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"A ETA não acaba por convicção, mas por necessidade". O que ficou depois do terrorismo?

por Andreia Martins (texto), Nuno Patrício (vídeo)
Vincent West - Reuters

Várias décadas no ativo, mais de 850 mortos e pelo menos sete mil feridos. A 20 de outubro de 2011, o grupo separatista e terrorista ETA anunciava "o fim da luta armada" em Espanha. Dez anos depois, as feridas e as marcas deixadas pela organização que pretendia a independência do País Basco continuam por sarar. Em entrevista à RTP, o investigador Diogo Noivo assinala o papel que Portugal desempenhou nos derradeiros anos da organização e a "singularidade" de um movimento que, ao cair do pano, não terminou por declarada rejeição da violência, mas por incapacidade operacional. O analista argumenta ainda que as tensões no território não desapareceram, com persistentes manifestações de ódio étnico e sectário.

O vídeo divulgado a 20 de outubro de 2011 mostava três homens encapuçados a anunciarem "o fim definitivo da atividade armada". Os representantes da ETA asseguravam, na altura, o compromisso "claro, firme e definitivo" e pediam a Espanha e França a abertura de um processo de diálogo.

Dez anos depois, a ETA tem cumprido a promessa, mais por exaustão e incapacidade do que por ideologia. Hoje, no País Basco, há uma normalidade e uma paz política que seria impensável há apenas alguns anos. A organização entregou algumas das armas em 2017 e no ano seguinte anunciou a dissolução total e definitiva.

No entanto, a rejeição da violência do passado não significou o fim absoluto da causa basca e dos ódios mútuos cravados na comunidade autónoma Euskadi. Em entrevista à RTP, por ocasião desta efeméride, o investigador Diogo Noivo assinala o regresso à região de algumas formas de violência, para já apenas no plano simbólico e psicológico. 

"Não há uma agitação muito evidente, ostensiva, como temos nas ruas da Catalunha, mas debaixo da superfície, há certas tensões que se julgavam desaparecidas, e que parecem surgir novamente", alerta o analista político, autor do livro "Uma História da ETA: Nação e Violência em Espanha e Portugal", editado em setembro de 2020.

Na entrevista a propósito dos dez anos desde o fim do terrorismo da ETA, Diogo Noivo faz um balanço positivo de um processo que deu mais qualidade à democracia espanhola, processo esse em que França, e mais tarde também Portugal, foram parceiros decisivos.

Pergunta: Assinalam-se os dez anos desde o fim da luta armada da ETA. Importa olhar desde logo para a génese desta organização. Como é que a ETA passa de um movimento cultural e político para se tornar num movimento terrorista? A organização nasce 20 anos depois da Guerra Civil de Espanha e em pleno franquismo. Essa realidade contribuiu de alguma forma para moldar a ETA?

Resposta: Muito pouco. A ETA nasce no final de 1958, embora a data oficial seja 1959. A ETA nasce com uma natureza cultural. Aliás, os membros fundadores da ETA falavam em aventureirismo armado. De facto a ETA pouco mais fazia do que colocar pequenos engenhos explosivos junto a estátuas ou edifícios à noite, quando não havia ninguém. Era uma estratégia de baixa intensidade ou violência do que propriamente uma organização terrorista.

Contudo, abre-se um debate na segunda metade da década de 60, debate que foi influenciado pelos movimentos de libertação nacional em vários locais: Norte de África, América Latina. Aparece também na ETA o primeiro grande carregamento de armas e em 1968 a ETA comete o primeiro homicídio. Esse homicídio, o membro da ETA que comete esse homicídio, foi pouco depois morto pelas forças e serviços de segurança. O que significa que o debate que existia dentro da ETA rapidamente desapareceu. Se parte da organização defendia a manutenção desse aventureirismo armado, sem dar o salto para o terrorismo, a outra parte que defendia um salto para transformar a ETA numa organização terrorista acaba por vencer o debate. A partir do momento em que há um membro da organização morto, todos os membros da ETA se sentiram obrigados a unirem toda a militância em torno desse objetivo. O franquismo contribuiu pouco. Foi muito mais importante a dinâmica interna dentro da ETA.

Ou seja, foi esse homicídio que acabou por precipitar a evolução para a ação terrorista.

Sim. Em 1968, ainda antes do homicídio, parte da ETA que queria dar o salto para o terrorismo, já tinha decidido matar. Existam aliás duas ordens emitidas para o homicídio de dois chefes de polícia no País Basco. O homicídio acaba por ser não planeado. É um jovem de 25 anos, polícia de trânsito galego, José António Pardines, que numa operação de trânsito é abatido a tiro por dois membros da ETA que se deslocavam na Estrada Nacional 1 para ir buscar um carregamento de explosivos. O jovem que disparou, membro da ETA, Txabi Etxebarrieta, acaba depois por ser abatido pela própria Guardia Civil. Portanto foi o primeiro a matar e o primeiro a morrer. Foi o primeiro mártir.

E de facto a organização elevou-o ao estatuto de mártir e esse suposto martírio fez com que a organização e os seus militantes se sentissem obrigados a recorrer à violência. É evidente que nada disto justifica o terrorismo. Esta foi a narrativa usada dentro da organização. Mas a dinâmica interna foi um pouco esta, e portanto a partir da segunda metade da década de 60, a ETA decide matar e em 1968 matou mesmo. A partir daí inicia-se uma espiral de violência que mais não terminou até ao século XXI.

Com a transição democrática, com o fim do período franquista, a ETA manteve-se ativa por várias décadas. O que pode explicar que esta organização se tenha mantido no ativo durante tanto tempo?

Várias razões. Em primeiro lugar convém perceber essa relação entre existência durante o período franquista e existência durante o período democrático. A ETA, 60 por cento do seu tempo de vida, ocorre com Espanha a viver em democracia. E quando olhamos para o número de vítimas mortais, a ETA assassinou, grosso modo, 850 pessoas. Dessas 850 pessoas, 95 por cento foram assassinadas depois de 1978. Ou seja, depois da aprovação da Constituição Democrática em Espanha. Há um pouco aquela ideia de que a ETA foi sobretudo uma organização anti-franquista… mas isso não é verdade.
"A ETA matou sobretudo em democracia"

A ETA matou sobretudo em democracia e, em entrevistas várias, desde logo na última entrevista que deu, em 2018, a ETA diz de forma muito explícita: nós nunca fomos anti-franquistas, nós fomos anti-Espanha. Para nós foi sempre indiferente saber que em Espanha existia uma ditadura ou uma democracia. O nosso inimigo era Espanha e portanto, a natureza do regime incumbente em Espanha foi sempre relativamente indiferente para a ETA. A ETA matou sobretudo em democracia.

Matou porque conseguiu usar em proveito próprio o período de instabilidade normal da transição e consolidação da democracia. Aliás, a ETA foi de maneira assumida um entrave declarado à consolidação da democracia em Espanha. E conseguiu também capitalizar um conjunto de insatisfações. Mas a ETA conseguiu sobretudo tornar-se herdeira de narrativas de vitimização que vêm desde o final do século XIX, início do século XX, e conseguiu apresentar-se à sociedade como uma verdadeira defensora da nação basca. Para isso contribuíram alguns erros da democracia, mas para isso contribuiu também uma enorme capacidade de mobilização da ETA. Essa capacidade deve-se em parte ao facto de a ETA não ter sido apenas uma organização armada.

A partir da transição democrática, a ETA criou ao seu redor um conjunto de organizações – partidos políticos, sindicatos, associações de estudantes, movimentos ecologistas – criou um conjunto de apêndices ao seu redor que permitiam à ETA, por um lado ocupar o espaço publico, e por outro lado atuar nos dois tabuleiros do xadrez. Ou seja, se atuava no campo da violência podia atuar também no campo eleitoral e no campo de mobilização social.

A ETA, ao tornar-se muito mais do que uma organização terrorista, ao tornar-se uma espécie de vanguarda, de movimento muito mais amplo, conseguiu de maneira muito simples usar as fortalezas da democracia em benefício próprio. Essa é parte da razão, de maneira muito resumida, pela qual a ETA consegue chegar ao século XXI.

Também tinha um braço cultural, digamos assim, com a defesa da língua e da cultura basca. Foi sempre algo que a ETA também quis sempre advogar.

Sim, sendo que quando olhamos para os factos históricos, existe uma grande dose de hipocrisia nessa defesa. A ETA, como todos os movimentos nacionalistas, quis levantar uma fronteira étnica dentro do País Basco. Ou seja, separar aqueles considerava os verdadeiros bascos daqueles que considerava traidores. A ETA aliás disse sempre que era menos gravoso assassinar um traidor do que um inimigo. O que faz que quando olhamos para os números, percebemos que o grosso da violência etarra incidiu sobre o País Basco, incidiu sobre os bascos.

Havia um conjunto de pessoas no País Basco que, tendo nascido naquele território, sentindo-se bascos do ponto de vista cultural, e falando a língua basca, o Euskera, pelo simples facto de não subscreverem o ideário da ETA, tornaram-se vítimas. Primeiro vítimas de ameaças e depois muitas vezes executadas.
Portanto a ETA defendia a cultura e a língua de acordo com os seus próprios termos. Aqueles bascos que embora tivessem descendência basca, falassem a língua e se identificassem com a cultura, mas que não partilhassem os princípios da organização, eram considerados traidores da nação e como tal considerados também vítimas legítimas de violência.
"ETA estava a começar a transferir estrutura logística e operacional para Portugal"
Num dos capítulos do livro que escreveu sobre este tema, na sua investigação, aborda o envolvimento de Portugal. Qual é que conclui ter sido o papel da Portugal no meio deste fenómeno? Qual foi o papel do país vizinho aqui na questão basca?

Portugal acabou por ser uma necessidade. No início do século XXI, a ETA tem muita dificuldade de atuar nos seus territórios naturais, isto é, em Espanha e em França. E esta dificuldade surge por um conjunto de razões. Em primeiro lugar, em Espanha, aprova-se um pacto anti-terrorista, em que todos os partidos de esquerda e de direita, liberais e conservadores, se unem para combater o terrorismo. Há uma espécie de fortaleza politica contra a violência. É aprovada também uma lei de partidos na qual diz que todos os partidos para serem legais têm de assumir princípios democráticos e os princípios democráticos é rejeitar o uso da violência como instrumento de ação politica. Isso permitiu ilegalizar um conjunto de braços políticos da ETA.

Mas também um outro fator importante para que a ETA se encontrasse numa situação extraordinariamente débil no início do século XXI é que a cooperação bilateral entre Espanha e França atinge o seu ponto máximo. A cooperação entre as autoridades em Madrid e em Paris torna-se muito estreita e a ETA começa a perder não só comandos, as suas células, mas começa a perder dirigentes também.

A ETA fica sob enorme pressão quer do ponto de vista político quer do ponto de vista operacional. Esta situação de pressão faz com que a ETA decida que necessita de uma alternativa. Até por razões geográficas, Portugal acaba por ser essa saída, quase a única alternativa que a ETA tem para compensar aquilo que perdeu em França.

França foi durante muitos anos o santuário da ETA, onde a organização formava os seus militantes, criava células e depois as projetava sobre território espanhol para cometer atentados. E depois recuava novamente a França.
A cooperação bilateral complica isto bastante e a ETA procura em Portugal uma alternativa. Começam a aparecer vários sinais. Três viaturas portuguesas são usadas em atentados ou atividades logísticas da ETA. Em 2002 há dois atentados, um em Málaga e outro em Alicante, que são reivindicados a partir de Lisboa, e nós conseguimos perceber que a célula terrorista comete os atentados em Espanha e, em vez de recuar para França, já recua para Portugal.

Depois mais tarde, a 9 de janeiro de 2010, dois etarras que entram em Portugal, na altura não se percebe muito bem porquê, mas entram em Portugal com uma carrinha que tinha documentação falsificada, matrículas falsificadas, detonadores, cordão detonante. E depois mais tarde, encontra-se já em fevereiro de 2010, a célebre casa de Óbidos, a casa do Avarela, onde se descobrem grosso modo, 1.500 quilos de explosivos da ETA.

Esta casa acaba por ser muito relevante porque é o culminar de um conjunto de sinais que surgem desde o início dos anos 2000. A casa era em grande medida um grande laboratório de fabrico de engenhos explosivos. A casa ficou conhecida em Espanha, sobretudo junto das forças e serviços de segurança, como Cahors 2. Porque poucos meses antes, as autoridades francesas tinham identificado em França, em Cahors, uma casa com equipamento em tudo semelhante àquele que foi encontrado em Óbidos. E a casa de Cahors foi um dos principais laboratórios e fábricas de explosivos da ETA no século XX.

A ETA basicamente estava a começar a transferir a sua estrutura logística e operacional para Portugal, não porque encontrasse em Portugal alguma vantagem especial. Simplesmente porque perdeu a sua capacidade de atuação em França e em Espanha. E de facto a cooperação bilateral entre França e Espanha, e mais tarde a cooperação a três, com Portugal, acabou por se revelar determinante para o fim da ETA.
"Portugal estava a ser transformado pela ETA como um novo santuário"

O então ministro espanhol do Interior, Alfredo Pérez Rubalcaba, numa entrevista num documentário, disse mesmo que se não tivesse sido descoberta a casa de Óbidos, isso teria levado a polícia espanhola e a francesa à loucura. Espanha acaba por reconhecer isso. Portugal estava a ser transformado pela ETA como um novo santuário, ou tentar fazer do nosso país um novo santuário, coisa que não aconteceu graças às forças e serviços de segurança.

Para além dessa cooperação trilateral, o que explica o fim da luta armada há 10 anos? O que pesou mais nesta decisão? O desgaste, a divisão social, a questão dos prisioneiros. Quais foram os fatores que mais pesaram?

Foram vários fatores. A luta armada, aquilo que a ETA dizia ser luta armada, que no fundo foi sempre terrorismo, foram vários fatores que coincidiram no espaço e no tempo. Por um lado, o facto de ter sido possível debilitar a ETA, quer do ponto de vista operacional, quer do ponto de vista político. A ETA perdeu simplesmente a sua capacidade, não só para cometer atentados… Nós hoje temos alguma documentação interna da ETA onde os militantes se queixam à direção dizendo que a direção era manifestamente incompetente porque não dava à organização condições para cometer atentados… portanto a organização ficou de facto manietada e isso gerou um mau estar interno. Politicamente perdeu também muita da sua capacidade de mobilização e esses foram os dois fatores determinantes para o fim da ETA.

Esses fatores acabam por explicar a singularidade do fim da ETA. Enquanto por exemplo, na Irlanda, o IRA termina porque entende, não só que a violência é contraproducente, mas sobretudo não faz sentido. A dada altura o IRA entende que a violência não faz sentido, a ETA acaba porque não tem condições para cometer atos de violência. Portanto não há um exame crítico dentro da ETA, não há uma rejeição da violência. Há simplesmente o assumir da perda de condições para manter a sua capacidade operacional e o facto de olharem para o futuro próximo e não verem forma de recuperar essas condições. A ETA não acaba por convicção, acaba por necessidade.
"Entrega de armas foi uma encenação"
Desde o fim das ações terroristas, a ETA entregou as armas em 2017 e declarou a dissolução completa em 2018. Nos últimos dias um líder basco, ex-membro da ETA, admitiu que o nível de violência que foi praticado pela ETA nunca deveria ter acontecido. Um pedido de desculpas quase implícito, mas que não foi de facto um pedido de desculpas. Que marcas é que ainda persistem na sociedade espanhola deste período negro da história?

Bom, as marcas são bastante profundas. Comecemos pelo lado positivo. O lado positivo é o fim da violência. O fim da violência é importante para a segurança de pessoas e bens e para a qualidade da democracia. Importa lembrar que durante a década de 80 e de 90, pelo menos durante a primeira metade da década de 90, os principais partidos, o PSOE ou o PP, não conseguiam por exemplo, apresentar candidatos a algumas câmaras municipais, porque os candidatos que apresentavam eram primeiro ameaçados e depois executados. Naturalmente os partidos políticos começaram a ter muita dificuldade em recrutar cabeças de lista, quer para eleições autárquicas, quer para eleições legislativas. Portanto, o fim da violência é certamente positivo para a segurança das pessoas e também para a qualidade da democracia.

Mas este é de facto o único ponto positivo. Tudo o resto continua a ser preocupante. Nos últimos 10 anos, as forças e serviços de segurança de Espanha e França encontraram 35 depósitos de armamento pertencentes à ETA, em números redondos estamos a falar de 362 armas de fogo, 900 quilos de explosivos, 6.000 cartuchos de munição, 3.100 detonadores de engenhos explosivos. Ou seja, percebemos agora o que já era evidente na altura, que a entrega de armas da ETA foi, em grande medida, uma encenação. Muito do armamento da ETA nunca foi verdadeiramente entregue às forças e serviços de segurança.

Por outro lado, das 850 que a ETA assassinou, 300 homicídios continuam por esclarecer. Ou seja, em 300 casos, não sabemos quem foram os autores morais ou materiais desses homicídios. Há um conjunto de famílias que continuam a não ter justiça. E os herdeiros político partidários da ETA continuam a não querer colaborar com a justiça para esclarecer, entre outras coisas, esses 300 crimes que continuam por esclarecer.
"Muitas vezes estas cerimónias de acolhimento são feitas à porta de casa de vítimas da ETA"
E por outro lado, e esse parece-me um dos lados mais preocupantes dos últimos 10 anos, é a normalização de umas cerimónias que se chamam ongi etorri, em Euskera, em basco, significa “boas-vindas”. São cerimónias de acolhimento dos membros da ETA que são libertados da prisão. As cerimónias acontecem em ruas, em avenidas, em praças públicas, em que estes membros da ETA são acolhidos como gudari, como guerreiros, e como presos políticos.

Importa lembrar que a maior parte destas pessoas foram condenadas por múltiplos homicídios. Portanto o partido herdeiro da ETA, o Euskal Herria Bildu, embora rejeite o uso de violência no presente, continua a glorificar o que foi o uso de violência num passado muito recente. E muitas vezes estas cerimónias de acolhimento são feitas à porta de casa de vítimas da ETA. Pessoas que ficaram feridas ou perderam familiares em atentados.



Isto faz com que seja absolutamente impossível sarar as feridas que qualquer campanha de terrorismo gera em qualquer território. Sendo certo que o fim da violência é positivo, pouco tem sido feito para sarar as feridas. Basta pensar que estas cerimónias de acolhimento, em 2019 foram 108 eventos, e em 2020, um ano de confinamento, contaram-se pelo menos 120.

Ou seja, 120 atos de glorificação de terrorismo da ETA. Evidentemente, quando estamos a glorificar o terrorismo, estamos a menorizar o sofrimento das vítimas. Isso cria um problema social e politico muito grande no País Basco.

Em relação ao pedido de desculpas que terá sido ensaiado esta semana, esse pedido de desculpas tem vários problemas. Em primeiro lugar, a palavra desculpa ou perdão não foi utilizada, nem nenhum sinónimo. O segundo problema é que tudo aquilo que foi dito já tinha sido dito no passado. Não há nenhuma novidade. Aquilo que é essencial, que os herdeiros político partidários da ETA peçam perdão às vítimas e condenem o terrorismo. Isto é algo normal, que os democratas de esquerda e de direita, liberais e conservadores, coincidem numa coisa que é: a violência não é um instrumento legítimo de ação política. O Euskal Herria Bildu, embora rejeite o uso de violência no presente, continua a glorificar a violência do passado, e isso é certamente um problema grave.

Olhando para estes dez anos, há um facto positivo evidente, que é de sinalizar: o fim da violência. Mas tudo o resto continua não só bastante preocupante, como põe em causa a própria qualidade da democracia no País Basco e põe em causa evidentemente o sarar de feridas muito profundas que continuam abertas. A manter-se este tipo de comportamento político e social, será extraordinariamente difícil que essas feridas sarem a curto prazo.
"Nacionalismo catalão socorre-se do mesmo tipo de narrativas"
A minha última questão tem que ver com algo que foi muito visível na realidade espanhola nos últimos 10 anos, que foi a questão da Catalunha. Podemos dizer que há uma paz duradoura no País Basco ou é apenas um problema adormecido? Com estes últimos 10 anos, o independentismo basco acabou por ficar em silêncio perante o independentismo catalão. O que explica a inação ou silencio no País Basco perante a situação na Catalunha?

Eu não sei se houve silêncio. Arnaldo Otegi, o líder do Euskal Herria Bildu, que foi uma das figuras mais importantes da Esquerda Albertzale, esquerda nacionalista pró-ETA, fez um conjunto de declarações de enorme solidariedade com o nacionalismo catalão.

Creio que são dois casos diferentes, na medida em que o terrorismo no País Basco debilitou a autoridade política de um certo independentismo. Como na Catalunha o terrorismo foi um epifenómeno muito da transição democrática, não existe esse peso na Catalunha.

Por outro lado, a Catalunha precipitou-se sobretudo de 2017 em diante numa espécie de fuga para a frente que ninguém teve discernimento de saber travar, nem na Catalunha nem no Governo espanhol. Portanto a Catalunha é uma espécie de tempestade perfeita, em que tudo o que podia correr mal, correu mal.

O caso basco tem um lastro diferente, tem um lastro de enorme sofrimento, muitas vítimas mortais, de tensões internas dentro do próprio movimento independentista. Coisa que aliás começamos a ver agora na Catalunha. E portanto são casos diferentes. No entanto a narrativa acaba por ser a mesma. O independentismo catalão soube ir buscar ao País Basco alguns dos argumentos que se revelaram ao longo das décadas, os mais interessantes para desacreditar e minar a autoridade de Espanha.

Argumentos um bocadinho descabidos, mas enfim Pôr em causa a Constituição de 1978, que é uma Constituição democrática e votada em referendo, pôr em causa a própria instituição monárquica em Espanha, esquecendo que durante a transição democrática, se há monarquia em Espanha, isso deve-se à esquerda. Foi sobretudo a esquerda espanhola que viabilizou a existência de monarquia em Espanha.

O nacionalismo catalão, à semelhança do que fez e faz o nacionalismo basco, socorre-se do mesmo tipo de narrativas, do mesmo tipo de argumentos para por em causa aquilo que é o inimigo comum, Espanha, não só enquanto estado, mas enquanto ideia. Agora parece-me ainda assim que são casos bastante diferentes.



Mas a questão da Catalunha não veio exacerbar as tensões no País Basco quando poderia tê-lo feito, visto que a atividade da ETA terminou há tão pouco tempo.

É discutível que não tenha exacerbado as tensões. Há um lado institucional do País Basco que é o lado dos partidos políticos e o lado do Governo basco. Quer o Governo basco, quer os partidos políticos, percebem que a agitação de rua, a violência de rua, é em grande medida contraproducente por uma razão muito simples. Porque a ETA foi derrotada.

Na Catalunha não há essa experiência. Estão a ter essa experiência agora. Por outro lado, é também verdade que as cerimónias de acolhimento aos presos de que falámos, o facto de haver e de se verificar um certo regresso de algumas práticas de acosso que existiam durante os anos da ETA.

Dou-lhe um exemplo concreto: não era invulgar que, após o enterro de uma vítima da ETA, dois ou três dias depois, a campa da vítima aparecesse vandalizada. Era uma estratégia de acosso da ETA e das organizações da ETA para que se passasse uma mensagem clara. A vítima foi morta, mas à família e amigos da vítima que fique claro que o acosso permanece.
"Há um certo regresso de algumas práticas de acosso que existiam durante os anos da ETA"

Esse tipo de práticas e de reportório de violência não-física parece estar de regresso pontualmente ao País Basco. Surgem novas pinturas a dizer “Gora ETA”, ou seja, "Força ETA" nas ruas do País Basco. Portanto não há uma agitação muito evidente, não há uma agitação ostensiva como temos nas ruas da Catalunha, mas há, debaixo da superfície, certas tensões que se julgavam desaparecidas, que parecem surgir novamente.

Não sei se só por causa do ímpeto independentista catalão, acho que tem causas próprias no País Basco também. Mas há certas manifestações de ódio, de discurso de ódio, para usar uma expressão comum nos dias que correm. Há um certo discurso de ódio que foi muito característico da ETA que parece estar de regresso num plano extra-institucional.

Ou seja, nós não o vemos nos partidos e nas instituições, mas vemos em algumas organizações sociais mais ou menos orgânicas. Temos de perceber que, no País Basco, a ETA foi derrotada. Do ponto de vista operacional essa derrota enfraqueceu o independentismo basco mais radical, herdeiro da ETA, que não quer dar a imagem de que está a regressar ao passado e portanto tem algum constrangimento na agitação de rua, mas ainda assim nós vemos nas ruas um conjunto de manifestações de ódio étnico, sectário e político, próprios dos tempos da ETA que não desapareceram de todo.
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