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Catalunha: um extremar previsível

por Filipe Vasconcelos Romão- comentador Antena 1 e RTP para Assuntos Internacionais
Reuters

A deriva independentista do nacionalismo catalão está a revelar-se mais grave do que Madrid previa inicialmente. Os partidários da independência da Catalunha ou os que compreendem os motivos que levaram à convocação do referendo assentam os seus argumentos na premissa de que a questão em disputa é política e não jurídica. Os defensores da unidade de Espanha, com o governo de Mariano Rajoy à cabeça, são intransigentes na sua recusa em reconhecer o desafio e em sair do terreno jurídico para o político. Temos assim posições que não permitem qualquer margem para diálogo e que conduziram o processo a um impasse.

Comecemos pela posição de Madrid. Como já várias vezes tive oportunidade de escrever nos últimos anos, juridicamente, no âmbito do quadro constitucional que vigora, a independência catalã é uma impossibilidade. Ou melhor, do ponto de vista teórico-jurídico, é possível mas, em termos políticos, menos provável do que alguém vencer dois primeiros prémios no Euromilhões. A constituição espanhola, ao contrário da portuguesa, não tem artigos que não sejam passíveis de revisão. Porém, estabelece que, para rever um corpo de artigos considerados fundamentais, é necessário desencadear um processo particularmente complexo, o que, na prática, dificulta enormemente a tarefa.

Assim, por exemplo, para rever (ou para eliminar) o artigo 2º, que estabelece a unidade e a indivisibilidade de Espanha, seria necessário que a Câmara dos Deputados aprovasse a abertura do processo por maioria de 2/3; que se procedesse à imediata dissolução das Cortes; que a Câmara dos Deputados e o Senado eleitos ratificassem o início do processo e redigissem um novo texto que também deveriam aprovar por uma maioria de 2/3; e que esta revisão fosse submetida a referendo à totalidade dos eleitores espanhóis. Uma vez revisto este e outros artigos, poderia ser desencadeado um processo de secessão de uma parte do território espanhol mediante o que viesse a ser estabelecido no novo texto constitucional e nas novas leis que implementassem o desenvolvimento do referido processo.

Convenhamos que a comunidade internacional e as instituições e parceiros europeus não têm qualquer margem para transigir nesta matéria. Espanha é um Estado política e constitucionalmente democrático desde 1978, não podendo ser feita letra morta da constituição de um país, cujas instituições são reconhecidas como legítimas e democráticas. As frequentes comparações com a Escócia, neste âmbito específico, não são válidas: o referendo escocês foi feito de comum acordo com o governo e com o parlamento britânicos e não existe no Reino Unido um preceito constitucional formal e rígido a este respeito. Caso existisse, ninguém, no seu perfeito juízo, poderá pensar que David Cameron teria enveredado por uma deriva inconstitucional.

Um outro argumento que me parece válido para obstar ao desafio catalão está relacionado com o perigo da abertura de precedentes. Se hoje assumimos como legítima a violação de um princípio constitucional por simpatizarmos com uma causa, poderemos estar a fornecer munições para que, amanhã, outros, menos bem intencionados, desrespeitem preceitos constitucionais como os que obrigam o Estado a respeitar o princípio democrático ou as liberdades individuais.

Quer tudo isto dizer que Rajoy, o seu governo e os partidos espanholistas estão a actuar correctamente em todo este processo? Evidentemente que não. Se sabemos serem estes os pressupostos jurídicos, não podemos desprezar o problema político subjacente a todo este debate. O nacionalismo catalão moderado apoiou a constituição de 1978 e foi um dos responsáveis pela construção do modelo autonómico espanhol. Conservador e monárquico, moldou a Catalunha política a partir de 1979 como bem entendeu e contribuiu activamente para a (re)construção da identidade nacional catalã no período democrático. Ocupou o poder ininterruptamente entre 1980 e 2003, pela mão do agora caído em desgraça Jordi Pujol, homem de relacionamento fluído como anterior rei de Espanha (Juan Carlos I) e com os diferentes presidentes do governo com que lhe coube relacionar-se (sobretudo Felipe González e José María Aznar) e com quem assinou acordos de incidência parlamentar para suster executivos minoritários.

O fim dos governos nacionalistas, em 2003, depois de um acordo pós-eleitoral entre socialistas catalães, independentistas da Esquerra Republicana de Catalununya e eco-socialistas da Inicitiva per Catalunya altera o panorama político da região e dá origem a uma nova etapa na vida da autonomia. Neste período, o PSOE, na oposição, é liderado por um jovem Rodríguez Zapatero que pretende romper com alguns dogmas da transição espanhola e abrir caminho para um Estado federal. O apoio dos socialistas catalães de Pascal Maragall tinha sido decisivo para a conquista interna do poder por Zapatero e, para o PSC, o estatuto autonómico então em vigor era um travão ao aprofundamento da autonomia e de uma materialização política mesmo que parcial da identidade nacional. A revisão do estatuto surge, assim, como um processo natural, sobretudo depois da inesperada vitória do PSOE nas legislativas de 2004, na sequência dos atentados de 11 de Março.

As hesitações de Zapatero (que começou por negociar a revisão do estatuto com os independentistas da ERC e acabou a emendar essa revisão com os nacionalistas de centro-direita de Jordi Pujol e de Artur Mas) conjugadas com a oposição radical do Partido Popular, ditada pelas dificuldades em reconhecer a derrota que não esperava, lançam a Catalunha num prolongado período de instabilidade e de crescente degradação da relação com Madrid. O PP acentua o nacionalismo e assume os símbolos nacionais espanhóis como seus, procurando demonstrar os riscos inerentes à “Espanha plural” de Zapatero que, na sua visão conservadora, põe em risco a unidade do país com a sua política de revisão de estatutos de autonomia e de negociações com a ETA. No que respeita à Catalunha, o efeito mais estridente desta etapa será o recurso apresentado pelo PP ao Tribunal Constitucional contra o novo estatuto autonómico, em 2006 (que já tinha sofrido alterações no âmbito da negociação com Mas).

Se a iniciativa do recurso significou um corte claro entre o PP e o nacionalismo (político) catalão e uma parte muito considerável das elites da região, a sentença do Tribunal Constitucional, em 2010, a confirmar a nulidade parcial do texto contribui em boa medida para que o afastamento se estendesse às instituições do Estado. A partir daí, um número considerável de académicos, intelectuais, políticos, jornalistas e empresários catalães, que viam na via autonómica um modelo de convivência adequado, iniciam um caminhada que os distancia cada vez mais de Espanha.

A crise económica e financeira encarregou-se do resto. Por essa época (2008), Rodríguez Zapatero já tinha abandonado todo e qualquer projecto de reforma territorial e de re-equilíbrio de poder com as identidades periféricas, dada a feroz oposição do PP e a impossibilidade de chegar a um acordo com a ETA. A crise, depois de um fogacho keynesiano, obrigou a um vasto programa de austeridade que contribuiu para um processo de centralização financeira (com Madrid a aumentar o controlo sobre as despesas das comunidades autónomas) e, sobretudo, que tornou mais claro, para muitos catalães, os custos da integração em Espanha ao mesmo tempo que tornou mais difícil a compreensão dos seus benefícios. Zapatero deixará o poder em 2011, depois de uma vitória do PP com maioria absoluta, cabendo a Mariano Rajoy a gestão do país em plena crise do euro. Durante quatro anos, Espanha contará com um governo conservador nada dado à negociação e que se vê a si próprio como o último baluarte da identidade espanhola.

Porém, para compreender o imobilismo da direita espanhola é necessário compreender o Partido Popular e as especificidades de que goza no contexto da sua corrente ideológica. Se olharmos para a história dos grandes partidos europeus moderados de centro-direita e de direita, constatamos que, na generalidade dos casos, há vínculos fortes com a democracia. A CDU alemã, por exemplo, nasce no âmbito da fundação da Alemanha Federal e com uma genética claramente anti-totalitária; o gaullismo francês, apesar de algumas marcas de caudilhismo, também é, na origem, produto da resistência e do combate ao fascismo e ao colaboracionismo em França; o conservadorismo inglês, em linha com o sistema britânico, evoluiu e foi-se democratizando (na acepção de alargamento da base eleitoral passiva e activa do país) com este; a democracia-cristã italiana permite a superação do fascismo e chega a conviver bem com o comunismo; o PSD e o CDS, em Portugal, nascem com a democracia, assumindo, desde o início, um compromisso claro com o novo regime.

Em Espanha, o percurso foi diferente. O regime democrático espanhol é produto de uma transição pactuada que tem origem no franquismo. O PP, então Alianza Popular, representava, nesse processo, uma facção hesitante em relação à democratização. O seu líder e fundador, o polémico Manuel Fraga Iribarne, antigo ministro de Francisco Franco, opunha-se abertamente à legalização do Partido Comunista de Espanha e hesitava em relação à autorização de partidos, preferindo um modelo de “associações políticas”. Felizmente, não coube a Fraga o papel de maior relevo neste período, tendo sido preterido por Juan Carlos I que optou por nomear Adolfo Suárez como presidente do último governo espanhol sem base parlamentar democrática e por colocar nas suas mãos a democratização. Suárez, também era um produto do franquismo, mas tinha uma visão muito mais aberta, o que, em última instância, abriu portas a uma verdadeira democracia liberal.

O facto de uma boa parte dos quadros da Unión del Centro Democrático (uma coligação muito heterogénea transformada depois em partido) de Suárez ter acabado por aderir à AP e de ter contribuído para a transformar num partido moderno e passível de obter o voto do eleitorado moderado não altera a origem ultra-conservadora e nacionalista dos populares. Em termos de funcionamento interno, o PP nunca abandonou o caudilhismo e os seus líderes, mesmo se contestados, nunca são desafiados em disputas internas. Nos seus 40 anos de existência, o PP (incluído no período de AP), teve quatro líderes, sendo que um deles, Antonio Hernández Mancha, o foi por menos de dois anos. Também é sintomático que só por uma vez tenham concorrido à presidência do partido mais do que um candidato. Mesmo hoje, com o partido dilacerado pela corrupção, com a perda da maioria absoluta (em 2015/2016) e no quadro de um sistema partidário fragmentado, ninguém questiona a liderança de Mariano Rajoy que parece ir passando entre os pingos da chuva em grande medida graças à multiplicação de partidos e à ausência de um líder da oposição.

A crise catalã pôs em evidência o conservadorismo popular e a sua incapacidade para ter uma iniciativa dentro do quadro constitucional vigente. Também não é demais reafirmar que o atropelo às instituições tentado pelas próprias autoridades da comunidade autónoma forneceram munições de sobra para que o PP se acantonasse numa posição de claro imobilismo. Como penso ter ficado claro ao início, a independência da Catalunha num contexto de normalidade é, hoje, uma causa impossível. Por muito que custe ao independentismo e aos seus simpatizantes, a Catalunha não será, a médio-prazo, um Estado independente reconhecido pela comunidade internacional e pela União Europeia. E, a longo-prazo, se vier a sê-lo, nunca será pela via unilateral. A cidadania catalã sabe-o perfeitamente e, caso as sondagens estejam certas, é maioritariamente contra uma deriva imposta pelo nacionalismo que, na prática, paralisou as instituições autonómicas nos últimos quatro anos.

O desafio que um processo unilateral supõe à autoridade e à soberania de um Estado democrático integrado na União Europeia é descomunal e desmesurado. Uma carta que nunca deveria ser utilizada excepto em contextos extremos como a extinção do regime democrático ou violações dos direitos humanos. A tensão criada não levou Mariano Rajoy a “pôr os tanques na rua” (como eventualmente quereriam os mais radicais das duas partes), mas levou-o a fazer uso de todos os instrumentos de que o Estado espanhol dispõe para impedir que a votação decorra com a mínima normalidade. Em articulação com o Ministério Público, com o Tribunal Constitucional e com o poder judicial, o governo lançou uma ofensiva que passou pela apreensão de cartazes, boletins de votos; pela notificação judicial de eventuais participantes em mesas de voto; por avisos e ameaças a autarcas que viabilizassem votações em espaços municipais; e pela detenção de responsáveis políticos catalães.

Madrid tem de esvaziar o referendo de forma a que não haja qualquer contagem, minimamente credível, do que quer que seja na noite de 1 de Outubro. A mais relevante cartada foi jogada no campo do financiamento. A liquidez do governo catalão (responsável, entre outras coisas, pela Saúde, Educação e Segurança públicas na comunidade autónoma) foi cortada pela não transferência de verbas de Madrid para Barcelona. A estratégia passa por secar as instituições autonómicas e, desta forma, atirá-las ao tapete.

Em termos práticos e jurídicos, o governo espanhol poderá vencer a batalha. A vitória foi facilitada pela pressa do nacionalismo catalão em queimar etapas, fruto da sua dependência em relação a sectores radicais que condicionaram toda a estratégia. No entanto, a batalha política poderá saldar-se numa derrota das duas partes, com o governo e os partidos espanholistas a perder definitivamente o apoio de uma sociedade catalã que nunca verá com bons olhos o regresso da Guarda Civil a um papel de protagonista ou a reversão da sua autonomia. Os catalães poderão ter muitas dúvidas acerca do referendo e discordar da independência, mas, na sua larga maioria, estão convictos de que não querem voltar a ser governados a partir de Madrid.
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