AIS. Um em cada três países regista violações graves à liberdade religiosa

por Graça Andrade Ramos - RTP
Celebrações da Sexta-feira Santa em Soweto, África do Sul, em 2 de abril de 2021 Reuters

A radicalização no continente africano e o alargamento das redes islamitas transnacionais ressaltam dos números recolhidos entre 2018 e 2020 pela Fundação Pontifícia Ajuda à Igreja que Sofre, AIS, no relatório sobre a liberdade religiosa no mundo, publicado esta terça-feira.

A análise, com apresentação interativa detalhada, conclui que o desrespeito por este direito fundamental se tem vindo a agravar, perante a ineficácia ou reação tardia das autoridades mundiais, como as Nações Unidas.

Casos de perseguição e de desrespeito registaram-se em 62 dos 196 países do mundo (31,6 por cento) onde habitam dois terços da população mundial e, em 21 deles. é mesmo perigoso renunciar ou mudar de religião, atos de acarretam “graves consequências legais e ou sociais”, do ostracismo à pena de morte, refere o comunicado de imprensa de apresentação do relatório.

Regista-se igualmente uma “nova tendência, o abuso da tecnologia digital, redes cibernéticas, e vigilância em massa com base na inteligência artificial (IA) e tecnologia de reconhecimento facial para aumentar o controlo e a discriminação em algumas das nações com o pior historial de liberdade religiosa”.

Neste campo o destaque vai para a China, “onde o Partido Comunista Chinês tem vindo a oprimir grupos religiosos com a ajuda de 626 milhões de câmaras de vigilância e scanners para smartphones otimizados com IA”.“Os grupos jihadistas estão também a utilizar tecnologia digital para a radicalização e o recrutamento de seguidores”, referem os investigadores.

O jihadismo tem igualmente aumentado de influência. “Do Mali a Moçambique na África subsariana, às Comores no Oceano Índico, e às Filipinas no Mar do Sul da China”, o islamismo procura “criar um califado transcontinental,” refere o mesmo documento.

O relatório também “destaca e denuncia o aumento da violência sexual utilizada como arma contra as minorias religiosas, crimes contra mulheres e raparigas que são raptadas, violadas e forçadas a converter-se”.
Moçambique. Um caso de estudo
Neste capítulo, a radicalização em África agravou-se dramaticamente. A presença e influência crescente de grupos jihadistas, sobretudo na África subsaariana e oriental, levam a que “as violações à liberdade religiosa, incluindo tais como assassínios em massa, ocorrem atualmente em 42 por cento de todos os países africanos: Burquina Faso e Moçambique são apenas dois exemplos notáveis“, indica o comunicado.

Moçambique foi mesmo um caso de estudo, uma vez que o país vive um "ciclo de violência descontrolada" provocada pelo grupo fundamentalista Ahlu Sunnah Wa-Jama (localmente conhecido como Al-Shabaab), filiado no Daesh, que se estima, terá matado nos últimos três anos mais de 2.500 civis e deslocado mais de 700 mil pessoas.

"A partir de Moçambique, os jihadistas proclamam ter estabelecido "províncias do Califado" nas Comores, no norte de Madagáscar e, através do Oceano Índico, até à Indonésia, Malásia e Filipinas, aponta o relatório, sublinhando que "a ascensão do extremismo islamita no norte de Moçambique é um fenómeno complexo e de múltiplas causas".

Entre os fatores que permitem a "rápida disseminação e capacidade de recrutamento" das redes jihadistas, o estudo aponta a pobreza e corrupção, as fracas estruturas estatais na região, a falta de educação e oportunidades de emprego, as redes criminosas transnacionais que beneficiam do comércio ilícito de recursos naturais ou do narcotráfico, a frustração da população local perante a sua exclusão dos lucros dos minerais, as ações repressivas cometidas pelas forças de segurança e "influências fundamentalistas" de países como a Arábia Saudita e a Somália.

"Estas raízes, estimulando a ascensão de grupos como o Al-Shabaab, refletem um padrão e uma dinâmica semelhantes de radicalização islamita e de violência extrema observada em regiões como a Bacia do Lago Chade, o Sahel e a Somália", assinala o estudo.

O relatório destaca que a reação às raízes socioeconómicas do conflito, "até agora tem sido profundamente militarizada, contribuindo para uma nova espiral de violência".



Respostas quase nulas ou tardias
Em 26 dos 62 países referidos, as pessoas sofrem perseguição religiosa e, em 95 por cento deles, a situação agravou-se no período referido, com nove países a aparecerem pela primeira vez nesta categoria.

Sete em África (Burquina Faso, Camarões, Chade, Comores, República Democrática do Congo, Mali e Moçambique) e dois na Ásia (Malásia e Sri Lanka).

O presidente executivo da AIS/ACN International, Dr. Thomas Heine-Geldern, afirmou, em reação às conclusões do relatório, que “lamentavelmente, apesar das iniciativas, embora importantes, da ONU e dos colaboradores das embaixadas da liberdade religiosa, até à presente data a resposta da comunidade internacional à violência com base na religião, e à perseguição religiosa em geral, pode ser classificada como muito pouca e muito tardia”.De acordo com as conclusões do documento, “atualmente cerca de 67 por cento da população mundial, ou cerca de 5,2 mil milhões de pessoas, vivem em países onde existem graves violações à liberdade religiosa, incluindo as nações mais povoadas, China, Índia e Paquistão. Em muitas delas, as minorias religiosas são as mais visadas”.


A perseguição religiosa por parte de governos autoritários também se intensificou. A promoção da supremacia étnica e religiosa em alguns países de maioria hindu e budista na Ásia levou a uma maior opressão das minorias, reduzindo frequentemente os seus membros a cidadãos de segunda classe de facto”, conclui a pesquisa.

“A Índia é o exemplo mais extremo, mas políticas semelhantes são aplicadas no Paquistão, Nepal, Sri Lanka e Mianmar, entre outros”, sublinham as conclusões.

Também no Ocidente se verifica um aumento da “perseguição educada”, refere o relatório, tomando emprestado um termo cunhado pelo Papa Francisco para descrever como novas normas e valores culturais entram em profundo conflito com os direitos individuais à liberdade de consciência, e relegam a religião “aos recintos fechados das igrejas, sinagogas ou mesquitas”.

O impacto da pandemia de Covid-19 na liberdade religiosa e de culto foi igualmente analisado, com os relatores a denunciarem o abuso das medidas extraordinárias, “em alguns casos aplicando limitações desproporcionadas ao culto religioso, em comparação com outras atividades laicas”.

“Em alguns países, tais como o Paquistão ou a Índia, a ajuda humanitária tem sido retida às minorias religiosas”. A pandemia tem sido também utilizada como pretexto para estigmatizar certos grupos religiosos por alegadamente a propagarem ou serem mesmo os seus causadores.

O relatório bienal da AIS foi publicado pela primeira vez em 1999 e analisa até que ponto o direito humano fundamental à liberdade religiosa, protegido pelo Artigo 18º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, é respeitado para todas as religiões nos 196 países do mundo.

c/ Lusa
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