A epidemia que em 1911 assolou a China e faz repensar a importância da união global

Há mais de uma centena de anos, uma epidemia que ameaçou tornar-se em pandemia propagou-se pela China, levando à imposição de quarentenas, ao uso de máscaras, a restrições na circulação e ao controlo de fronteiras. Mais de 60 mil pessoas morreram devido àquela que ficou conhecida como a Grande Praga de Manchúria. Várias nações uniram-se então para ajudar a China a perceber o que tinha acontecido e para retirar dessa pandemia uma lição. Hoje, com o surto de Covid-19 presente na maioria dos países de um mundo que aparenta estar dividido, vale a pena repensar a importância de uma resposta global coordenada para combater as crises pandémicas.

Joana Raposo Santos - RTP /
Há uma centena de anos, a China viveu uma epidemia que em vários aspetos se assemelha à atual pandemia de Covid-19. Foto: Kim Hong-Ji - Reuters

Num artigo para a CNN, o autor Paul French explica que a Grande Praga de Manchúria eclodiu a norte da China no Outono de 1910 e apenas foi ultrapassada no ano seguinte. Durante esse período, a epidemia vitimou 63 mil pessoas e foi capa de jornais de todo o mundo, especialmente a partir do momento em que atingiu a cidade de Harbin, que na altura pertencia à região da Manchúria.

Harbin era então uma cidade internacional onde residiam comunidades de russos, japoneses, americanos e europeus que trabalhavam para a Ferrovia da China Oriental, que ligava a Sibéria à cidade portuária de Dalian, controlada pelos japoneses.

Entre as trocas comerciais que dependiam dessa ferrovia estava a de peles de animais, indústria que se acredita ter sido a causa deste surto do século XX – à semelhança do que tem sido avançado sobre a Covid-19, que poderá ter tido origem num mercado de animais selvagens na cidade de Wuhan. Paul French explica na CNN que os sintomas desta doença eram habitualmente febre seguida de hemoptise, um distúrbio pulmonar que provoca tosse com sangue.

No caso da praga da Manchúria, poderá ter sido um roedor o animal que passou aos humanos a doença, mais precisamente a chamada marmota de Tarbagan, espécie que vivia na Mongólia e na Manchúria e cuja pele era comercializada a valores elevados por europeus, americanos e japoneses.

Hoje em dia, como se verificou recentemente com a pandemia de Covid-19, os vírus espalham-se rapidamente pelo mundo ao serem transportados por viajantes. No início do século XX, a Grande Praga de Manchúria terá sido propagada por quem viajava de comboio, tanto que os principais focos se encontravam em cidades com grandes estações ferroviárias, como Tianjin e Pequim.
Especialistas de todo o mundo ajudaram a China
Conta ainda o autor Paul French que, apesar das limitações existentes há cem anos, a resposta à epidemia foi rápida, tendo sido imposta a quarentena a pessoas que as autoridades acreditassem terem estado em contacto com a doença, nomeadamente familiares das vítimas mortais, assim como a comerciantes de peles de animais.

Os enterros foram proibidos, sendo substituídos por cremações em massa. Foram impostas restrições às viagens. O uso de máscaras foi implementado. Médicos e epidemiologistas de toda a China foram mobilizados. Este conjunto de medidas fez com que, no final de janeiro de 1911, o nível de infeção estivesse de tal forma reduzido que foi declarado o fim da praga. Tal como agora, perante a pandemia de Covid-19, também na altura se construíram rapidamente hospitais na China para isolar e tratar pacientes infetados.

Foi precisamente nessa altura que começou a ser planeado um encontro de especialistas internacionais na China, para que em conjunto fosse descoberta a origem científica da bactéria e o modo como esta se transmitia, eliminando rumores que circulavam naquelas a que hoje chamamos de “notícias falsas”.

A conferência sem precedentes, realizada num palácio com salas de reunião e laboratórios improvisados, acabou por acontecer a 3 de abril de 1911. Para além de virologistas, bacteriologistas e epidemiologistas da China, Rússia e Japão, estiverem presentes peritos vindos dos Estados Unidos, França, Itália, México, Holanda, Alemanha e império Austro-Húngaro.

Juntos, discutiram se a doença se transmitia apenas através da tosse ou se poderia também transmitir-se em partículas presentes na comida, se existiam aqueles a que hoje chamamos pacientes assintomáticos e quais as medidas que funcionaram melhor para a contenção da epidemia, explica Paul French.
“Vivemos num mundo mais polarizado”
“Em 1911 não existia Organização Mundial da Saúde (OMS)”, escreve French no artigo para a CNN. “O trabalho de limitar a propagação da epidemia foi da responsabilidade das nações individuais, muitas vezes nações com antagonismos políticos”.

O autor acredita que foram os esforços conjuntos desses países, assim como as medidas rapidamente implementadas pela China, que impediram o alastramento da doença para outros continentes.

Agora, num momento em que o mundo enfrenta uma nova pandemia, essa união nem sempre é verificada, tendo existido dificuldades na resposta multilateral e coordenada dos líderes políticos. “Vale a pena reconsiderar os aspetos colaborativos da conferência de 1911”, refere French.

“Hoje, a OMS parece comprometida, o vírus foi racializado, grandes nações estão zangadas umas com as outras e a competir por recursos e pelo controlo da narrativa, enquanto países mais pobres são deixados por conta própria”.

“Em comparação com 1911, aparentamos viver num mundo mais polarizado e dividido”, acrescenta.

O novo coronavírus já contagiou mais de dois milhões de pessoas, das quais mais de 158 mil são vítimas mortais. Da doença já recuperaram mais de 576 mil pacientes.
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