Ainda há "trabalho escravo" nas grandes fazendas brasileiras, segundo relatório

por Inês Moreira Santos - RTP
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O impacto da indústria pecuária no meio ambiente não é um tema recente, uma vez que se trata de uma das mais poluentes e insustentáveis produções do planeta. Mas agora um relatório revela que a produção de gado esconde um problema maior: muitas fazendas brasileiras, algumas que produzem gado para as maiores empresas na "indústria da carne", têm trabalhadores em condições semelhantes à de escravos.

Grandes empresas brasileiras da industria pecuária, incluindo o maior produtor de carne do mundo, a JBS, ou a Minerva, compram gado a fazendas fornecedoras que recorriam a trabalhadores mantidos em condições análogas à escravatura.

A revelação é de um relatório realizado pelo grupo de investigação Repórter Brasil, que identificou mais de uma dúzia de casos ligados às gigantes da carne no Brasil nos quais os trabalhadores foram encontrados a viver em barracas insalubres, construídas com galhos de árvores, em alguns casos sem acesso a sanitários, cozinhas e água potável.

"A criação de bovinos ocupa um papel de destaque no panorama geral do trabalho escravo, respondendo por uma parcela significativa dos casos verificados em território nacional", começa por identificar o relatório.

Intitulado como "Trabalho escravo na indústria da carne", esta investigação recorda que, em 1995, o Governo federal brasileiro reconheceu oficialmente a existência de formas contemporâneas de escravatura no país. Mas que, "desde então, uma série de ações governamentais e da sociedade civil foram desenvolvidas para enfrentar o problema".

Contudo, "após mais de dez anos de políticas corporativas a serem anunciadas para enfrentar o problema, ainda é possível encontrar diversos elos que ligam grandes empresas do setor a fazendeiros que utilizam mão de obra escrava".

No caso da JBS, algumas das compras foram realizadas antes de as fazendas em questão serem incluídas numa "lista negra" - banco de dados do Governo brasileiro que verifica diariamente os compromissos laborais das empresas.

Em comunicado, a JBS afirmou, entretanto, que cumpre todos os compromissos de combate ao trabalho escravo e contra o desmatamento irregular, e que excluiu fazendas que pertençam à "lista negra". Os três maiores produtores de carne do Brasil – JBS, Marfrig Global e Minerva – afirmaram que monitorizam os fornecedores de gado para abate, mas admitem que não têm como saber previamente como criam o gado.

Segundo Marcel Gomes, secretário-executivo da Repórter Brasil, as empresas não possuem mecanismos de rastreamento dos fornecedores, e grande parte das violações e dos casos descobertos acontece em animais que são transferidos de uma propriedade para outra – como forma de fugir de fiscalizações. Trata-se de um quadro preocupante, visto que cada vez mais investidores e consumidores exigem produtos mais sustentáveis e conscientes, livres de qualquer resquício de trabalho escravo.
Trabalho escravo no Brasil

Desde que, em 1995, o Governo federal brasileiro admitiu a existência de trabalho escravo, mais de 55 mil trabalhadores foram libertados "de sitauções análogas" à de escravatura. Embora o número de investigações tenha diminuído nos últimos anos - 118 trabalhadores foram libertados em 2018, em comparação com os 1.045 na década anterior - isso não significa que a situação tenha melhorado, mas apenas que as inspeções foram reduzidas, alerta o estudo.

"Vemos isto como um problema urgente que as grandes empresas precisam de resolver", afirmou Marcel Gomes.

Os investigadores do Repórter Brasil lamentam que, embora muitas situações de escravatura contemporânea nunca cheguem a ser denunciadas, e outras tantas apresentadas às autoridades não sejam fiscalizadas, o problema está espalhado por todo
o território nacional "e há registos de trabalho escravo em todos os estados brasileiros".

A mão de obra submetida a condições semelhantes à escravatura contemporânea é detetada em "atividades económicas desenvolvidas na zona rural, como a pecuária, a produção de carvão e os cultivos agrícolas". No entanto, esta é uma situação que começa a verificar-se, cada vez mais, nos centros urbanos, especialmente na indústria têxtil e na construção civil.

Mas os casos registados na "zona rural ainda constituem a maioria", aponta o relatório.

A maioria dos trabalhadores rurais já libertados depois das fiscalizações são migrantes que deixaram as suas vidas para se mudarem para as regiões de produção agrícola.

"Saem das suas cidades atraídos por falsas promessas de aliciadores, ou migram forçadamente pela vulnerabilidade económica em que vivem", esclarece o documento.

Normalmente, após haver uma denúncia, os auditores fiscais do Ministério do Trabalho vão investigar e, em caso de se confirmarem as condições precárias dos trabalhadores, estes são "resgatados".

Mas, a impunidade é ainda, segundo relata a investigação, "um dos principais gargalos" do combate do trabalho escravo no Brasil. Embora sejam cobradas multas e indemnizações aos empregadores, as penas de ordem criminal são ainda raras.
Trabalho escravo na pecuária

Não é de agora que a maior parte dos casos de trabalho escravo é identificada nas regiões rurais. Como refere o relatório, "a pecuária é o setor onde o problema está mais concentrado".

De acordo com dados do Governo Federal, mais de metade dos casos de trabalho escravo descobertos no Brasil, entre 1995 e 2020, foi no setor da pecuária.

A verdade é que os dados indicam que houve uma queda no número de trabalhadores em condições de escravatura que foram resgatados, mas os investigadores asseguram que não é por terem diminuido os casos de trabalho escravo. Apenas diminuiram as fiscalizações.

O Brasil é, atualmente, o maior exportador de carne bovina do mundo e as situações precárias vividas nas regiões rurais "convivem, ao mesmo tempo, com uma indústria de carne cada vez mais integrada nos mercados globais" - o que torna o problema da escratura contemporânea um problema global e não apenas do Brasil.

Um dos exemplos, retratados no relatório, aconteceu em agosto de 2019, quando inspetores do governo encontraram nove trabalhadores não registados a limpar as pastagens na fazenda Copacabana, no Estado do Mato Grosso do Sul. Estes trabalhadores recebiam oito reais por dia, indica o relatório.

Além disso, moravam em barracas improvisadas ​​feitas de troncos de árvores, plástico, folhas de palmeira e chapas de ferro enferujado, sem casas de banho, cozinhas ou água potável.

A fazenda e a gestora, Fernanda Thomazelli, foram incluídas na "lista negra" de 2020. Contudo, esta fazenda tinha vendido gado diretamente para dois frigoríficos da JBS em 2019 e em 2020.

Em 2007, foi lançado no Brasil o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo - um acordo multissetorial que reúne empresas brasileiras e multinacionais formalmente comprometidas em eliminar o uso de mão de obra escrava das suas cadeias produtivas.

Este pacto conta com mais de 400 signatários, entre os quais muitas das maiores empresas atuantes no país, como a JBS.

O relatório desafia, assim, empresas de carnes como a JBS, que têm enfrentado críticas pela sua incapacidade de controlar as cadeias produtivas de fazendas de gado na Amazónia.

Uma série de investigações do Guardian, do Repórter Brasil, e outros, descobriram que a empresa comprava gado de fazendas ditas "fornecedoras diretas" que se abasteciam de "fornecedores indiretos" - fazendas que fornecem gado para engorda e abate - que estiveram envolvidos em desmatamento ilegal.

Em setembro de 2020, a JBS prometeu controlar toda a sua cadeia até 2025 - 14 anos depois de esta e outras empresas brasileiras, Minerva e Marfrig, terem prometido que o fariam.

As três empresas assinaram um outro acordo, em 2009, com a Greenpeace, no qual concordaram que não comprariam gado de fazendas "escravizadas". Acordos semelhantes firmados com promotores federais impediram-nas ainda de comprar a fazendas incluídas na "lista negra" do governo.

No entanto, ausência de mecanismos de rastreamento para identificar os "fornecedores de fornecedores" reduz significativamente a efetividade destas medidas de controlo.

De facto, a maioria dos casos de escravatura na pecuária não ocorre em fazendas que fornecem animais diretamente ao abate, mas sim em propriedades de criação que transferem o gado para a engorda noutros estabelecimentos.

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