéticos e das matérias-primas e pelas perturbações nas cadeias de abastecimento, no valor de 600 milhões de euros.

Já em janeiro deste ano, o Estado prestou uma garantia de 31,5 milhões de euros ao Fundo de Contragarantia Mútuo no âmbito da linha de apoio às empresas do BPF.

Apesar de todas as medidas para as famílias e empresas, a população não ficou mais descansada. Um relatório do Eurobarómetro divulgado em janeiro revelava que 98% dos portugueses viam o aumento do custo de vida como a sua maior preocupação, acima da média da União Europeia (93%).

Subiu também o número de cidadãos europeus com dificuldades para pagar as contas “na maior parte do tempo” ou “algumas vezes”. No outono de 2021 tinham sido 30% e, um ano depois, 39%. Em Portugal, concretamente, este indicador ficou nos 65%.
O que se segue?
Na Europa, especificamente, o fornecimento de gás era considerado altamente vulnerável devido à dependência da Rússia, o que levantou receios sobre uma possível escassez de aquecimento neste inverno. No entanto, as temperaturas mais quentes do que se esperava reduziram as necessidades energéticas.

“É preocupante e irónico que as temperaturas de inverno pouco habituais, desencadeadas pelas mudanças climáticas, tenham salvado grandes partes do hemisfério norte de ameaças muito mais severas à segurança e acessibilidade energética neste inverno”, disse numa entrevista à Bloomberg Ignacio Galan, presidente da da energética espanhola Iberdrola.

Entre agosto de 2022 e janeiro deste ano, Portugal conseguiu mesmo diminuir em cerca de 17% o seu consumo de gás natural, quando comparado com a média dos últimos cinco anos. Segundo dados da Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), entre dezembro e janeiro, habitualmente meses mais frios, essa redução no consumo ultrapassou os 27%.

“O início de um inverno com temperaturas amenas também permitiu uma redução da necessidade de gás em todos os setores. E a redução geral alcançada pode também estar ligada à implementação do plano português de poupança de energia 2022/2023”, refere a DGEG num relatório divulgado a meados de fevereiro deste ano. A nível europeu, os 27 Estados-membros da UE conseguiram num período de oito meses substituir 80% do gás natural que até há pouco tempo vinha da Rússia.

Na eletricidade, porém, a redução não foi tão notável. Se, em outubro do ano passado, a União Europeia tinha decidido reduzir em 10% o consumo de eletricidade neste inverno face à média dos últimos cinco anos, no período de novembro a janeiro Portugal apenas conseguiu uma diminuição de 0,5%.

No próximo inverno os receios regressam. Faith Birol, diretor executivo da Agência Internacional de Energia, frisou em dezembro que a crise económica e energética não chegou ainda ao fim e que 2023 pode ser “mais difícil” do que o ano anterior. Deixou, por isso, um alerta: são necessárias mais políticas de eficiência energética e de poupança, assim como uma aposta mais forte nas energias verdes.

Para acelerar a transição energética, a Comissão Europeia tem avançado com medidas para aumentar a eficiência e favorecer as energias renováveis. Em maio, Bruxelas apresentou o Plano REPowerEU, com os objetivos de pôr fim à dependência dos combustíveis russos e de atingir a neutralidade carbónica até 2050.

Na COP27, em novembro, o primeiro-ministro António Costa anunciou a antecipação dessa meta para 2045 e garantiu que as últimas centrais a carvão em Portugal, que deixaram de funcionar em 2021, não serão reativadas.

“Continuamos também a apostar nas renováveis e temos a capacidade e a ambição de passar de importadores de energia fóssil a exportadores de energia verde”, vincou, referindo que as energias renováveis em Portugal “representam já cerca de 60% da eletricidade consumida” no país, sendo a meta “atingir os 80% até 2026”.

“Estamos também convictos de que o hidrogénio verde e outros gases renováveis são energias para o futuro. E alcançámos há poucos dias um acordo com a França e a Espanha para a criação de um corredor verde para servir o Centro da Europa”, referiu na altura.

Nesse sentido, o Governo lançou já duas linhas de crédito para apoiar projetos na área dos gases renováveis, com uma dotação de 83 milhões de euros no quadro do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).

No Fórum Económico Mundial deste ano, em Davos, os líderes económicos mostraram-se otimistas. Numa sondagem, 64% disseram estar confiantes de que a crise na energia vai acalmar até ao final de 2023.

Esta aposta nas energias verdes representa, para muitos, uma das chaves para o fim da crise energética, reduzindo assim a taxa de inflação. E depois de, no início de fevereiro, o Banco Central Europeu ter elevado as taxas de juro em 0,5 pontos percentuais e sinalizado outro aumento de meio p.p. para março deste ano, essa aposta mostra-se cada vez mais urgente.