Aborto. Teimosia de Ruth Ginsburg pode vir a custar caro aos democratas nos EUA

por Graça Andrade Ramos - RTP
A imagem de Ruth Bader Ginsburg, juíza do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, num cartaz em protestos contra a anulação de Roe v. Wade Reuters

O Partido Democrático dos Estados Unidos enfrenta nos próximos meses uma batalha renhida em defesa de uma das suas bandeiras, a do direito constitucional ao aborto firmada na decisão processual Roe v. Wade pelo Supremo Tribunal dos EUA em 1973 e atualmente em risco de ser anulada por uma maioria de juízes conservadores naquele órgão.

E a primeira vítima colateral já tem um nome. Ruth Bader Ginsburg, falecida em 2020 e idolatrada pela esquerda norte-americana durante décadas como a mais proeminente juíza da ala liberal no Supremo.

Se o Supremo Tribunal decidir finalmente por anular Roe v. Wade, será um dos maiores desastres políticos para o Partido Democrático em muitos anos. Haverá recriminações e lamentos ”, afirmou à Newsweek Paul Quirk, cientista político da Universidade da British Columbia no Canadá.

“E a pessoa a culpar, de um ponto de vista liberal e de pró-escolha, não poderia ser mais óbvia. A falecida juíza do Supremo Ruth Bader Ginsburg”, acrescentou. Ginsburg foi escolhida pelo presidente democrata Bill Clinton em 1993 e morreu no cargo durante a Administração do republicano Donald Trump, que se apressou a nomear Amy Coney Barrett, uma versão mais nova da antecessora quanto a determinação mas encostada ao polo político oposto.

Os admiradores da juíza criticam-na agora por não se ter retirado durante as Administrações de Barack Obama, deixando vago o lugar a um substituto com as mesmas convicções. O culto de personalidade desenvolvido em torno da juíza pode contudo ter contribuído para Ginsburg não se afastar.

“Mesmo sendo octogenária e sobrevivente de um cancro durante o segundo mandato do presidente Obama, ela rejeitou sugestões de reforma em 2014 e em 2015 para permitir a Obama nomear o seu sucessor”, lembrou Quirk. O presidente “notoriamente não a pressionou”.

Talvez a própria não se tenha apercebido do perigo. “Que a recusa de reforma de Ginsburg poderia levar à anulação de Roe vs Wade, entre outros desastres do ponto de vista dela, não era inteiramente previsível. Era, contudo, bastante possível”, considerou o analista.
Projeto controverso
Nos últimos anos de Ginsburg no cargo, a votação do Supremo era de 5-4 a favor dos conservadores, com o juiz presidente John Roberts a servir de fiel da balança e a votar algumas vezes ao lado da esquerda.

A morte da juíza e a sua substituição por Barrett fizeram pender decisivamente os votos para a direita por 6-3, quando a contestação ao aborto se fortalecia à boleia de escândalos como o tráfico de órgãos por parte da organização Planned Parenthood e depois de Trump já ter nomeado dois outros juízes conservadores, Kavanaugh e Gorsuch.

Na segunda-feira dia 2 de maio, o jornal Politico revelou um rascunho de um projeto de decisão do juiz conservador do Supremo, Samuel Alito, com data de 10 de fevereiro, em defesa da anulação de Roe v. Wade. Ainda em negociação e com prazo de decisão até 30 de junho, o documento tinha já o apoio declarado do próprio Samuel Alito, e ainda dos juízes Clarence Thomas, Neil Gorsusuch, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett. A oposição era assumida por Stephen Breyer, Sonia Sotomaior e Elena Kagan, com o voto do juiz presidente John Roberts a não ser revelado.

A autenticidade do documento foi confirmada e Roberts anunciou que a fuga de informação iria ser investigada, mas a fuga relançou o debate em torno do direito ao aborto, sobretudo após a tendência do Supremo revelada nos últimos meses em decidir a favor dos opositores.

Samuel Alito alegou que “Roe v. Wade deve ser derrubado” por ser “totalmente sem mérito desde o início”, tendo sustentado que o direito ao aborto “não está protegido por qualquer disposição da Constituição norte-americana”.
Fracasso de Ginsburg
A ser aprovada esta conclusão pelo Supremo Tribunal, a legislação dos Estados Unidos irá reverter para a situação anterior a 1973, em que cada estado era livre de proibir ou de autorizar uma mulher a realizar um aborto e em que termos.

“A anulação de Roe e de outra legislação futura do atual Supremo Tribunal poderá levar os liberais a repensar a adulação derramada sobre Ginsburg quando ela morreu”, admitiu Quirk.

David A.Bateman, professor associado de gestão pública na Universidade Cornell, sublinhou que Roe v. Wade ainda não foi anulado. Se o for, irá representar em parte “o fracasso de Ruth Bader Ginsburg em preparar as consequências da sua mortalidade”.

Irá ainda ser consequência direta do fracasso dos democratas na eleição presidencial de 2016. Duas falhas normais, sublinhou Bateman, já que nem os democratas podem esperar vencer todas as eleições nem “as pessoas gostam de ser lembradas da sua morte”. “Certamente o culto de personalidade que os progressistas desenvolveram em torno de Ginsburg – como se a excelência individual, a experiência e conquistas fossem substitutos para o poder democrático – não ajudou”, referiu ainda.

Os democratas contestam agora a composição do Supremo Tribunal e advogam o seu alargamento para impedir desequilíbrios como o atualmente verificado.

Paul Quirk reconheceu que alguns poderão acusar o presidente democrata Joe Biden de não o fazer, mas sublinhou as dificuldades de nomear mais juízes para o Supremo dada a oposição do Senado, dividido quase a meio.
Americanos indiferentes
A esperança democrata reside agora em novembro, nas eleições intercalares que irão eleger os representantes e senadores, se a anulação de Roe v. Wade se refletir negativamente no campo republicano.

Sondagens instituto Gallup de há um ano indicam contudo que 49 por cento dos americanos são “a favor do direito de escolha” e 47 por cento se identificam como “pró-vida” e antiaborto. A questão está ainda longe de ser considerada decisiva, revela a Gallup, uma vez que outros problemas mais prementes se apresentam ao eleitorado.

Em março de 2022, a Gallup concluiu em sondagem que apenas um por cento dos inquiridos consideravam a questão do direito ao aborto “o problema mais importante que o país enfrenta atualmente” com o número a não ultrapassar os 0.5 por cento num questionário no mês anterior.

As três questões mais importantes eram a fraca liderança governamental, que preocupava 22 por cento, o custo de vida e a inflação, mencionada por 17 por cento e a economia em geral escolhida por 11 por cento.

Os americanos poderão ainda ter menos preocupação com a anulação do direito constitucional ao aborto dada a possibilidade, admitida esta terça-feira por uma responsável política canadiana, de irem abortar ao país vizinho.

Karina Gould, ministra do Canadá para as famílias, crianças e desenvolvimento social afirmou à TV estatal canadiana que o país está pronto a acolher as americanas neste caso. “Não sei porque não o faríamos”, afirmou à CBC. “Se elas, as pessoas, vierem cá e precisarem de acesso, certamente, esse é um serviço que poderia ser providenciado”.
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