A questão palestiniana vista de dentro. Quatro entrevistas com protagonistas dos dois lados do muro

O que propomos aqui são quatro entrevistas feitas ao longo dos últimos dois anos e meio a protagonistas do conflito israelo-palestiniano: dois historiadores israelitas, uma organização de ex-militares do IDF (forças israelitas) e dois irmãos palestinianos de Gaza que se tornaram realizadores de cinema. A sua perspetiva ajuda-nos a perceber o puzzle que é a realidade nos territórios ocupados da Palestina, um statu quo montado pela máquina israelita ao longo de décadas a que muitos chamam de Apartheid.

Numa entrevista em fevereiro deste ano, o historiador israelita Shlomo Sand, autor de várias obras que abordam a ideia da criação de uma terra para judeus e a própria criação do povo judeu, lembrava uma realidade inescapável que podia estar a ser esquecida pelo poder israelita: os palestinianos não vão para lado nehum como os israelitas não vão para lado nenhum, pelo que a convivência entre os dois povos é uma inevitabilidade.

Shlomo Sand dá a entender que esse deveria ser um princípio para o trabalho no futuro da região.

O historiador israelita desmonta ainda a ideia propagandeada pelo mainstream de que a questão da Palestina se resume a uma frase: "Uma terra sem povo para um povo sem terra".

À questão sobre Israel ser um Estado teocrático, que assenta os seus direitos numa missiva divina, um contrato de milénios, Shlomo Sand responde: "Sim e não".
Ilan Pappé, autor de "A Limpeza Étnica da Palestina", que nos concedeu uma entrevista dois meses depois, resumia numa frase aparentemente eivada de banalidade o desejo de todo um povo: os palestinianos devem ter direito a uma vida aborrecida.

Um dos mais proeminentes historiadores israelitas, professor no Reino Unido, na Universidade de Exeter, Ilan Pappé vê a implementação do Estado de Israel na Palestina como uma agressão que leva décadas: uma ocupação paga pelos palestinianos, povo que não teve uma palavra a dizer quando o Ocidente pôs em marcha e alimentou o projecto sionista.

A entrevista aconteceu nos 75 anos da Nakba - nome árabe para catástrofe, a expulsão de 800 mil palestinianos das suas casas e a destruição de aldeias e cidades palestinianas pela mão do recém-formado Estado de Israel. Pappé é visto como um dos novos historiadores israelitas - grupo que tem estudado os acontecimentos de 1948 e a forma como foi criado o Estado de Israel.

Mais de sete décadas depois, numa frase, Ilan Pappé resumia na palestra do dia anterior a realidade dos palestinianos: "Eles só desejam uma vida aborrecida". Os palestinianos querem ter direito a aborrecer-se.


A história da Breaking The Silence é a história de ex-militares israelitas que lutam há duas décadas contra ocupação da Palestina. Podemos perguntar se estamos perante ativismo ou uma tentativa de redenção. A organização BTS oferece aos antigos militares uma plataforma para verterem as experiências que viveram nos territórios da Palestina enquanto membros do IDF, as forças armadas israelitas.

A BTS acaba por ser uma voz singular na denúncia do mecanismo de ocupação israelita, uma voz que aponta o que diz serem as falhas de um sistema de ocupação.

Ori Givati, no inglês quase intraduzível "advocacy director", foi um dos elementos da BTS que trouxe a Lisboa uma exposição ilustrativa do trabalho da Breaking The Silence.

Veterano do IDF, Ori conduziu-nos pela exposição e conversou connosco sobre a missão que liga estes antigos militares: mostrar aos israelitas - e mostrar ao mundo - o que é de facto a realidade do dia-a-dia da ocupação nos territórios palestinianos nos seus detalhes mais sórdidos, uma ocupação que produz ações dirigidas contra palestinianos identificados à partida pelos comandos israelitas como inocentes. Inocentes que servem como medida, não apenas da agressão indiscriminada do IDF, como servem também de aviso às populações palestinianas: ninguém está a salvo.

As operações de mapeamento dos territórios ("mappings" - invasão das casas palestinianas a meio da noite para fazer uma caracterização do local) são um tipo de missão que ilustra o objectivo do exército israelita de remeter os palestinianos à condição degradante de "não conseguirem levantar a cabeça", criando a sensação de uma perseguição sem fim à vista, explica.

Apartheid e limpeza étnica são termos que não ficam fora da conversa. Os métodos israelitas com vista a subjugar todas as vontades são a pedra de toque da BTS. Sem chegar ao ponto de falar da perpetração de crimes pela parte israelita, há na BTS um dedo que aponta o sistema de Apartheid, o modus operandi de um sistema corroído nas suas próprias fundações morais.

O objetivo final da organização, diz Ori Givati, é "mostrar", "servir de espelho", acabar com a indiferença e pôr os israelitas a pensar sobre a folha de serviço dos seus militares nos territórios palestinianos. Obrigar o país a tomar consciência do sistema que se destina a perpetuar uma ocupação injustificada.


Por fim, a entrevista aos irmãos Nasser, os gémeos realizadores de Gaza. Quando Tarzan e Arab Nasser nasceram, há uma década que o território tinha fechado a última sala de cinema. Mas isso não os impediu de perseguirem o sonho do cinema e de se tornarem realizadores. A sua segunda longa-metragem, "Gaza Mon Amour", teve honras de estreia no Festival de Veneza 2020.

Trazido às salas portuguesas, "Gaza Mon Amour" fala da paixão tardia de Issa, um velho pescador que durante a sua conquista encontra uma estátua do deus Apolo perdida no mar, acabando por chamar a atenção do Hamas. Uma sátira de amor e desejo, o filme tem como cenário de fundo o cerco israelita mas está propositadamente desprovido de teor político, centrando-se nos desejos mundanos, como se este fosse um romance que pudesse ser vivido em qualquer lugar.