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Guerra na Ucrânia
Analistas questionam onde anda a força aérea russa na ofensiva ucraniana
Os caças russos têm primado pela ausência nos céus ucranianos em apoio ao avanço das tropas no terreno, contrariando todas as expectativas e surpreendendo analistas e estrategas em geral. Encontraram-se pelo menos três explicações mas são meras hipóteses.
James Bronk, afeto ao Instituto Real de Serviços Unidos especializado em estudos de Defesa e Segurança, RUSI, chamou mesmo a esta tática O Misterioro Caso do Desaparecimento da Força Aérea Russa, num artigo em que questionou as razões do comando russo para não acionar uma das mais eficazes armas do seu vasto arsenal.
Depois do início típico da ofensiva na semana passada, incluindo bombardeamentos a neutralizar pistas de aviação e radares, prendendo ao solo a força aérea ucraniana, “o passo lógico seguinte, geralmente antecipado, visto em quase todos os conflitos militares desde 1938, teria sido as Forças Aeroespaciais Russas, as VKS, lançarem um ataque em larga escala para destruir a UkrAF”, escreveu Bronk.
“Com a sua cadeia de alerta incapacitada e algumas pistas inutilizáveis, a UkrAF estava vulnerável a bombardeamentos por caças como o Su-34 com munições teleguiadas, [PMG] ou até mesmo caças Su-30 com, sobretudo, munições convencionais. Se estivessem presentes em grande número, caças de escolta Su-35 e Su-30 teriam aniquilado os caças ucranianos”, notou.
Nada disso sucedeu. “Os cerca de 300 aviões de combate modernos estacionados pelas VKS a curta distância das principais zonas de contacto a norte, leste e sul da Ucrânia ficaram aparentemente no solo durante os primeiros dias de combates”.
Nos últimos dias uma imensa coluna de blindados e veículos militares russos a caminho de Kiev manteve-se quase imóvel com os observadores a questionarem as múltiplas dificuldades sentidas pelos russos, desde a falta de abastecimentos à baixa moral, em menos de uma semana de ofensiva.
O fantasma ucraniano
A ausência de caças russos, afirmou Bronk, "facilitou as operações da defesa aérea ucraniana", cujos contra-ataques de baixa altitude e bombardeamentos obtiveram sucesso na interceção de helicópteros de ataque russos e ajudaram a aumentar o moral de uma população já anteriormente motivada para resistir em defesa do seu território.
A mitificação das proezas dos seus pilotos levou mesmo os ucranianos a usarem vídeos do jogo Digital Combat Simulator para terem imagens de um piloto alegadamente fantástico em ação, intitulado o Fantasma de Kiev, que teria sozinho abatido seis a 10 caças russos e cujas façanhas têm sido amplamente divulgadas na rede Twitter.
We pray for your success Ghost Of Kyiv!#ghostofkyiv pic.twitter.com/uplKC8Poxl
— ❄️Psyco (@coolpsyco106) February 25, 2022
O Fantasma pode não passar do primeiro mito urbano desta guerra mas, sem aviões inimigos nos céus, as tropas ucranianas têm sido capazes de assombrar os russos, usando sistemas de ataque a blindados como mísseis Stinger norte-americanos sem receio de retaliação imediata, o que contribuiu em larga escala para a evidente falta de sucesso e perdas pesadas verificadas na primeira vaga de assaltos russos, referiu o analista.
À estranha e quase total falta de contraoperações aéreas russas somou-se uma “coordenação muito fraca entre os movimentos das tropas terrestres russas e os seus sistemas de defesa aérea de médio e curtos alcance” notou ainda Bronk no seu artigo demolidor.
Além disso, “múltiplas colunas foram mandadas avançar além do alcance da sua cobertura aérea e noutros casos baterias SAM que as acompanhavam ficaram bloqueadas em engarrafamentos militares sem qualquer esforço aparente para providenciar informações espaciais e de defesa contra os aviões ucranianos”.
Isto deu aos drones armados sobreviventes das forças ucranianas, os Bayraktar TB-2 de fabrico turco, a oportunidade de mostrar toda a sua eficácia nalgumas áreas, infligindo pesadas baixas nas colunas de veículos russos.
Os Bayraktar até já conseguiram honras de uma canção própria em ucraniano, a celebrar as suas proezas.
Perplexidade
“Eles podem não estar dispostos a arriscar muito os seus aviões e pilotos”, avançou à Agência Reuters, sob anonimato, um alto responsável norte-americano, confuso com tais táticas. Os Estados Unidos acreditam que a Rússia esteja a usar apenas 75 caças na invasão da Ucrânia, adiantou. “Muito do que estão a fazer deixa-me perplexo”, afirmou por seu lado Rob Lee, um especialista em forças militares russas junto do Instituto de Estudos de Política Externa.
O general norte-americano de três estrelas na reserva David Petula, que comandou a zona interdita a voos no norte do Iraque, ficou igualmente admirado por a Rússia não ter tentado estabelecer desde o início o domínio aéreo.
“Estão a descobrir que coordenar operações múltiplas não é fácil”, adiantou à Reuters. “E que não são tão bons como pensavam ser”, acrescentou. Na Síria, ao combater a favor do Presidente Bashar al-Assad, os russos mostraram contudo ser capazes de coordenar o avanço das suas tropas terrestres com operações da sua aviação e dos seus drones.
No terreno, a resistência ucraniana face a um inimigo tão mais forte tem atraído elogios generalizados. Esta terça-feira, no seu discurso do Estado da Nação, o Presidente norte-americano Joe Biden permitiu-se mesmo ridicularizar a ofensiva russa.
O Presidente russo Vladimir Putin pensava “entrar em passeio” na Ucrânia dise Joe Biden. “Em vez disso esbarrou num muro de resistência que nunca esperou. Esbarrou no povo ucraniano”.
Oito anos de combate contra as guerrilhas separatistas russas do Donbass, no leste da Ucrânia, deram às forças ucranianas experiência de combate ao estilo das trincheiras da I Grande Guerra. Agora nos céus os ucranianos têm enfrentado diariamente os russos de igual para igual com ambos os lados a registar perdas.
As possíveis explicações
Munições limitadas
James Bronk admitiu que uma das razões para a reticência russa pode ser o seu arsenal limitado de PMG após anos de combates na Síria, limitando as munições a uso para ataques, o que “somado à falta de sinalização para localizar e identificar alvos no campo de batalha a distância segura, significa que a capacidade dos aparelhos de asa fixa das VKS providenciarem apoio de proximidade às suas forças é limitada”.
Falta de decisão política para empregar em grande escala os meios convencionais não teleguiados ao seu dispôr, poderá explicar a reticência do comando russo. Dos campos de guerra sírios de Aleppo e de Homs, onde foi usada sem contenção, sabe-se contudo que tal tática, que não discrimina alvos, não é repugnante aos russos e que será provavelmente usada na Ucrânia nos próximo dias, adiantou Bronk.
A falta de PGM não explica tudo, uma vez que os sistemas relativamente modernos de aviação implicam que, mesmo com munições menos especializadas, os caças teriam sido capazes de incapacitar em larga escala a aviação ucraniana e as suas bases aéreas. “As VKS também possuem cerca de 80 SU-35S modernos e 110 multimissões Su-30SM (2) caças”, capazes de ataques ofensivos e defensivos, notou o analista.
Fogo "amigo"
Outro problema pode ser a possibilidade de “fogo amigo” que tem afetado múltiplas operações militares, russas e ocidentais, desde os anos 90 do século passado. É difícil operar sistemas de ataque e defensivos em simultâneo em situações de combate real sem a ocorrência de tais incidentes.
“Requer cooperação muito próxima entre serviços, comunicações excelentes e treino regular para o conseguir”, explicou Bronk. A decisão tática poderá ter sido negar às forças ucranianas a sua capacidade de operar os seus sistemas de defesa no solo em vez de investir as VKS em larga escala.
Uma opção apesar de tudo estranha, dada a capacidade limitada da Ucrânia em tais sistemas e a possibilidade de combinar com as forças russas períodos em que estas retivessem as suas defesas dando aos caças russos oportunidade de agir.
Falta de treino
A terceira explicação pode residir na relutância em exibir a diferença entre a habilidade percecionada e real dos pilotos russos em operações de combate em larga escala face aos seus opositores ocidentais, por terem muito menos horas de treino.
Apesar de difíceis de estabelecer com precisão, “relatórios oficiais russos sugerem uma média de 100 a 120 horas de treino anual em todas as VKS em geral. As horas de uma unidade de combate são provavelmente mais baixas do que as de transporte ou de helicópteros, por isso a média daquelas deverá ser um pouco menor de 100”, admitiu Bronk.
“Já os pilotos da Royal Air Force britânica ou da US Air Force norte-americana, queixam-se da dificuldade de manter a prontidão de combate com uma média de 180 a 240 horas de voos por ano, acesso a simuladores de alta-fidelidade para treino adicional e ergonomia no cockpit e interfaces de armamento superiores aos dos russos”, argumentou.
Apesar da aquisição de cerca de 350 aviões de combate modernos na última década, talvez os pilotos das VKS possam esbarrar em diversas dificuldades para operar a alta eficácia dos seus caças num espaço aéreo complexo como o da Ucrânia.