Crítica severa. Rei da Suécia reconhece que país "falhou" no combate à Covid-19

por Graça Andrade Ramos - RTP
O Rei da Suécia, Carl Gustav XVI, em França, em 2018 Reuters

"O povo sueco tem sofrido tremendamente em circunstâncias difíceis", afirmou Carl Gustav, em excertos do seu discurso de Natal divulgados esta quinta-feira. "Penso que falhámos. Temos um enorme número de mortos e isso é terrível", lamentou, ao referir-se à pandemia.

"É algo que nos faz sofrer a todos", afirmou o Rei.

É muito raro Carl Gustav XVI pronunciar-se sobre as decisões políticas do Governo sueco e ainda mais raro criticá-las. O seu reconhecimento público do fracasso da estratégia governamental contra a Covid-19, quando os responsáveis por ela se recusam a admiti-lo, reveste por isso um carácter ainda mais grave.Noutro sinal da sua importância, as críticas do Rei foram divulgadas hoje pela televisão estatal, SVT, apesar de a emissão do discurso estar marcada apenas para segunda-feira.

Carl Gustav assumiu ainda o receio de ser contaminado. "Ultimamente, tornou-se mais premente. Está cada vez mais próximo. Não é isso que se quer", referiu.

Em vez de confinar a população, a Suécia preferiu confiar no cumprimento voluntário das regras de distanciamento e de higiene e está a pagar um preço muito alto, com o número de óbitos per capita a superar em muito o dos países vizinhos. Apesar dos contágios registados da Primavera, a disseminação do vírus não abrandou no início dos meses frios, ao contrário do esperado.

A gravidade da segunda vaga é tal que está a deixar sem resposta o sistema de saúde.

No início da semana, as hospitalizações ligadas à covid-19 na Suécia igualaram o seu pico de 20 de abril, com quase 2.400 doentes em tratamento, embora a proporção em cuidados intensivos seja duas vezes menor que na primavera, à volta de 10 por cento.

Ontem os hospitais das regiões de Estocolmo e de Skåne anunciaram que estão a chegar a um ponto de rutura e sucedem-se os apelos para a imposição de medidas mais restritas.

"Infelizmente, o nível de contágio não diminui", afirmou à AFP o responsável pela saúde da região de Estocolmo, Björn Eriksson, assumindo-se muito preocupado e revoltado. Já na semana passada tinha recomendado mais contenção aos suecos. "Agora chega", apelou. "Não vale beber um copo depois do trabalho, encontrar-se com pessoas fora de casa, fazer compras de Natal ou tomar café: as consequências são terríveis".

Quinta-feira, 17 de dezembro, registaram-se no país 8.881 novos casos de infeção com SARS-CoV-2, um novo recorde diário, substancialmente superior ao anterior máximo de 7.935 casos da semana passada.

A Suécia contou ainda mais 91 mortos, para um novo total de 7.893 óbitos relacionados com a Covid-19, embora algumas possam já ter ocorrido há algumas semanas, uma vez que a contabilidade não é diária. Mesmo assim, os números dispararam, com mais de 500 mortes registadas nos últimos sete dias e mais 1.800 desde o início de novembro.

TT News Agency via REUTERS
Confiança em queda
As sondagens mais recentes mostram que a confiança dos suecos nas decisões das autoridades sanitárias e políticas está mais baixa que nunca.

Uma sondagem Ipsos para o diário Dagens Nyheter revelou esta quinta-feira que o apoio a Anders Tegnell, o principal epidemiologista do país e responsável pela resposta sueca à pandemia, caiu 13 pontos, para 59 por cento, com a confiança na Agência de Saúde Pública também a tombar dos 68 para os 52 por cento.

Tegnell ainda se defende e afirmou em entrevista que é demasiado cedo para dizer que a sua estratégia falhou. "Praticamente todos os países estão a debater-se com isto", disse à TV4, para reconhecer logo depois que ficou surpreendido com a dimensão da segunda vaga e que a situação está a "atingir um ponto de rutura" nalgumas áreas. No mês passado Tegnell reconheceu que a imunidade de manada, o ponto em que uma população está suficientemente imunizada para deter a disseminação de uma doença, não estava a ter qualquer impacto no alastrar do SARS-CoV-2.

Apesar das críticas na terça-feira de uma comissão independente, também o primeiro-ministro, Stefan Lovfven, recusou até agora considerar a estratégia um fracasso.

Muitos responsáveis hospitalares querem uma alteração da estratégia.

"A autoridade de saúde pública preparou três cenários no verão. Preparámo-nos para o pior, mas é duas vezes pior", criticou Lars Falk, um responsável de cuidados intensivos no hospital Karolinska de Estocolmo, à agência France Presse. O médico considera ainda que "se deve fazer mais", aumentando as restrições, nomeadamente durante o período das festas.

O diretor regional de saúde de Skåne disse quarta-feira que agora a escolha é deixar para trás os doentes não Covid.

"Iremos continuar com os cuidados de urgência, iremos manter os cuidados Covid", anunciou Alf Jönsson. "Mas isto irá suceder à custa de outros cuidados", reconheceu, num altura em que 25 por cento dos testes efetuados na sua região têm resultado positivo para o SARS-CoV-2.

Björn Eriksson denunciou por seu lado uma "enorme pressão sobre o sistema de saúde" e revelou que os cuidados não urgentes na sua região serão adiados pelo menos até 31 de janeiro. "O meu dever agora é fazer tudo o que possa para aliviar e auxiliar o pessoal médico", disse. "Vão ter de prosseguir por semanas, meses".

De acordo com a sondagem de quinta-feira, a confiança nas autoridades em geral está em mínimos recorde, com uns meros 34 por cento, talvez por influência ainda de relatórios oficiais recentes, que denunciaram o acompanhamento feito a muitos utentes de lares com teste positivo ao SARS-CoV-2, a quem foram administrados apenas cuidados paliativos, mesmo com bons prognósticos.

A situação teve tantas denúncias por parte de familiares e de cuidadores que se tornou impossível ignorá-la. O escândalo desiludiu muitos suecos, convencidos atualmente que muitas mortes poderiam ter sido evitadas.
Restrições mais duras
A taxa de 766,2 óbitos por milhão de habitantes registada no país é cerca de 10 vezes superior à das vizinhas Noruega e Finlândia, apesar de mais baixa comparativamente a países como França, Itália, Espanha e Reino Unido, que aplicaram confinamentos generalizados.

Até agora, a Suécia permitiu que o comércio, os bares e os restaurantes permanecessem abertos e apenas obrigou ao uso de máscara em meios hospitalares.

A segunda vaga já impôs medidas mais restritas, com a Agência de Saúde Pública e o Governo a proibirem a venda de bebidas alcoólicas após as 22h00, a reduzir o número máximo de reunião de pessoas de 50 para oito e a alterar as aulas presenciais do ensino secundário em favor do ensino à distância.

As pessoas foram ainda aconselhadas a evitar os transportes públicos e grandes lojas, a limitar os contactos sociais ao seu círculo familiar íntimo e a pessoas com contactos regulares, e a evitar lugares como ginásios, bibliotecas, centros comerciais e outros locais públicos.

Se a situação continuar a agravar-se no país, o cenário de confinamento, ou de pelo menos recolher obrigatório, é praticamente uma certeza. Como o resto da Europa, a Suécia deposita ainda grande esperança na vacinação que espera lançar no final de dezembro e disponibilizar a toda a população em meados de 2021.

c/agências
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