Caso Pelicot mostra limites da justiça e falhas da sociedade face à violência sexual
A filósofa francesa Manon Garcia afirma que o caso Pelicot expôs fragilidades profundas da sociedade perante o machismo, a violência sexual e os abusos de crianças, alertando que a justiça penal, sozinha, não consegue responder à dimensão do problema.
Autora de "Viver com homens: Reflexões sobre o caso Pelicot", editado este mês pela Zigurate, Manon Garcia transformou o acompanhamento do julgamento de Dominique Pelicot num ensaio que se propõe como instrumento de mudança, suscita a reflexão coletiva e deixa a pergunta: "Como viver depois disto?"
Especialista em filosofia feminista, política e moral, Manon Garcia começou a acompanhar o julgamento dos 50 homens acusados de violar Gisèle Pelicot, quando esta abdicou do direito a um julgamento à porta fechada.
A sua ideia inicial era assistir ao julgamento durante três dias, para escrever um artigo de opinião, mas "desde a primeira hora" que lá esteve, "tornou-se claro que nunca poderia ir embora, que era demasiado importante", mas também que estava a ver coisas, devido aos seus estudos e ao seu trabalho, "que os jornalistas não estavam a ver e que não podiam estar a ver", contou, em entrevista à Lusa.
"São olhares diferentes, e também diferentes missões. A sua missão é informar o público em geral, dia após dia, e a minha missão é pensar no mundo de uma determinada forma. E por causa disso, tornou-se muito claro para mim que se eu estivesse apenas a ler os seus artigos, estava a perder muito do que estava a acontecer".
Um dos aspetos mais reveladores de todo este processo foi a insuficiência estrutural do sistema penal francês e, por extensão, de todas as sociedades ocidentais, para lidar com crimes sexuais.
Manon Garcia recorda que, no mesmo período do julgamento, surgiram na Europa -- designadamente na Alemanha e em Itália - grupos de dezenas de milhares de homens a trocar na internet imagens íntimas das mulheres ou instruções para as drogar, sem o seu consentimento, o que mostra que "não se trata de malucos ao acaso", mas de práticas disseminadas.
"Se a violência sexual é cometida por tantos homens, o que vamos fazer? Construir prisões todas as semanas?", questiona a filósofa, lembrando também que juízes, jurados e advogados foram educados "com as mesmas normas de género" dos arguidos, tornando impossível que a justiça criminal responda ao problema. "É como tentar esvaziar o oceano com uma colher".
Na opinião da professora e investigadora, a solução não passa apenas pelo sistema penal, implica mudanças sociais profundas e educação.
"Temos de investir tão maciçamente na educação... Se passarmos uma hora com os adolescentes, já estamos a fazer uma grande diferença na forma como pensam sobre as coisas. Mas isso significa que muitos adultos precisam de educar muitas pessoas, crianças, adolescentes, mas também outros adultos, sobre como mudar os `softwares` que temos sobre todos os nossos mitos acerca da feminilidade e da masculinidade e da violência sexual".
"São questões filosóficas importantes, que exigem tempo, esforço e prioridade política, e que as nossas sociedades simplesmente não dão", acrescentou.
Um dos problemas identificados no julgamento e que Manon Garcia considera ter as mesmas raízes sociais é o dos abusos contra crianças, incluindo o incesto, tema que emergiu repetidamente nas audiências através das histórias pessoais de vítimas e arguidos.
O julgamento pôs a descoberto episódios incestuosos a envolver a família Pelicot, desde logo suspeitas nunca provadas de que Dominique Pelicot pudesse ter drogado e abusado também da filha Caroline, mas também casos relacionados com outros membros da família.
Entre os arguidos contam-se igualmente várias situações de trauma, resultantes de abusos na infância, mas também de outros acusados que disponibilizavam através da internet a outros homens, os seus próprios filhos pequenos, de quem já tinham, eles próprios, abusado.
Manon Garcia destaca a gravidade destes casos e do tabu social em torno do tema.
"Nós, enquanto sociedade, subestimamos profundamente o número de crianças que são vítimas de abusos sexuais durante as suas vidas", afirma, revelando que os estudos dizem que as estimativas mais baixas se situam entre os 12% e os 20%.
"Portanto, isso é enorme. Isso significa que, numa sala de aula com 30 crianças, há provavelmente cinco ou seis que são violadas ou que foram violadas".
Acresce a isto a "impossibilidade de ver e de pensar no facto de os rapazes serem vítimas de abusos sexuais".
"Alguns homens homossexuais conseguem falar sobre o assunto, mas a maioria dos homens heterossexuais receia que o facto de terem sido vítimas de abuso sexual em criança os torne homens defeituosos e que sejam vistos como tendo sido penetrados", acrescenta.
A autora alerta ainda que os traumas mais profundos não decorrem apenas do ato, mas sobretudo da reação da sociedade: "A pior coisa que nos pode acontecer em termos de trauma é falarmos em criança sobre o que nos está a acontecer ou o que nos aconteceu e não acontecer nada. A segunda pior é não termos falado".
"Mas o que realmente tem as consequências mais devastadoras é o facto de uma criança ter falado e não terem acreditado nela ou de as pessoas lhe terem dito para não falar", salientou.
Para Manon Garcia, estes testemunhos mostram como a sociedade está "dramaticamente despreparada" para enfrentar a violência sexual que ocorre dentro de casa e que marca gerações. "Os traumas são profundos e contínuos, e ainda assim evitamos olhar para eles".
Para a filósofa, o caso Pelicot não é apenas sobre um crime extraordinário, mas sobre a forma como as comunidades, instituições e famílias continuam a reproduzir e tolerar desigualdades de género, mitos sobre sexualidade e silêncios em torno da violência.
"Quando vemos um caso assim, percebemos o que está falido: não é só a justiça, é a sociedade inteira".