A tortura nas prisões da PIDE

por RTP
A sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso DR

Da autoria da jornalista da RDP Ana Aranha e do ex-investigador da PJ Carlos Ademar, acaba de ser dado à estampa o livro "No limite da dor. A tortura nas prisões da PIDE". Não é o primeiro livro sobre o tema, mas é a mais recente colectânea de entrevistas, com vários episódios inéditos.

Em teoria, toda a gente é contra a tortura - com frequência, até os próprios torturadores. Como certeiramente assinala Irene Pimentel no prefácio ao livro, os relatórios da PIDE camuflavam sistematicamente a tortura com eufemismos e circunlóquios, bebidos na escola do próprio Salazar que antes de mais ninguém lhe chamara "safanões a tempo" (à dir.: a antiga escola da PIDE, em Sete Rios).

O trabalho quase arqueológico de Ana Aranha - motivo de orgulho para a RTP - teve, como também assinala a prefaciadora, o notável sentido de oportunidade de recolher testemunhos de pessoas torturadas, 40 anos e mais após os factos, quando uma parte dos traumas se foi dissipando e a idade avançada confere a várias delas, até agora algo reservadas, o sentimento de uma última chance para deixarem aos vindouros o que possa servir-lhes como aviso à navegação.
No limite da dor. A tortura nas prisões da PIDE

Autores: Ana Aranha, Carlos Ademar
Prefácio: Irene Pimentel
Posfácio: Mário de Carvalho
Editora: Parsifal

O sentido de oportunidade não tem que ver apenas com o calendário de vida das pessoas em causa, mas também com a subversão de valores que voltou, recentemente, a viabilizar grosseiras mistificações em torno da tortura. Portugal é, no mapa de tais branqueamentos ideológicos, apenas um cenário para réplicas do epicentro norte-americano.
Contexto internacional mais recenteO grande polo branqueador foi a cartilha defendida sob Bush II, que excluiu do conceito de tortura métodos como o waterboarding (imersão em água da cabeça da pessoa interrogada, com simulação de afogamento) e que, nas palavras de um congressista norte-americano, admitiam a licitude de todos os métodos de interrogatório parando apenas à beira da mutilação do prisioneiro.

Sob a presidência de Bush II, assistimos em Guantánamo ao internamento perpétuo de prisioneiros sem culpa formada nem direito a julgamento, à criação de centros de interrogatório e tortura em países sem as peias legais dos EUA - mesmo cerceadas como elas estavam com a legislação sucessiva ao 11/9 -, bem como aos voos secretos da CIA. Em Portugal, deu-se até o detalhe picante de ser o Governo de um antigo dirigente do MRPP, Durão Barroso, quem deu luz verde à passagem desses voos pelo aeroporto das Lajes - ironia amarga para quem lê as entrevistas de Ana Aranha a antigos militantes do MRPP torturados pela PIDE.

Foi no breve interregno de Bush II, em que o vício já nem prestava à virtude a homenagem da hipocrisia, que se assistiu a outings espectaculares como o do general francês Aussaresses, a admitir o que toda a gente sabia e quase ninguém (excepção feita ao desbocado Le Pen) se atrevia a dizer: que a tortura tinha sido um método sistematicamente utilizado pelas tropas coloniais na guerra da Argélia. A indignação oficial foi, apesar de tudo, reveladora: não se disciplinou Aussaresses por torturar, mas por contar a verdade, com intolerável desprestígio para a bandeira francesa.

Na era de Obama voltou-se, entretanto, a tratar o tema com o pudor da hipocrisia - pelo menos a de considerar como tortura o waterboarding e a de declarar de forma tonitruante a intenção de encerrar Guatánamo. Hoje, com a aproximação do final do segundo mandato de Obama, nenhum agente da CIA foi arguido por utilizar o waterboarding, nem nenhum responsável foi arguido por mandar utilizá-lo. Guantánamo continua a funcionar, e apenas as sucessivas greves de fome dos prisioneiros repuseram na agenda o tema do encerramento.

No tempo da ambivalência, o Sócrates político, que manteve ou encobriu a política de permitir a escala em território português dos voos secretos da CIA, pode dar lugar ao Sócrates filósofo, que discorre em ambiente académico sobre o que a tortura tem de abominável.
Prender para investigar
Sob a presidência de Obama recaíram também no descrédito velhas justificações da tortura, como a da urgência de obter informações para evitar atentados iminentes. Velha como o mundo, ou quase, essa justificação já era regularmente utilizada pela PIDE, como fica claro no livro agora publicado. E, no entanto, a PIDE, depois de capturar as suas vítimas, nem sempre tinha pressa em torturá-las e não hesitava em fazê-las esperar dias ou semanas pelo início das sessões de tortura.

Por um lado é verdade, como sublinha Irene Pimentel, que a PIDE não prendia por ter investigado, antes prendia para investigar. Incapaz de trabalhos sofisticados de dedução sherlockiana ou de polícia científica, a PIDE atirava muito barro à parede, prendia muito primeiro e fazia perguntas depois.

E também é verdade que a PIDE, depois de prender um militante clandestino, tinha relativamente pouco tempo para tentar quebrá-lo e submetia-o, por isso, a torturas de grande violência. O contra-relógio da tortura não tinha que ver com a iminência de atentados "terroristas", que em Portugal nunca existiram, e sim com a probabilidade de os camaradas do preso, uma vez notada a sua falta, tomarem novas precauções.

A tortura do sono, só por si, era ineficaz, porque demorava demasiado tempo a produzir efeito. A "estátua", obrigando a pessoa presa a manter-se em pé, acelerava a produção de efeitos, mas com tal violência que os médicos serventuários da PIDE tinham frequentemente de alertar os interrogadores para o perigo de vida que faziam correr à sua vítima.

Acontece que a tortura não era só instrumental para arrancar informações, mas também para destruir a personalidade dos presos - para tentar, afinal, neutralizar moralmente um inimigo no momento em que os pides o tinham à sua disposição. Tomando a tortura em sentido lato, ela esteve presente na própria concepção das prisões, como deixa claro o depoimento de Edmundo Pedro (acima, nas fotos da sua ficha da PIDE) sobre o "campo da morte lenta", no Tarrafal.
Torturar para destruir os presosO então jovem militante comunista, posteriormente filiado no PS, é hoje com o marinheiro comunista, insurrecto de 1936, José Barata, um dos dois últimos tarrafalistas sobrevivos. As suas recordações sobre a "frigideira", os castigos de isolamento aplicados aos presos, a falta de cuidados médicos que causou bom número de mortes por doenças facilmente curáveis (o médico do Tarrafal gabava-se de lá estar apenas para passar certidões de óbito), evidenciam mecanismos para a destruição dos presos e não para coadjuvar, mesmo na forma primitiva de interrogatórios brutais, uma investigação largamente deficitária.

A função do Tarrafal como campo de morte tornou-o um alvo fácil para as campanhas de solidariedade internacional com os presos. A morte de alguns proeminentes, como Bento Gonçalves, vítima também de doença curável, potenciou o clamor contra o Tarrafal e obrigou mesmo a fechá-lo temporariamente, sendo depois reaberto mais adiante, com novas ocorrências de criatividade torcionária (como a "holandinha", célula exígua para os castigos de isolamento, referida no depoimento de Justino Pinto de Andrade).

Mas as intermitências do destino do campo de concentração nada retiram à permanência desta concepção da tortura como forma de destruir os presos, que Fernando Rosas (na foto abaixo, da sua ficha policial) destaca em depoimento prestado.

Tortura para ricos e tortura para pobresNaturalmente, a PIDE via-se limitada nesse esforço destrutivo por factores políticos que agiam diferentemente, consoante a pessoa presa fosse um camponês, um operário, ou um intelectual de oposição. Mesmo em ditadura, havia uma opinião pública, havia solidariedades sociais, profissionais, familiares, havia apresentações em tribunal que se tornavam embaraçosas apesar da cumplicidade sem falhas entre magistratura e polícia (com espancamentos na própria sala de audiências, e os juízes a olharem para o lado) e havia, não menos importante, a repercussão internacional que podia alcançar o destino de presos mais conhecidos.

Outra coisa era, evidentemente, o quadro de actuação da PIDE nas ex-colónias, em que podia matar impunemente e em que isso sucedeu com uma frequência muito superior à da metrópole. O programa radiofónico de Ana Aranha, e portanto o livro, por compreensíveis limitações logísticas não pôde debruçar-se sobre a face colonial da PIDE - a mais brutal e incontinente de todas, em boa parte estudada pela historiadora Dalila Cabrita Mateus.

Pôde, no entanto, fazer-nos entrever, no destino das pessoas mais desprotegidas socialmente que foram parar às mãos da PIDE, como terá sido a dinâmica da tortura nas colónias africanas e muito especialmente quando o início da guerra colonial passou a forncer-lhe o alibi para uma autêntica orgia de violência.

Casos como o de Custódia Chibante (na foto, em baixo) e de várias camponesas do Couço, Ribatejo, são exemplares de como a PIDE se encarniçava contra as suas vítimas socialmente mais indefesas. Os e as interrogadoras da PIDE torturaram Custódia Chibante como se tivessem diante de si uma funcionária altamente responsável do PCP, que na altura ela estava longe de ser.

Para essa sanha concorriam vários factores, que a entrevistada destrinça com perspicácia. Um, é o de ter caído nas mãos da PIDE num momento em que a polícia política já entendera que as mulheres detidas não eram apenas as companheiras dos militantes, mas que "faziam o trabalho dos homens". E, para trabalho igual, tortura a dobrar, como se se pretendesse castigar também uma infracção à tradicional partilha de papéis na sociedade portuguesa.

Outro, é o factor de classe, que no caso de Custódia Chibante teria até a atenuante de o pai exercer uma profissão um pouco mais próspera que a de simples camponeses do Couço: era pedreiro, ele, e tinha, a filha, a ambição de chegar a professora primária. Mas a quem lê o relato ficam poucas dúvidas de que a entrevistada foi alvo de violências que só com muita precaução seriam emuladas nos interrogatórios de médicos ou advogados. A atenuante servirá, quando muito, para nos lembrar o facto estatístico indesmentível de que a quase totalidade dos presos mortos na tortura eram operários ou camponeses.
Falar ou não falarA outra questão importante que é aflorada em vários depoimentos do livro é a do porte na prisão. O tema está balizado nos seus dois extremos: num deles o de José Pinto Sá, antigo militante dos CCR-ML (Comités Comunistas Revolucionários-Marxistas Leninistas), hoje professor no Instituto Superior Técnico, que  verdadeiramente se passou para a PIDE. A instâncias da polícia escreveu relatórios, reescreveu-os quando eles não eram satisfatórios, considerou-se uma "alma" conquistada" pela PIDE, e não simplesmente alguém que tivesse quebrado sob a pressão da tortura, que aliás admite não ter sido, no seu caso, especialmente brutal.

Depois do 25 de Abril, Pinto Sá foi preso devido à sua voluntária colaboração com a PIDE. Mais tarde, dirigiu-se à Torre do Tombo para consultar o seu processo, por querer que lhe fosse contado o tempo de cadeia, para efeitos de reforma. E nessa altura também escreveu um livro que lhe permitiu publicitar os seus estados de alma.

Caso semelhante, referido por Fernando Rosas, é o do antigo funcionário do PCP Nuno Álvares Pereira, que colaborou activamente com a polícia na perseguição dos seus ex-camaradas, ou o de Augusto Lindolfo, também funcionário do PCP.

No extremo oposto, estão militantes como Domingos Abrantes (na foto, em baixo), a sua companheira, Conceição Matos, José Pedro Soares, os três militantes com responsabilidades no PCP, a já citada Custódia Chibante, também do PCP, ou Aurora Rodrigues, do MRPP, que não forneceram à PIDE quaisquer informações e que justificadamente reivindicam esse mérito.


No meio, uma extensa gama de situações intermédias (casos assumidos de Joaquim Monteiro Matias, Georgina Azevedo, Luís Moita, por exemplo), pessoas que confirmaram informações com que a polícia as confrontava, ou assinaram declarações que as incriminassem a elas próprias, e por vezes a terceiros. Os depoimentos chegam a ser dilacerantes, por se tratar de confissões de fraqueza por parte de pessoas que, por outro lado, continuaram a considerar-se inimigas dos torcionários e carcereiros. Sem excepção, as pessoas que assumem ter quebrado na cadeia consideram o facto como uma amarga derrota pessoal. Como diz Custódia Chibante, sofreram às mãos da PIDE e ficaram para o resto da vida a sofrer às  mãos delas próprias.

Só num caso, o de Joaquim Monteiro Matias, se ensaia uma ideologia autojustificativa: a de ninguém poder criticar a capitulação de uma vítima da tortura sem ter passado pelo mesmo. A isto respondia o recentemente falecido Francisco Martins Rodrigues - também ele quebrado sob violentas torturas na sua última prisão, depois de as ter aguentado estoicamente em ocasiões anterioes -, que censurava a si próprio não ter estado à altura de outras pessoas que nada disseram. Quem nunca passou pela tortura, saberá apesar de tudo distinguir entre diferentes comportamentos de quem passou, como sublinhava Martins Rodrigues.
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