China. Muçulmanos denunciam "violações sistemáticas" de mulheres em campos de concentração

Várias mulheres da etnia muçulmana uigure, detidas em campos de concentração na província chinesa de Xinjiang, têm sido alvo de violação, abuso sexual e tortura, segundo revelou um novo relatório, baseado em depoimentos de algumas das vítimas. Os Estados Unidos e o Reino Unido condenaram, esta quinta-feira, as "atrocidades" relatadas por esta minoria perseguida pelo Governo chinês.

Inês Moreira Santos - RTP /
Thomas Peter - Reuters

As mulheres nos chamados campos de "reeducação" da China para uigures são "sistematicamente violadas", abusadas sexualmente e torturadas. Uma investigação da BBC, baseada em testemunhos de algumas ex-reclusas e de um guarda destes campos, revelou as alegadas experiências de muitas mulheres desta etnia às mãos de guardas e polícias que as detinham.

Uma antiga reclusa dos campos para uigures, Tursunay Ziawudun, contou ao jornal britânico que passou nove meses dentro do vasto e secreto sistema de centros de "reeducação" de Xinjiang e que, enquanto esteve detida, foi vítima de violações constantes e abuso sexual por parte de "homens chineses mascarados".

Segundo a muçulmana de 42 anos, os homens apareciam "todas as noites" nas celas, com a cara tapada com uma máscara e sem uniforme de polícia, e selecionavam as mulheres que queriam. As vítimas eram, então, levadas pelo corredor até uma "sala negra", onde não havia câmaras de vigilância. Ziawudun foi, segundo a mesma, várias vezes levada para essa sala, depois da meia noite, e torturada e violada por um grupo de dois ou três homens.

"Talvez esta seja a marca mais dificil de esquecer em mim para sempre", lamentou à publicação. "Eu nem quero que essas palavras saiam da minha boca".

Tursunay Ziawudun, que fugiu de Xinjiang após a sua libertação e agora está a viver nos Estados Unidos, contou ainda que sentia vergonha de falar no assunto antes e receava voltar para os campos chineses e ser punida com mais severidade se denunciasse as situações de abuso sexual e tortura que viveu.
Tortura e abusos constantes
Ziawudun foi detida em março de 2018, enquanto o marido estava a trabalhar no Cazaquistão. Mas já tinham sido amobs presos entre 2016 e 2017. Contudo, depois de o marido de Ziawudun ter viajado para o país vizinho, as autoridades locais prenderam-na novamente, alegando que ela precisava de "mais educação".

A mulher relatou ter sido levada para o mesmo campo onde tinha estado antes, mas que o local estava diferente, maior e com um grande número de novos prisioneiros. Ao entrar no campo de detenção, contou, as mulheres tinham de entregar todos os seus bens e jóias, eram humilhadas pelos guardas e obrigadas a cortar o cabelo.

As reclusas eram ainda forçadas a usar o DIU (dispositivo intrauterino) ou a serem esterilizadas, sendo ainda submetidas a "exames médicos inexplicáveis" e obrigadas a tomar comprimidos e "vacinas" de 15 em 15 dias, que lhes "causavam náuseas e dormência".

As torturas, segundo o relato, começaram após dois meses da detenção, com interrogatórios sobre as atividades do marido no Cazaquistão. Uma vez, ao resisitir a responder, um polícia atirou-a ao chão e começou a bater-lhe.

Só depois é que começaram as violações, quando ela e outra rapariga que estava na mesma cela foram levadas para uma "sala escura".

"Uma mulher levou-me para o quarto ao lado onde a outra rapariga estava", descrevendo ainda que antes de ser violada foi sujeita a choques elétricos nos genitais.

"Assim que entrou, ela começou a gritar", disse Ziawudun. "Não sei como explicar, pensei que eles estavam a torturá-la. Nunca pensei que a violassem".

Nas palavras de Ziawudun, a rapariga que foi levada com ela, com os seus 20 anos, ficou "completamente diferente" depois deste episódio: "Ela não falava com ninguém, ficava sentada a olhar fixamente como se estivesse em transe".
"Muitas pessoas naquelas celas perderam a cabeça".
Algumas das mulheres que eram levadas das celas à noite nunca mais voltaram, disse ainda Ziawudun. As que eram levadas de volta foram ameaçadas para não contarem às outras mulheres na cela o que lhes tinham feito.

"Não pode contar a ninguém o que aconteceu, só pode deitar-se em silêncio", citou a muçulmana.
Homens chineses "pagavam para escolher" reclusas "mais bonitas"

Os relatos em primeira mão do que se passa dentro dos campos de "reeducação" são raros, mas vários antigos prisioneiros e um guarda revelaram à BBC que viveram ou presenciaram situações que evidenciam a existênia de um sistema organizado de violações em massa, abuso sexual e tortura.

Um dos depoimentos que o jornal britânico conseguiu, e que corrobora os relatos de Ziawudun, foi o de Gulzira Auelkhan, uma mulher cazaque que vivia em Xinjiang e ficou detida durante 18 meses num dos campos chineses.

Auelkhan era, segundo contou, forçada a despir as mulheres uigures e algemá-las antes de as deixar sozinhas com homens chineses. Depois, levava-as para o banho e limpava os quartos.

"O meu trabalho era tirar-lhes a roupa acima da cintura e algemá-las para que não se mexessem"
, disse Gulzira Auelkhan, cruzando os pulsos atrás da cabeça para demonstrar como ficavam as vítimas.

"Depois eu deixava as mulheres no quarto e um homem entrava - algum chinês de fora ou um policia. Sentava-me em silêncio ao lado da porta e quando o homem saía da sala eu levava a mulher a tomar banho", relatou.
Os homens chineses, afirmou ainda, "pagavam para escolher as jovens presidiárias mais bonitas".
De acordo com a reportagem, vários reclusos afirmaram ter sido forçados a ajudar os guardas, ameaçados de que seriam punidos se não o fizessem. Auelkhan admitiu, contudo, que não tinha forças para resistir ou intervir.

Para esta mulher cazaque é evidente que se trata de um sistema organizado de violações.

"Eles forçavam-me a entrar naquela sala", disse. "Forçavam-me a tirar a roupa daquelas mulheres, segurar-lhes as mãos e sair do quarto".
Sistema de violações organizado

Uma das características destes campos de concentração chineses para uigures e outras minorias é a existencia de uma espécie de salas de aulas. Alguns professores são, por isso, convidados a "reeducar" os detidos - esta "reeducação" é, no entanto, criticada pelos ativistas que consideram que as pessoas destas minorias são privadas da sua própria cultura, língua e religião, e doutrinados na cultura chinesa dominante.

Qelbinur Sedik, uma mulher usbeque de Xinjiang, estava entre os professores de chinês levados para os campos e coagidos a dar aulas aos detidos.

O acampamento feminino é "rigidamente controlado", disse Sedik à BBC. Mas a professora lembra-se de ter ouvido histórias e rumores de violações que, mais tarde confirmou serem verdade.

Um dia Sedik abordou uma guarda chinesa que conhecia e perguntou se ela sabia de alguma coisa sobre "algumas das histórias terríveis de violações".

Falando posteriormente e num pátio sem vigilância, a polícia chinesa confirmou à professora que não eram apenas histórias e rumores.

"Sim, a violação tornou-se um costume".

"São violações coletivas e os polícias chineses não apenas as violam, como também as eletrocutam. Elas são sujeitos a terríveis torturas", terá dito a guarda a Sedik

Num outro depoimento para o Projeto de Direitos Humanos Uigur, Sedik contou que ouviu falar de um bastão elétrico que era usado em mulheres para as torturar - relato que também corrobora a experiência que Ziawudun descreveu.

Havia "quatro tipos de choque elétrico", disse Sedik - "a cadeira, a luva, o capacete e a violação com uma vara".

"Os gritos ecoavam por todo o prédio"
, disse ainda. "Eu conseguia ouvi-los ao almoço e às vezes quando estava na aula".
Privação de comida

A apoiar alguns destes relatos, divulgados pela BBC, um antigo guarda dos campos de concentração chineses, que falou sob condição de anonimato, descreveu a tortura e a privação de comida dos presidiários.

Os detidos podiam ficar sem comer se não memorizassem com precisão passagens de livros sobre Xi Jinping, de acordo com ex-guarda.

"Uma vez, estávamos a levar as pessoas presas para o campo de concentração e vi todos a serem forçados a memorizar aqueles livros. Eles sentaram-se horas a tentar memorizar o texto, todos tinham um livro nas mãos", disse.

Aqueles que reprovavam nos testes eram forçados a usar roupas de três cores diferentes com base no facto de terem reprovado uma, duas ou três vezes, explicou, e submetidos a diferentes níveis de punição, incluindo privação de comida e espancamento.

"Entrei nesses campos. Levei presos para esses campos", disse. "Eu vi aquelas pessoas doentes e miseráveis. Eles definitivamente sofreram vários tipos de tortura. Tenho a certeza disso".
Países ocidentais condenam "atrocidades" reveladas

Depois de divulgado, na quarta-feira, a reportagem a BBC, foram vários os países que condenaram os atos cometidos contra pessoas da minoria muçulmana uigure.

Esta quinta-feira, a Administração Biden disse estar "profundamente perturbada" com o relatório da BBC.

"Estamos profundamente perturbados com os relatos, incluindo testemunhos em primeira mão, de violações e abuso sexual sistemático contra mulheres em campos de concentração para uigures étnicos e outros muçulmanos em Xinjiang".

"Essas atrocidades chocam a consciência e devem ter consequências graves", acrescentou um porta-voz da Casa Branca.

O assunto também não passou despercebido no Reino Unido. O ministro Nigel Adams afirmou, esta quinta-feira no Parlamento, que os relatos evidenciam "atos claramente malignos".

"Qualquer pessoa que tenha visto a reportagem da BBC não pode deixar de ficar comovida e angustiada pelo que são atos claramente malignos", disse. O Reino Unido, acrescentou ainda, vai continuar a trabalhar com os países europeus e com o novo governo dos Estados Unidos para pressionar a China.

Também Nus Ghani, membro do Parlamento britânico, afirmou que "estas histórias horríveis somam-se ao enorme e crescente corpo de evidências que detalham atrocidades perpetradas pelas autoridades chinesas em Xinjiang - atrocidades que podem até ser consideradas genocídio". Ghani apleou ainda a Nigel Adams que não estreitasse "laços de qualquer tipo com a China, até que haja um inquérito judicial completo que investigue estes crimes".

Na mesma onda de criticias, a ministra dos Negócios Estrangeiros da Austrália, Marise Payne, também comentou os factos revelados pela publicação, afirmando que as Nações Unidas deviam ter acesso "imediato" à região.

"Consideramos a transparência de extrema importância e continuamos a instar a China a permitir que observadores internacionais, incluindo a Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, tenham acesso imediato, significativo e irrestrito a Xinjiang na primeira oportunidade", disse.

Desde 2016, a China colocou mais de um milhão de uigures e membros de outras minorias predominantemente muçulmanas em prisões e campos de doutrinação, que Pequim classifica como centros de treino vocacional, segundo organizações de defesa dos Direitos Humanos.

Não é a primeira vez que surgem relatos de antigos detidos que dizem ter sido submetidos a tortura, esterilização e doutrinação política, além de trabalho forçado, como parte de uma campanha de assimilação étnica.

Documentos governamentais a que a imprensa internacional teve acesso revelaram a extensão da campanha, mas a China negou quaisquer abusos e disse que as medidas tomadas são necessárias para combater o terrorismo e o separatismo.
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