Vala comum com restos mortais de 215 crianças gera onda de revolta e comoção no Canadá

por Andreia Martins - RTP
Memorial improvisado com sapatos de crianças e brinquedos junto ao antigo internato de Kamloops, onde foi encontrada recentemente uma vala comum com os restos mortais de 215 menores. Dennis Owen - Reuters

Uma vala comum com os restos mortais de 215 crianças foi encontrada junto a terrenos que integram o antigo internato para crianças indígenas em Kamloops, na província de Colúmbia Britânica. Entre 1883 e 1996, cerca de 150 mil crianças foram forçadas a viver em 139 destes centros espalhados pelo país, administrados pelo Governo e comunidades religiosas. Milhares de crianças institucionalizadas morreram.

A descoberta anunciada na semana passada por Rosanne Casimir, chefe da reserva Tk’emlups te Secwépmc, do povo Shuswap, está a chocar o Canadá. No comunicado, divulgado na última quinta-feira, a responsável destacou que os restos mortais das 215 crianças tinham sido encontrados no fim de semana anterior. Algumas das crianças ali sepultadas tinham apenas três anos de idade. Os motivos e datas de morte são desconhecidos.

O primeiro-ministro canadiano, Justin Trudeau, admitiu que esta descoberta é “uma recordação dolorosa” de um “capítulo vergonhoso” da história do país.

“As notícias sobre os restos mortais encontrados no antigo internato de Kamloops partem-me o coração. É uma recordação dolorosa de um capítulo sombrio e doloroso na história do nosso país. Estou a pensar em todos os que foram afetados por esta notícia angustiante. Estamos aqui para vocês”, disse o governante através do Twitter.

A situação está a gerar indignação um pouco por todo o país e levou à criação de vários memoriais improvisados em praças públicas e junto a edifícios governamentais. Por outro lado, em Charlottetown, na província canadiana da Ilha do Príncipe Eduardo, o poder local decidiu remover a estátua do ex-primeiro-ministro John A. Macdonald na sequência desta descoberta. A estátua já tinha sido sido desfigurada em várias ocasiões nos últimos meses.

Macdonald foi o primeiro chefe de Governo do Canadá, tendo sido responsável pela criação destes internatos em 1883. Na altura, assumiu o objetivo de retirar as crianças indígenas às famílias para evitar que crescessem como “selvagens”.  
Pelo menos quatro mil mortes

O internato de Kamloops foi inaugurado em 1890, tendo sido durante décadas um dos maiores centros do país. Em Kamloops chegaram a estar 500 estudantes de diferentes comunidades indígenas da província de Colúmbia Britânica durante a década de 1950. A instituição seria encerrada em 1978.

Estas escolas geridas pelo Governo e autoridades religiosas foram inicialmente projetadas – pelo menos em teoria – para promover a integração da população jovem indígena na sociedade.

No entanto, muitas destas crianças nunca veriam novamente os seus pais. Um relatório revelado em junho de 2015 classifica o que se passou nestas instituições como “genocídio cultural” e que pelo menos 3.125 menores morreram nestes centros.

Nesse documento, conclui-se que metade das mortes ocorreu por tuberculose. Outras doenças, como a gripe ou a pneumonia também estiveram na origem de alguns dos óbitos.

No entanto, outras mortes registadas ocorreram devido a incêndios, suicídios, afogamento ou hipotermia, concluiu a comissão responsável pela elaboração deste relatório. Noutros casos, as causas de morte continuam por apurar.

Em 2019, novos estudos apontaram para pelo menos 4.136 mortes, mas há especialistas assumem que o número de vítimas mortais deverá estar perto das 6.000. De acordo com a responsável, Rosanne Casimir, os restos mortais destas 215 crianças de Kamloops não estão ainda incluídas nesses registos.

Como pai, não consigo imaginar como me sentiria se me retirassem os meus filhos. E como primeiro-ministro estou chocado com a política vergonhosa que roubou as crianças indígenas às suas comunidades”, disse o primeiro-ministro Justin Trudeau numa conferência de imprensa na segunda-feira, em que garantiu que o Governo canadiano vai tomar “ações concretas” para apoiar e dar resposta aos sobreviventes e respetivas comunidades.

A descoberta desta vala comum intensificou as exigências de uma investigação a nível nacional em todos os antigos internatos.

"Infelizmente, sabemos que isto não é uma exceção ou um caso isolado", acrescentou o primeiro-ministro canadiano, reconhecendo que a busca por mais valas comuns noutras antigas escolas é essencial "na descoberta da verdade".
“Não é apenas uma história que foi transmitida pelos avós de alguém”

Nos últimos anos, várias investigações académicas estabeleceram a ligação entre as experiências em internatos e problemas de saúde mental dos sobreviventes ao longo da vida, mas também problemas de alcoolismo, toxicodependência ou violência.

As vítimas que foram obrigadas a frequentar estes internatos são testemunhas de desnutrição e violência vivida nestas instituições. Contam que era comum que os colegas por vezes desaparecessem sem explicação.

A história que temos vindo a contar de forma discreta está lentamente a ser revelada. Agora é algo que todos sabem, não é apenas uma história que foi transmitida pelos avós de alguém ou de que ouviram falar a alguém”, declarou o chefe Junior Gould, da Primeira Nação Abegweit.

Em 2008, o então primeiro-ministro canadiano Stephen Harper pediu pela primeira vez desculpas às comunidades indígenas pelos danos causados nestes internatos.

Desde que se tornou chefe de Governo em 2015, Justin Trudeau tem lançado várias iniciativas para promover a reconciliação e a melhoria das condições de vida dos povos indígenas, que representam atualmente quase cinco por cento da população canadiana. No entanto, muitas comunidades continuam a viver sem acesso a água potável ou a cuidados de saúde.
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