"Cruel e devastador" ou "vitória histórica"? As reações à reversão do direito ao aborto nos EUA

por Joana Raposo Santos - RTP
Alguns Estados democratas começam já a dar garantias do acesso ao aborto às mulheres que o procurem. Mary F. Calvert - Reuters

O direito constitucional das mulheres ao aborto nos Estados Unidos foi revertido pelo Supremo Tribunal, passando a caber a cada Estado legislar sobre a matéria. O futuro da saúde reprodutiva das mulheres fica, a partir de agora, nas mãos dos governadores norte-americanos. O contraste nas reações espelha o quão fraturante é a decisão hoje tomada, que vem aprofundar o fosso entre democratas e republicanos e que tem o poder de originar protestos históricos nos EUA.

“Com pesar – por este tribunal, mas mais ainda pelos muitos milhões de mulheres americanas que hoje perderam uma proteção constitucional fundamental – discordamos” da decisão anunciada, apressaram-se a vincar os juízes democratas do Supremo, Stephen Breyer, Sonia Sotomayor e Elena Kagan.

Para estes juízes, “seja qual for o resultado das leis que aí vêm, um resultado da decisão de hoje é certo: a redução dos direitos das mulheres e do seu estatuto enquanto cidadãs livres e iguais”.

O presidente Joe Biden reagiu de forma firme, lamentando que “a vida e a saúde das mulheres desta nação estejam agora em risco”.

“O [Supremo] Tribunal retirou expressamente um direito constitucional já reconhecidodo ao povo americano. Não o limitou: simplesmente retirou-o. Este é um dia sombrio para o Tribunal e também para o país”.

Para Biden, “existe um equilíbrio muito delicado entre o direito da mulher de decidir sobre a sua gravidez e a capacidade do Estado de regulamentar a interrupção da gravidez”, tendo sido alcançado um consenso com a Roe v. Wade.

Agora, “num culminar de esforços deliberados de décadas”, esta lei foi revogada, naquele que “é um erro trágico” resultante de “uma ideologia extremista”, lamentou o líder.

“Mas isto não acaba aqui. Vocês podem ter a palavra final”, disse o presidente dirigindo-se ao povo norte-americano, que em novembro vota nas eleições intercalares. Quanto aos expectáveis protestos por todos os Estados Unidos, Biden apelou à calma.

“Peço a todos, independentemente do quão afetados são por esta decisão, que mantenham pacíficos os protestos. Pacíficos, pacíficos, pacíficos. Sem intimidações. A violência nunca é aceitável”, alertou.
"Decisões das mulheres não devem ser tomadas pela extrema-direita"
Nanci Pelosi, presidente da Câmara dos Representantes, condenou já a “cruel, escandalosa e devastadora decisão” de reverter a Roe v. Wade (decisão de 1973 que atribuiu às mulheres o direito constitucional ao aborto).

Notavelmente emocionada, a responsável alertou que "os republicanos radicais avançam com a sua cruzada para criminalizar a liberdade na saúde". "No Congresso - atentem nisto - os republicanos estão a planear a proibição do aborto a nível nacional. Não podemos permitir que tenham a maioria no Congresso para o fazer, mas este é o seu objetivo", declarou.

“Hoje, o Supremo Tribunal - controlado por republicanos - alcançou o objetivo obscuro e extremo do Partido Republicano de retirar às mulheres o direito de tomarem as suas próprias decisões de saúde reprodutiva. Por causa de Donald Trump, de Mitch McConnell, do Partido Republicano e da sua supermaioria no Supremo Tribunal, as mulheres americanas têm hoje menos liberdade do que tinham as suas mães”, lamentou Pelosi em comunicado.

A democrata referia-se ao facto de o Supremo Tribunal ter uma maioria republicana devido à decisão de 2020 de Donald Trump, então presidente, de nomear a conservadora Amy Coney Barrett para substituir a democrata Ruth Bader Ginsburg.

Pelosi garantiu que o Partido Democrático vai continuar a lutar para trazer de volta a Roe v. Wade. “As decisões fundamentais de saúde das mulheres devem ser tomadas por elas, com o apoio de médicos e de entes queridos – não devem ser ditadas por políticos de extrema-direita”, declarou.

O ex-presidente Barack Obama escreveu no Twitter que, “hoje, o Supremo Tribunal não só reverteu quase 50 anos de precedente, como relegou a mais intensamente pessoal decisão que alguém pode tomar em prol dos caprichos de políticos e ideólogos – atacando, assim, as liberdades essenciais de milhões de americanas”.
Republicanos aplaudem “segunda oportunidade para a vida”
Do lado republicano as reações foram, evidentemente, de contentamento. "Esta é uma vitória histórica para a Constituição e para os mais vulneráveis da nossa sociedade", considerou o líder republicano do Senado, Mitch McConnell, falando numa decisão "corajosa e correta".

O ex-vice-presidente Mike Pence disse por sua vez que, “hoje, a vida ganhou”. “Ao reverter a Roe v. Wade, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos deu ao povo americano um novo começo para a vida. Aplaudo a justiça da maioria [republicana], que teve a coragem de avançar com as suas convicções”.

Para o ex-vice de Donald Trump, “tendo sido dada esta segunda oportunidade à vida, agora não devemos descansar nem ceder até que a santidade da vida seja restaurada no seio da lei americana em todos os Estados do país”.
Nova Iorque “será sempre porto seguro” para quem procura aborto
Com a nação ainda abalada pela decisão histórica, alguns Estados democratas começam já a dar garantias do acesso ao aborto às mulheres que o procurem. Nova Iorque é um deles, com a procuradora-geral Letitia James a garantir que este Estado “será sempre um porto seguro para quem procura um aborto”.

“A decisão cruel do Supremo Tribunal de derrubar a Roe v. Wade é um dos momentos mais sombrios da história desta nação. Mas não tenham dúvidas: enquanto outros Estados retiram o direito fundamental à escolha, Nova Iorque sempre será um porto seguro para quem procura um aborto”, assegurou James no Twitter.

“Trabalharei incansavelmente para garantir que os mais vulneráveis e que as pessoas de Estados hostis tenham acesso a estes cuidados que salvam vidas. Todos nesta nação merecem o direito de tomar as suas próprias decisões sobre os seus corpos”, acrescentou.

Também no Estado de New Hampshire o governador Chris Sununu garantiu que, “independentemente da decisão do Supremo Tribunal, o acesso aos serviços [de realização de abortos em New Hampshire] vai continuar a ser segura, acessível e legal”.

No Michigan, a governadora Gretchen Whitmer considerou “devastadora” a situação e prometeu “continuar a lutar como os diabos para proteger o acesso ao aborto”.
Missouri proíbe aborto minutos depois da decisão do Supremo
O procurador-geral do Missouri, Eric Schmitt, anunciou esta tarde que o Estado se tornou “o primeiro do país a acabar efetivamente com o aborto”.

Esta rápida ação de Schmitt era já expectável e representa precisamente o maior receio dos defensores do aborto caso o Supremo Tribunal derrubasse a Roe v. Wade. Treze Estados norte-americanos tinham já preparadas leis anti-aborto que começam agora a entrar em vigor, proibindo quase totalmente o acesso à interrupção voluntária da gravidez.

Ao Missouri seguiu-se o Texas, com o procurador-geral Ken Paxton a anunciar em comunicado o encerramento do seu escritório na sexta-feira "em homenagem aos quase 70 milhões de bebés mortos dentro do útero desde 1973".

“A Roe v. Wade não tem absolutamente nenhuma relação com a Constituição dos EUA”, considerou Paxton. “Hoje, a questão do aborto volta aos Estados. E, no Texas, essa questão já foi respondida: o aborto aqui é ilegal. Estou ansioso por defender as leis pró-vida do Texas e as vidas de todas as crianças daqui para a frente”.

No Louisiana, o procurador-geral Jeff Landry já avançou que fará tudo o que está ao seu alcance “para garantir que as leis do Louisiana que foram aprovadas para proteger os bebés ainda por nascer sejam aplicadas, mesmo que tenhamos de voltar ao tribunal”.
Vaticano elogia decisão que “desafia o mundo inteiro”
A Academia para a Vida do Vaticano louvou esta sexta-feira a decisão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos sobre o aborto, considerando que esta "desafia o mundo inteiro" em questões de vida.

O Vaticano acredita ainda que a defesa da vida humana "não pode limitar-se aos direitos individuais", uma vez que a vida é uma questão de "amplo significado social".

“Este é um poderoso convite à reflexão sobre os valores da sociedade ocidental em relação à vida”, considera a Igreja Católica.
As opiniões dos grupos pró-escolha e pró-vida
Os ativistas pró-escolha também já começaram a reagir à decisão do Supremo. O presidente da organização Planned Parenthood Action Fund, Alexis McGill Johnson, garantiu que os defensores do acesso ao aborto não vão recuar e prometeu a “todas as pessoas que hoje estejam assustadas e zangadas” que “reconstruiremos e reivindicaremos a liberdade que é nossa”.

“Ao retirar os nossos direitos, o Supremo Tribunal e os políticos antiaborto também desencadearam um movimento. Somos um movimento que não comprometerá os nossos corpos, a nossa dignidade nem a nossa liberdade”, declarou o ativista em comunicado.

Por outro lado, os ativistas pró-vida vieram louvar a decisão. “Sentimo-nos empoderados por ir de Estado em Estado a lutar por aquilo em que acreditamos. Antes não podíamos sequer ter uma conversa nas legislaturas estaduais”, declarou Penny Nance, presidente do grupo anti-aborto Concerned Women for America.
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