Corrupção é a norma no quotidiano do Afeganistão
Os fenómenos de corrupção, como o pagamento de luvas, constituem hoje a principal fonte de preocupação do afegão médio, que chega a desembolsar mais de um terço dos seus rendimentos para conseguir "obter um serviço público". A conclusão consta de um relatório publicado esta terça-feira pelo Gabinete das Nações Unidas sobre Droga e Crime (UNODC, na sigla em Inglês).
A estrutura das Nações Unidas para o combate ao tráfico de droga e ao crime entrevistou 7.600 afegãos em 12 capitais provinciais e em mais de 1.600 localidades do país que o Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, reconverteu em prioridade das operações militares norte-americanas. Quase 60 por cento dos inquiridos elege a corrupção como a principal fonte de preocupação, acima da insegurança e mesmo do desemprego. Num país que é esventrado por sucessivas guerras há mais de três décadas, 54 por cento das pessoas ouvidas pela ONU vêem a insegurança como a maior preocupação, enquanto que o desemprego inquieta 52 por cento dos inquiridos.
Nos últimos 12 meses, concluíram os relatores das Nações Unidas, mais de metade da população afegã teve de despender pelo menos um suborno para um funcionário público. Cada uma das pessoas inquiridas gasta em média, a cada ano, 160 dólares (cerca de 111 euros) em subornos - o produto interno bruto (PIB) por habitante está calculado em 425 dólares (295 euros). Perante esta realidade diária, pelo menos um em cada três afegãos acredita que a corrupção é a norma.
23 por cento do PIB
Extrapolados para o conjunto da população afegã, os números do relatório "Corrupção no Afeganistão" indicam que os fenómenos dos pagamentos por baixo da mesa e outros expedientes terão um peso anual de 2,5 mil milhões de dólares (1,7 mil milhões de euros), ou seja, 23 por cento do PIB do país. Como possíveis situações de corrupção, os inquiridos pelas Nações Unidas evocam a necessidade de apressar um processo administrativo, ou de obter os bons ofícios de um juiz, de um polícia ou de um qualquer responsável de um serviço público. Três em cada quatro casos são relativos a subornos pagos em dinheiro.
"Nós vendemos numerosos artigos na rua, aqui. O chefe da polícia nomeia alguém como responsável pela recolha de dinheiro, que depois lhe é entregue", relata um comerciante afegão citado no relatório do UNODC.
"O meu primo tem um consultório médico. Foram lá encontrados medicamentos caducados, foi aberto um processo contra ele. Mais tarde, ele subornou o médico chefe e o seu processo foi resolvido. O meu primo continua a vender esses medicamentos caducados provenientes do Paquistão, vendidos com marcas alemãs e americanas", lê-se num segundo testemunho.
Polícias, juízes, políticos e membros de ONG
Segundo o relatório, os actos de corrupção têm como principais beneficiários efectivos da polícia, magistrados e políticos. Mas há também casos de subornos a trabalhadores de organizações não governamentais a operar no Afeganistão. Entre 54 por cento dos afegãos inquiridos prevalece a percepção de que muitas das organizações internacionais "estão no país para enriquecer".
"Esta percepção pode minar a eficácia da ajuda e desacreditar aqueles que estão a tentar ajudar um país que precisa desesperadamente de assistência", escrevem os relatores das Nações Unidas. António Maria Costa assinala mesmo o recrudescimento de "uma nova casta de indivíduos ricos e poderosos que operam à margem das tradicionais estruturas tribais e leiloam o custo dos favores e da lealdade em níveis incompatíveis com a natureza subdesenvolvida do país".
"A apropriação criminosa tornou-se ao mesmo tempo monumental, perversa e está a crescer e a ter consequências políticas, económicas e até na segurança", alertou o número um do UNODC.
Apelo a Hamid Karzai
Com base nos dados recolhidos pelos relatores, António Maria Costa exortou o Presidente do Afeganistão, Hamid Karzai, a fazer do combate ao "cancro" da corrupção a primeira prioridade do seu Governo. A corrupção, disse o responsável, "é o principal obstáculo à melhoria da segurança, ao desenvolvimento da boa governação. Ela favorece também outras formas de criminalidade, como o tráfico de droga e o terrorismo".
"Se o afegão comum não pode obter serviços ou protecção por parte do Governo por causa da corrupção, ou unicamente por esse meio, o Governo não obterá o apoio de que precisa desesperadamente da parte de todas as comunidades através do país para vencer a sua luta contra os taliban", sustenta o documento do UNODC.
A criação de uma autoridade contra a corrupção e a adopção de práticas de transparência nos procedimentos administrativos, a par da publicação periódica dos rendimentos dos responsáveis públicos, são algumas das recomendações do Gabinete das Nações Unidas ao frágil poder político afegão.