A ira de Trump vai dos "bad hombres" no México aos refugiados da Austrália

“Um acordo estúpido” e “o pior acordo de sempre”. Foram as palavras do Presidente norte-americano para designar o acordo entre os Estados Unidos e a Austrália que prevê o acolhimento de milhares de imigrantes vindos dos campos de Nauru e Manus. À discussão acesa entre Donald Trump e Malcolm Turnbull, o primeiro-ministro australiano, no passado domingo, juntou-se mais um tweet incendiário. Entretanto, prossegue a polémica com os vizinhos mexicanos, a quem terá prometido o envio de tropas.

Andreia Martins - RTP /
Carlos Barria - Reuters

O Washington Post diz que esta foi a "pior chamada até agora". À conversa com o primeiro-ministro australiano, Donald Trump classificou o acordo para o acolhimento de refugiados como "o pior de sempre" e acusou a Austrália de tentar exportar "os próximos bombistas de Boston", numa referência ao atentado durante a maratona, em 2013.  

No Twitter, o Presidente norte-americano condenou o acordo de troca de refugiados entre os dois países. Classificou ainda os requerentes de asilo nos campos de Nauru e Manus como "imigrantes ilegais"
 
"Acreditam nisto? A administração Obama aceitou receber milhares de imigrantes ilegais vindos da Austrália. Porquê? Vou analisar este acordo estúpido!", escreveu o líder norte-americano durante a madrugada.  
 

Na conversa entre os dois líderes, Donald Trump terá também aproveitado para relembrar e evidenciar a margem com que venceu as eleições presidenciais no colégio eleitoral, revela o Washington Post.  
 
Na agenda do Presidente norte-americano estava previsto que a chamada durasse uma hora. No entanto, os dois líderes estiveram ao telefone durante apenas 25 minutos, quando o primeiro-ministro australiano tentava virar a conversa para a questão síria.  
 
Antes da erupção da polémica com o tweet de Donald Trump, Turnbull tinha dito apenas que a conversa com o líder norte-americano, no passado domingo, tinha sido "franca e sincera", sem querer avançar com mais detalhes. Acrescentou apenas: "Defendo a Austrália. O meu trabalho é defender os interesses dos australianos". 
Acordo intacto?
Já eram conhecidas as posições polémicas de Donald Trump quanto ao acolhimento de refugiados ou imigrantes vindos de países de religião muçulmana. Na passada sexta-feira, o Presidente norte-americano assinou um decreto que restringe temporariamente a entrada de imigrantes vindos de sete países. Agora, é o acordo com a Austrália - que prevê o acolhimento de refugiados da zona Ásia-Pacífico - a estar em causa.
 
No entanto, a informação atual é que o acordo se mantém intacto. Tanto a Casa Branca, através do porta-voz Sean Spicer, como a embaixada dos Estados Unidos em Camberra, reiteraram que Donald Trump respeitaria o acordo. O próprio primeiro-ministro australiano já veio dizer que acredita que o acordo se mantém.  
 
"O que ele está a dizer é que este seria um acordo que ele não teria feito, mas a questão aqui é: vai honrar o acordo? Ele já garantiu que sim", disse Turnbull.
 
Mesmo que o tweet entretanto lançado por Donald Trump indique o contrário, garante.

"Isso foi o tweet que ele fez. Estou a dizer-vos que foi o que ele nos garantiu. Temos o compromisso do Presidente dos Estados Unidos, confirmado em várias ocasiões pelo governo", acrescentou o primeiro-ministro, em declarações à rádio 2GB de Sydney.  
 
Horas depois, em entrevista à rádio 3AW, de Melbourne, Malcolm Turnbull lembrou o compromisso do governo norte-americano e do próprio Presidente, não descartando no entanto um eventual "plano B".
 
O primeiro-ministro refere que a Austrália "está sempre à procura de outras opções" para reinstalar os refugiados de Nauru e de Manus. No entanto, a possibilidade de darem entrada na Austrália está fora de questão, assegura Turnbull. 
Velhos aliados 
De tantos potenciais conflitos diplomáticos e problemas além-fronteiras, a discussão de Donald Trump com o chefe de Governo australiano era tudo menos esperada. Nas últimas décadas, a relação pacífica e de cooperação entre Estados Unidos e Austrália tem-se consolidado a nível comercial e diplomático.  
 
É preciso recuar aos anos 70 e à presidência de Richard Nixon para encontrar outro diferendo entre os dois países, já que os Estados Unidos não aceitaram de bom grado a retirada das tropas australianas da Guerra do Vietname, ordenada pelo então primeiro-ministro Gough Whitlam.
 
O novo momento de acrimónia entre Washington e Camberra poderá ter repercussões sérias. Os dois países integram o grupo "Five Eyes" ou a Aliança Cinco Olhos, destinada a promover a troca de informações privilegiadas entre Austrália, Canadá, Nova Zelândia, Reino Unido e Estados Unidos.  
 
As constantes ações norte-americanas no Mar do Sul da China podem também ficar comprometidas, visto que a Marinha dos EUA recorre muitas vezes ao território australiano como base de intervenção e vigilância sobre Pequim.
 
Segundo o Washington Post, a leitura oficial que consta da conversa entre os dois líderes é de que "a força duradoura e a proximidade entre os Estados Unidos e a Austrália é fundamental para a paz, estabilidade e prosperidade da região Ásia-Pacífico e de todo o globo".   Em que consiste o acordo?
O documento foi assinado pelo anterior Presidente Barack Obama e estabelece a troca de refugiados entre os dois países. Enquanto os Estados Unidos se comprometem a receber 1250 requerentes de asilo retidos em campos nas ilhas de Manus e Nauru, a Austrália acolhe, em troca, um número equivalente de refugiados vindos de El Salvador, Guatemala e Honduras.  
 
À luz do acordo, os Estados Unidos não são obrigados a receber sempre um determinado número de refugiados vindos destes "campos de retenção". Comprometem-se apenas a permitir que esses refugiados "expressem interesse" em serem recolocados nos Estados Unidos, mediante a possibilidade de serem rejeitados pelo país após um processo "de exame extremo", lê-se no documento.  
 
Segundo a última recolha de dados realizada pelo Governo australiano, encontram-se nas duas ilhas cerca de 1900 pessoas, refugiados e requerentes de asilo. Apenas os refugiados, ou seja, aqueles que consigam fundamentar que foram vítimas ou que receiam perseguição nos seus países, estão aptos a pedir asilo ao Governo norte-americano.
 
Nos últimos meses, os campos australianos de detenção têm sido alvo de duras críticas por parte das Nações Unidas e grupos defensores dos direitos humanos. Relatos frequentes de casos de abusos físicos e sexuais entre os requerentes de asilo, condições de vida precárias, ausência de cuidados médicos e taxas elevadas de auto-mutilação e suicídios colocam as duas ilhas na agenda mediática.  
 
Em dezembro, vários detidos no campo de refugiados de Manus - uma das ilhas de Papua Nova Guiné - responsabilizaram o Governo australiano pela morte de um refugiado sudanês de 27 anos na véspera do dia de Natal.
 
O jornalista iraniano Behrouz Boochani contava à CNN em dezembro que o jovem procurara ajuda médica "todos os dias" e foi sempre assistido com analgésicos.  
 
"Ele estava tão doente, queixou-se de dores no peito e dores de cabeça durante mais de seis meses. Toda a gente do campo de detenção sabia que ele estava doente e assistiu várias vezes a desmaios e colapsos", acrescentou. 
"Hombres" maus 
A juntar-se ao imprevisto desentendimento entre velhos aliados está também a questão mexicana, cada vez mais sensível e complexa. Durante a madrugada de quinta-feira, a agência Associated Press dava conta de um registo da conversa telefónica entre Donald Trump e Enrique Peña Nieto, o Presidente mexicano.
 
Trump terá falado sobre a possibilidade de enviar tropas para o México de forma a ajudar ao controlo dos "bad hombres", ou homens maus: os gangues e cartéis de droga que o Presidente norte-americano prometeu controlar através da construção de um muro na fronteira.  
 
"Tens um bando de hombres maus aí em baixo. Não estás a fazer o suficiente para os controlar. Acho que os vossos militares estão assustados. Os nossos militares não têm medo,  por isso talvez os envie para aí para tratarem disso", terá dito o Presidente norte-americano segundo a Associated Press. A CNN teve também acesso a um registo muito similar desta conversa telefónica.  
 
Na semana passada, Peña Nieto tinha cancelado uma visita a Washington depois de Donald Trump ter dito - via Twitter - que uma visita do Chefe de Estado mexicano não valeria a pena caso o pagamento pela construção do muro na fronteira não estivesse na agenda.  
 
O México continua a recusar pagar o muro que o Presidente dos Estados Unidos pretende edificar na fronteira, de forma a precaver e controlar as entradas de imigrantes ilegais. Em resposta, a nova administração norte-americana chegou a sugerir uma taxa sob todos os produtos importados como forma de pagamento indireto.   
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