Como os pides do Porto foram libertados

Ao contrário do que sucedeu em Lisboa, os pides do Porto foram libertados e os seus arquivos foram em boa parte destruídos. O facto deveu-se a uma série de imprevistos que levaram um pouco mais de uma centena de tropas especiais vindas de Lamego a ter de trocar a neutralização da PIDE por outras missões. Para entender o processo é decisivo o testemunho do então capitão Delgado Fonseca, que comandava essas tropas.

RTP /

Em relato elaborado de memória e datado de Dezembro de 2007, Delgado Fonseca (hoje coronel) conta como aderiu ao movimento dos capitães e como mobilizou um pouco mais de uma centena de tropas do Centro de Instrução de Operações Especiais (CIOE), em Lamego, para intervir no 25 de Abril. Nesse relato, conta que "combatendo em África me senti quase sempre capataz ou servidor de interesses alheios". Começou, assim, por ser delegado do Movimento dos Capitães em Cabinda.

Na sequência da revolta das Caldas, vários oficiais do CIOE suspeitos de envolvimento foram exonerados e substituídos, o que o autor do relato designa como a "purga dos capitães", que levou a que ficasse a haver no CIOE muito poucos oficiais do Quadro Permanente.

O próprio Delgado Fonseca foi na altura deslocado para essa unidade. Ficou no CIOE como director de Instrução. Ao contrário da situação que descreve Salgueiro Maia para a EPC, "a situação logística do CIOE era bastante boa, já que no dia a dia tinha de dar satisfação às necessidades das importantes missões de formação de quadros e de forças para a guerra". Tinha uma boa frota de viaturas, bons meios de transmissões e podia dispor das munições reais que usava na instrução.Mudança de planos à entrada no PortoEm depoimento recolhido por Maria Flor Pedroso para a Antena 1, Delgado Fonseca conta que, ao entrar no Porto, pelas 6h30 da manhã, teve dificuldade em contactar com o Posto de Comando do Movimento na região, porque as comunicações telefónicas tinham sido cortadas. Finalmente conseguiu contactar com o CICA (Centro de Instrução de Condução Auto). Nesse contacto recebeu a indicação para pôr de lado, para já, o seu alvo inicial - a PIDE - e para se dirigir ao CICA.

Aí ficou a saber que o Quartel General da Região Militar fora ocupado à hora aprazada, mas se vira privado de comunicações. Algumas missões tinham sido cumpridas, outras não, a GNR mantinha-se neutra. Pelo contrário, "o comandante da Polícia de Segurança Pública vinha recusando mandar recolher as suas forças às respectivas esquadras e ameaçava mandar carregar sobre qualquer manifestação da população, apesar das várias intimações que lhe foram feitas pelo telefone".

Nas horas seguintes, as tropas do CIOE trataram de ocupar a Central Telefónica, prender o engenheiro que tinha cortado as comunicações, restabelecer a ligação com o Quartel General e as emissões de rádio, para que pudessem chegar à população dos comunicados do movimento.

Por volta das 17h, registava-se o primeiro ajuntamento de pessoas reagindo a notícias desconhecidas até aí - na circunstância em frente do jornal "Comércio do Porto", cujos jornalistas tinham afixado à porta um cartaz dando conta do movimento que noutros centros do país já tinha alcançado posições decisivas.

O relato de Delgado Fonseca recorda que "por essa hora é recebido no comando do CICA 1 um telefonema do Coronel Santos Júnior [...] dizendo que ia mandar carregar sobre aquele ajuntamento, sendo-lhe imperativamente ordenado que o não fizesse com ameaça de vir a ser preso se desse essa ordem".

Outras manifestações começavam a ter lugar noutros pontos da cidade (na foto em cima, concentração em frente à Câmara Municipal), com cada vez mais pessoas a participarem. Mesmo assim, de pouco serviram as advertências dos militares ao chefe da polícia, porque "nesse mesmo momento, quando os militares do CIOE em escolta do capitão Castro Carneiro saíam das instalações dos CTT na rua de Ceuta, a polícia iniciou uma carga contra a multidão que já dava vivas ás Forças Armadas".
PSP foge do povo, militares protegem as políciasA reacção dos manifestantes foi imediata e fulminante: "a multidão levantou em ombros os soldados desta força do CIOE e correu contra os agentes da polícia que foram obrigados a retirar e a refugiar-se nas esquadras". O incidente ia ser fértil em consequências, dando lugar "durante toda a noite e dias seguintes a grandes movimentos populares contra as esquadras policiais, neutralizando por completo a eficácia da Polícia de Segurança Pública cujas esquadras tiveram que ser protegidas pelas forças militares. A PSP ficou assim impossibilitada de garantir a segurança civil na cidade do Porto, nas semanas que se seguiram".

Os militares viam-se entretanto perante enormes manifestações de apoio das populações" e, por outro lado, algo que os preocupava: a "agressividade das multidões para com as forças policiais e agentes do regime deposto". Por isso, as suas missões seguintes incluíram "a protecção das esquadras de polícia na cidade, a ocupação e controle das instalações da sede da PIDE / DGS, a ocupação da sede da Legião Portuguesa".

Com efeito, as instalações da PIDE/DGS na rua do Heroísmo "estiveram desde o anoitecer do dia 25 sob forte pressão da multidão enfurecida, mas protegidas do exterior por uma força do RAP2 da Serra do Pilar".
Carlos Azeredo e a libertação dos pidesNa noite do dia 25, com notícias da situação já controlada em Lisboa, Delgado Fonseca passou a fazer parte do Estado Maior da Região Militar do Porto, tendo transmitido o comando operacional da força do CIOE ao capitão Lopes de Oliveira. Na manhã do dia seguinte, passou-se no entanto algo inesperado: "o Tennte Coronel Carlos Azeredo [hoje general], mobilizou a Comp Cmds 4041 sem meu conhecimento e foi ocupar aquelas instalações da DGS. Obteve a rendição daquela polícia e mandou evacuar os agentes em camiões militares escoltados para virem a ser libertados algures a norte da cidade".

Delgado Fonseca acrescenta ainda: "Preocupado com esta situação, pois esta era a missão específica que as forças do CIOE que comandei tinham recebido na ordem de operações, desloquei-me imediatamente para o local. Ali fui constatar um cenário que militarmente nunca julguei ver: da janelas abertas do primeiro andar o Tenente Coronel Carlos Azeredo e acompanhantes punham a multidão em delírio atirando para a rua todo o tipo de fichas e documentos e recebendo efusivas manifestações. O portão estava controlado por militares mas no interior das instalações havia já muitos civis que vandalizavam ficheiros e equipamento. Por todo o lado, a começar pelas escadas de acesso ao primeiro andar estavam abandonadas inúmeras armas e razoável quantidade de munições de vários tipos e calibres".

O epílogo conta-se em duas palavras no relato de Delgado Fonseca: "Logo que o Tenente Coronel Azeredo abandonou as instalações mobilizei os militares de Lamego para carregar todas as armas e munições em viaturas militares que enviei para o QG e dei ordem aos oficiais do CIOE para evacuarem do interior toda a gente e passarem a controlar o acesso até que fossem rendidos".


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