Relatório encontra "provas claras e convincentes" de genocídio contra uigures por parte da China

por Mariana Ribeiro Soares - RTP
O relatório acusa a China de procurar "destruir os uigures como um grupo, como um todo ou em parte" Murad Sezer - Reuters

O primeiro relatório independente sobre o tratamento da comunidade uigur pela China acusa Pequim de estar a cometer genocídio contra esta minoria étnica. O relatório, divulgado na terça-feira, diz ter encontrado “provas claras e convincentes” de que a China violou “todo e qualquer ato” proibido pela convenção das Nações Unidas contra o genocídio. Pequim " tem responsabilidade estatal por um contínuo genocídio contra os uigures", aponta o relatório.

A China tem sido acusada de cometer genocídio contra os muçulmanos da minoria étnica uigur, em campos de concentração na região chinesa de Xinjiang. Estima-se que nos últimos anos, um a dois milhões de uigures e membros de outras minorias muçulmanas tenham sido levados para campos de detenção na região de Xinjiang, no extremo noroeste da China, onde permanecem detidos e são alvo de tortura, violação e abuso sexual.

Tendo em conta estas acusações, mais de 30 especialistas em direito internacional, genocídio, políticas étnicas e na região chinesa examinaram todas as provas existentes para verificar se a República Popular da China está a violar a Convenção de 1948 para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio da Organização das Nações Unidas (ONU).

Após esta investigação, os especialistas asseguram ter encontrado “provas claras e convincentes de que a China é responsável por violar cada uma das cláusulas do Artigo II da Convenção”.

Segundo o artigo II da Convenção da ONU, são cinco os atos que constituem genocídio: matar membros do grupo; causar sérios danos físicos ou mentais aos membros do grupo; infligir deliberadamente condições de vida determinadas a provocar a destruição física do grupo como um todo ou em parte; impor medidas destinadas a prevenir nascimentos; e transferir forçosamente os filhos do grupo para outro grupo.

“As políticas e práticas direcionadas aos uigures na região devem ser vistas na sua totalidade, o que equivale a uma intenção de destruir os uigures como um grupo, como um todo ou em parte”, sublinha o relatório, divulgado na terça-feira pelo Newlines Institute for Strategy and Policy.
Mortes em massa, tortura e controlo da natalidade
O relatório de 55 páginas detalha alegações de agressões sexuais, tortura psicológica, tentativa de lavagem cerebral cultural e um número desconhecido de mortes em massa dentro dos campos de concentração.

Os uigures estão a sofrer de tortura sistemática e tratamento cruel, desumano e degradante, incluindo violações, abuso sexual e humilhação pública, tanto dentro quanto fora dos campos”, lê-se ainda no documento.

"Os presos uigures nos campos de detenção são privados das suas necessidades humanas básicas, severamente humilhados e submetidos a um tratamento ou punição desumana, incluindo confinamento solitário sem comida por longos períodos", acrescenta.

Segundo o relatório, os homens em idade fértil desta minoria étnica muçulmana são enviados para estes campos, enquanto as mulheres são obrigadas a abortar ou forçosamente submetidas a métodos contracetivos. “A China está a levar a cabo uma estratégia de controlo de natalidade bem documentada e financiada pelo Estado, destinada a todas as mulheres em idade fértil em comunidades uigures, através da esterilização em massa e abortos”, acusa o relatório. De acordo com documentos oficiais, em 2019, o Governo chinês “planeou submeter 80 por cento das mulheres em idade fértil [de Xianjiang] a medidas de controlo da natalidade com eficácia a longo prazo”, o que incluía esterilização.

“Como resultado destas medidas, as taxas de crescimento nas áreas concentradas de uigures aproximam-se cada vez mais do zero”, explica o relatório. Entre 2015 e 2018, o crescimento populacional nas duas maiores comunidades uigures diminuiu 84 por cento.

Por sua vez, as crianças uigures dos casais que são enviados para estes campos de detenção em Xinjiang, onde são colocadas em orfanatos estatais e criadas em ambientes de língua chinesa. Segundo o relatório, “um documento do Ministério da Educação revela que, entre 2017 e 2019, o número de crianças separadas das suas famílias e colocadas em orfanatos estatais aumentou 76,9 por cento”. Estes orfanatos “são caracterizados pela sua sobrelotação e condições desumanas e estão localizados a centenas de quilómetros das casas das crianças”, acrescenta o documento.
“Eliminá-los completamente”
O relatório considera que o presidente chinês Xi Jinping colocou em prática a missão de “destruir os uigures como um grupo” quando lançou, em 2014, a “Guerra ao Terror” em Xinjiang.

Segundo o documento, esta política de genocídio contra os uigures foi orquestrada pelos mais altos escalões do Estado, incluindo Xi Jinping e os altos funcionários do Partido Comunista Chinês em Xinjiang. Os guardas dos campos de detenção foram instruídos para manter o sistema em vigor até “cazaques, uigures e outras nacionalidades muçulmanas desaparecerem, até que todas as nacionalidades muçulmanas sejam extintas”. Segundo o documento, as ordens consistiam em “prender todos”, “eliminá-los completamente, destruí-los” e “romper com a sua linhagem, as suas raízes e as suas origens”.

“Simplificando, a política e prática estabelecida há muito tempo, publicamente e repetidamente declarada, especificamente direcionada, sistematicamente implementada e com todos os recursos em relação ao grupo uigur é inseparável da "intenção de destruir, total ou parcialmente" o grupo uigur como tal”, clarifica o relatório.

“Desta forma, a China tem responsabilidade estatal por um contínuo genocídio contra os uigures, num incumprimento da Convenção do Genocídio”, concluiu.
China recusa acusações
Os Estados Unidos, o Canadá e os Países Baixos já acusaram formalmente o Governo chinês por estes crimes contra os Direitos Humanos, apelidando estas práticas de genocídio.

A China, por sua vez, tem vindo sempre a recusar estas acusações, defendendo que os campos para onde são enviados os membros desta minoria étnica não são de detenção, mas sim de “reeducação”, escolas “voluntárias” no combate ao extremismo islâmico.

O ministro chinês dos Negócios Estrangeiros, Wang Yi, disse ao Conselho de Direitos Humanos da ONU em fevereiro que “nunca houve o chamado genocídio, trabalho forçado ou opressão religiosa em Xinjiang”.

À margem da reunião anual da Assembleia Nacional do Povo, no passado domingo, Wang Yi voltou a recusar falar em genocídio, considerando que as acusações são "ridiculamente absurdas" e "uma mentira completa".

Wang Yi afirmou que as acusações de genocídio contra uigures “não têm sentido e são baseadas em rumores espalhados maliciosamente".

A Convenção de 1948 contra o genocídio não estipula nenhuma penalização específica contra Estados ou Governos que tenham cometido genocídio. No entanto, o relatório do Newlines Institute for Strategy and Policy defende que, de acordo com a Convenção, os restantes 151 signatários têm a responsabilidade de agir.
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