Canadá. Encontrados restos mortais de 751 pessoas junto a antiga escola para crianças indígenas

por Andreia Martins - RTP
Uma equipa faz uma busca por radar de penetração no solo junto do antigo internato de Marieval. Reuters

Um cemitério com sepulturas anónimas de 751 pessoas foi encontrado junto a um antigo internato para crianças indígenas na província de Saskatchewan, no Canadá. A descoberta acontece apenas um mês depois ter sido identificada uma vala comum com os restos mortais de 215 crianças em Kamloops, na província de Colúmbia Britânica. Os eventos recentes estão a comover e a agitar o Canadá e a gerar uma onda de denúncias e testemunhos por parte de antigos alunos e sobreviventes destas escolas.

O líder de um grupo indígena canadiano confirmou na quinta-feira a descoberta de centenas de sepulturas não identificadas junto a uma antiga escola para crianças indígenas. Trata-se do internato de Marieval, aberto entre 1899 e 1996, uma de mais de 130 escolas do país gerida pelo Governo e Igreja Católica com o objetivo de assimilar a população jovem indígena na sociedade.

“Não é uma vala comum. São sepulturas sem identificação”, disse Cadmus Delorme, chefe da Primeira Nação Cowessess. O responsável adiantou ainda que não se sabe se todos os restos mortais são de crianças ou se há adultos também sepultados no local.  

Alguns residentes locais alegaram que as lápides foram removidas. “Não removemos essas lápides. Isso é crime neste país. Estamos a tratar o local como uma cena de crime”, adiantou o líder do grupo indígena.  

Cadmus Delorme afirmou ainda que este é, até hoje, o local “mais significativo” de sepulturas não identificadas a ser encontrado no Canadá e que a descoberta “reabre a dor” de muitos ex-alunos que sofreram em escolas como aquela.
“Sabes que te vão agredir”

Robert Kakakaway, sobrevivente da escola de Marieval em Saskatchewan, foi forçado a frequentar o internato a partir dos seis anos. Ao receber a notícia esta quinta-feira, chorou enquanto cumpria os rituais diários, ligados à cultura indígena de que foi afastado em criança. “Muitos desses túmulos são provavelmente de familiares”, refere.

Em entrevista à televisão canadiana CBC, lembra as famílias a quem crianças pequenas foram retiradas para que frequentassem estas escolas. “Sabiam que o fim estava próximo e não havia nada que pudessem fazer quanto a isso”, assinala.

“Sabes que te vão agredir, sabes que te vão dar murros, sabes que te vão fazer alguma coisa”, recorda. O antigo aluno lembra-se de ver um colega a ser manietado pelo responsável da escola, um padre. “Foi amarrado 15 vezes numa mão, 15 vezes noutra. As mãos do pobre miúdo estavam vermelhas por ter sido espancado por aquele homem adulto”, recorda.

Muitos indígenas têm denunciado as marcas e o legado que as escolas deixaram e que ainda hoje em dia se reflete nas comunidades, com alcoolismo e toxicodependência como principais exemplos.

"Muita da dor que vemos no nosso povo vem daqui. Eles fizeram-nos acreditar que não tínhamos alma", assinala Florence Florence Sparvier, uma antiga aluna de um internato para indígenas.
Vala comum em Kamloops

Há apenas um mês, uma descoberta semelhante abalou o Canadá: foram encontrados os restos mortais de 215 crianças numa vala comum junto a um antigo internato em Kamloops, na província de Colúmbia Britânica.

Entre 1883 e 1996, cerca de 150 mil crianças canadianas de comunidades indígenas foram forçadas a viver em 139 destes centros espalhados pelo país, administrados pelo Governo e Igreja Católica.

Nestas escolas, milhares de crianças foram forçadas a converter-se ao catolicismo e estavam proibidas de falar idiomas indígenas. Muitas sofreram negligência na doença, abusos físicos e verbais. Milhares acabaram por morrer.

Um relatório divulgado em junho de 2015 classifica o que se passou nestas instituições como “genocídio cultural” e que pelo menos 3.125 menores morreram nestes centros.

Nesse documento, conclui-se que metade das mortes ocorreu por tuberculose. Outras doenças, como a gripe ou a pneumonia também estiveram na origem de alguns dos óbitos.

No entanto, outras mortes registadas ocorreram devido a incêndios, suicídios, afogamento ou hipotermia, concluiu a comissão responsável pela elaboração deste relatório. Noutros casos, as causas de morte continuam por apurar.

Em 2019, novos estudos apontaram para pelo menos 4.136 mortes, mas há especialistas assumem que o número de vítimas mortais poderá chegar a 6.000.

Nas últimas semanas, a Igreja Católica tem sido alvo de pressões crescentes para divulgar os registos sobre as antigas instituições. “Estamos a ver os resultados de um genocídio que o Canadá cometeu”, afirmou Bobby Cameron, um dos principais líderes indígenas do país.

“Vamos inspecionar todos os locais de antigos internatos e não vamos parar aí. Vamos também procurar em todos os sanatórios, hospitais e em todos os locais onde pessoas foram abusadas, negligenciadas ou assassinadas. Vamos contar as histórias dos nossos filhos, do nosso povo que morreu, que foi assassinado pelo Estado e pela Igreja. Não vamos parar”, acrescentou o responsável.
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