Na ressaca das eleições presidenciais nos Estados Unidos, um dos maiores países da União Europeia mergulhava numa crise política que iria desembocar no colapso do Governo federal e na convocação de eleições antecipadas. A 6 de novembro, o chanceler alemão Olaf Scholz colocou um ponto final à aliança que liderava há três anos, ao demitir o ministro das Finanças, líder de um dos parceiros partidários da chamada “coligação semáforo”.
A esta decisão seguiu-se a moção de censura, aprovada no Bundestag em dezembro, que precipitou o voto de 23 de fevereiro.
O escrutínio estava já previsto para este ano de 2025, mas deveria realizar-se apenas a 28 de setembro, no final da legislatura. Com o romper da coligação tripartida que sustentava o executivo, a votação foi antecipada por alguns meses. Mas o que esteve na origem desta crise política?
O “travão” da dívida
Na discussão do Orçamento para 2025, uma questão central motivou a discórdia entre o chanceler alemão, Olaf Scholz, líder do Partido Social-Democrata (SPD) e o seu ministro das Finanças, Chrstian Lindner, do Partido Liberal Democrático (FDP). Trata-se da Schuldenbremse, ou o designado “travão da dívida”.
Este mecanismo ficou consagrado na Constituição alemã na sequência da crise do euro, em 2009. Com medidas de austeridade a serem implementadas em vários países europeus no contexto da crise financeira e económica mundial, a Alemanha de Angela Merkel (CDU) assumia um papel de liderança e avançou com a medida que, na prática, impôs aos orçamentos federais alemães um limite de défice público a 0,35% do PIB.
A demissão do ministro das Finanças precipitou a saída do FDP da coligação tripartida na Alemanha. Três partidos faziam parte da solução governativa desde 2021: o Partido Social-Democrata (SPD), o Partido Liberal Democrático (FDP) e os Verdes. Desde esta crise até às eleições, Olaf Scholz liderou um governo minoritário do SPD com os Verdes.
Na sociedade alemã, discute-se a reforma desta regra autoimposta e até a própria antiga chanceler Merkel pede que a medida seja riscada.
“Desde a invasão da Ucrânia pela Rússia, temos estado numa situação totalmente nova” afirmou Merkel em novembro. "Nesta situação, digo que não seremos capazes de lidar com a escala de investimento possível dentro dos limites do travão da dívida”, acrescentou.
Chrstian Lindner, líder do Partido Liberal Democrático (FDP), ministro das Finanças demitido, acusou o chanceler de o forçar a suspender novamente o travão da dívida, ao considerar que o país ainda se encontra perante uma circunstância excecional na sequência da guerra na Ucrânia.
Por sua vez, Scholz afirmou que o ministro demitido se preocupou apenas em servir o próprio partido em detrimento do interesse nacional, ao recusar-se a aumentar impostos e recolocar o travão da dívida perante as dificuldades económicas de um país outrora baluarte do crescimento na Europa.
Energia russa e a guerra na Ucrânia
Para além do travão da dívida, há outras vertentes em que o legado da antiga chanceler alemã, Angela Merkel, tem sido reavaliado num prisma mais negativo, desde logo com o declínio da economia nos últimos anos.
Em 2005, a poucos dias da chanceler assumir funções, a Gazprom, empresa energética da Rússia, assinou um acordo com várias empresas alemãs para a construção do Nord Stream 1, um gasoduto que abasteceria a Alemanha com gás russo através do Mar Báltico.
Este entendimento foi negociado ainda durante o mandato de Gerhard Schroeder, próximo de Vladimir Putin, mas Merkel prosseguiu com a trajetória. Em 2015, um ano após a anexação da Crimeia pela Rússia, são assinados os primeiros contratos para a construção do Nord Stream 2. O projeto fica finalmente concluído em setembro de 2021, apesar das críticas dos Estados Unidos e parceiros europeus perante a dependência excessiva da Alemanha.
Em fevereiro de 2022, o gás russo representava cerca de 50 por cento do consumo total na Alemanha. Dias antes da invasão russa da Ucrânia, o chanceler Olaf Scholz anunciou a suspensão da certificação do Nord Stream 2 na sequência do anúncio, por parte do presidente russo, do reconhecimento de duas regiões separatistas ucranianas, Donetsk e Lugansk.
A 24 de fevereiro, começava a invasão de larga escala ao território ucraniano. Nos meses seguintes, os preços de energia escalaram vertiginosamente na Alemanha e no resto da Europa, o que levou ao corte de empregos e dificuldades económicas para o tecido empresarial alemão.
Para dificultar ainda mais a situação de dependência energética, de recordar também a decisão de abandonar a energia nuclear em 2011, na sequência do desastre de Fukushima, no Japão. Uma decisão der Merkel que foi criticada ao longo dos últimos anos também do ponto de vista ambiental.
Foi neste contexto que a economia alemã registou em 2024 o segundo ano seguido de recessão: recuou 0,2 por cento no ano passado e 0,3 por cento no ano anterior.
“Os encargos conjunturais e estruturais impediram um melhor desenvolvimento económico em 2024”, indicou a presidente da Destatis, a agência federal de estatística da Alemanha, Ruth Brand.
Alguns dos fatores enumerados incluem o aumento da concorrência para a indústria de exportação alemã em importantes mercados de vendas, os elevados custos de energia, taxas de juros altas e uma perspetiva económica incerta.
O grande salto da China como concorrente das principais construtoras automóveis alemãs, quando era antes um dos principais países a importar carros e componentes, não ajudou aos desafios que já assolavam a economia do país.
No ano passado, a gigante Volkswagen reconheceu a possibilidade de encerrar fábricas no país pela primeira vez em quase 90 anos de história, a par de cortes salariais e despedimentos.
A política económica dos Estados Unidos do presidente Donald Trump em relação à Europa promete dificultar ainda mais a situação da Alemanha, ainda que o chanceler alemão assegure que está pronto para responder às tarifas norte-americanas com celeridade.
Da “cultura de acolhimento” à quebra de um tabu
Para lá da economia e do controlo orçamental, o legado de Angela Merkel ficou impreterivelmente marcado pela forma como respondeu à crise de refugiados na Europa. Quando grande parte dos países fechava portas e erguia muros, a chanceler deu lugar à chamada Willkommenskultur, ou a “cultura do acolhimento”, e abriu as portas da Alemanha a mais de um milhão de pessoas que fugia de conflitos no Médio Oriente.
Na altura, várias cidades alemãs receberam de braços abertos os migrantes vindos da Hungria de comboio, com a população a acorrer às estações ferroviárias num sinal de acolhimento.
No final de janeiro, pela primeira vez desde o fim da Segunda Guerra Mundial, houve uma cooperação legislativa deliberada entre um partido moderado tradicional e a extrema-direita no Parlamento federal para fazer aprovar uma nova lei anti-imigração que previa, entre outras medidas de revisão drástica das regras de imigração, a rejeição de todos os estrangeiros junto à fronteira caso não possuíssem um documento de entrada válido, incluindo requerentes de asilo.
O projeto de lei acabaria por chumbar dias depois com 350 votos contra, incluindo de doze deputados conservadores da CDU que se sublevaram contra a decisão de Merz. A líder do partido de extrema-direita, Alice Weidel, deixou então críticas ao líder dos conservadores, acusando-o de não saber convencer os próprios membros do partido, algo que demonstra a sua incapacidade para ser o novo chanceler.
Foi a quebra de um tabu com 80 anos que pôs fim ao “cordão sanitário”, com deputados da CDU e CSU a votarem ao lado da AfD, o partido Alternative für Deutschland (AfD, Alternativa para a Alemanha). Esta votação é apontada como um indício de potenciais futuras colaborações entre os dois partidos, ainda que Merz continue a rejeitar qualquer entendimento para a formação de um Governo com o apoio da extrema-direita.