Supremo Tribunal dos EUA anulou Roe v. Wade

por Graça Andrade Ramos - RTP
Supremo Tribunal dos EUA com cercas devido aos protestos contra decisão de reverter Roe vs Wade Reuters

Seis contra três juízes do Supremo Tribunal dos Estados Unidos decidiram pela reversão do direito constitucional das mulheres americanas ao aborto. A decisão foi recebida com aplausos e com protestos num país extremamente dividido sobre a questão.

A reversão do direito constitucional torna a legislação sobre o aborto uma questão individual de cada Estado.Roe v. Wade foi considerada uma vitória das mulheres em 1973 ao reconhecer o direito delas a abortar legalizando-o em todo o país.

A sua anulação cinco décadas depois é vista como uma vitória dos apoiantes do Partido Republicano e dos conservadores religiosos que pretendem restringir ou abolir o aborto.

A composição do atual Supremo Tribunal dos EUA, de maioria conservadora, abriu a porta à revisão da legislação. A decisão foi aprovada por seis juízes, um com declaração de voto, contra três.

O Supremo Tribunal foi chamado a pronunciar-se depois de uma decisão do Estado do Mississipi de proibir o aborto após as 15 semanas de gestação, considerada uma violação da lei federal.

Os juízes do Supremo Tribunal consideraram agora que Roe v. Wade, que permitiu o aborto antes de um feto ser viável fora do útero - entre as 24 e as 28 semanas de gestação - foi uma má decisão uma vez que a Constituição do país não menciona de forma especifica o direito ao aborto.

"A questão crítica era se a Constituição, bem entendida, conferia o direito a conseguir um aborto", escreveram os juízes, concluindo pela negativa.

A decisão não torna ilegais as interrupções da gravidez, mas devolve ao país a situação vigente antes do emblemático julgamento, quando cada Estado era livre para autorizar ou para proibir tal procedimento.

"É hora de cumprir a Constituição e devolver a questão do aborto aos representantes eleitos dos cidadãos", considera a decisão escrita por Samuel Alito.

Esta decisão coloca o Tribunal em desacordo com a maioria dos norte-americanos, que se mostraram a favor da preservação do processo Roe v. Wade, segundo uma sondagem recente.

Argumentos do Supremo
Na ausência de uma referência expressa na Constituição a este direito, os juízes analisaram a jurisprudência e os antecedentes históricos invocados para apoiar o argumento, especificamente o "direito à privacidade" de Roe v. Wade "oriundo da Primeira, Quarta, Quinta, Nôna e 14ª Emendas".

Condideraram que "os regulamentos e proibições ao aborto são reguladas pelo mesmo nível de revisão de outras medidas de saúde e segurança".

O juízes analisaram ainda os antecedentes históricos e culturais e se o direito ao aborto se poderia inscrever como componente essencial de "liberdade ordeira". "O Tribunal considera que o direito ao aborto não se encontra profundamente enraízado na História da Nação e na tradição", concluiram.

Também quanto à utilização da palavra "liberdade", que serviu de base a numerosas decisões judiciais estaduais para apoiar o direito ao aborto contra tentativas de o restringir, os juízes sustentaram que "o [Supremo] Tribunal deve resguardar-se da natureza humana natural de confundir a proteção concedida pela 14ª Emenda como o ardente ponto de vista do próprio Tribunal sobre a liberdade concedida aos americanos".

Razão que levou "o Tribunal a ser relutante em reconhecer direitos que não são mencionados na Constituição".

"O aborto apresenta uma questão profundamente moral. A Constituição não proibe os cidadãos de cada Estado de regulamentar ou de proibir o aborto", referiu ainda o documento aprovado esta sexta-feira.

"Roe e Casey [outra decisão de 1992 que confirmou Roe] arrogaram-se essa autoridade. O Tribunal anula essas decisões e devolve a autoridade aos cidadãos e aos seus representantes eleitos".
A decisão contudo não foi unânime.

Na rede Twitter, os três juízes que votaram contra a decisão manifestaram publicamente a sua contestação, que "lamentaram - por este Tribunal mas, ainda mais, pelos muitos milhões de mulheres americanas que perderam hoje uma proteção constitucional fundamental".
Fuga de informação
A decisão de anular Roe v. Wade não supreendeu, uma vez que já era esperada. Numerosos sinais indicavam para que lado soprava o vento histórico, já desde a nomeação de juízes conservadores por parte do Presidente Donald J.Trump.

No início de maio foi revelado pelo sítio de notícias Politico um projeto de decisão nesse sentido, escrito pelo juiz conservador Samuel Alito e datado de 10 de fevereiro.

Na altura, o Supremo Tribunal sublinhou que o projeto estava ainda a ser negociado e que a decisão, hoje conhecida, deveria ser publicada até 30 de junho. Apesar das palavras, a notícia provocou protestos a nível nacional dos apoiantes do direito ao aborto. O processo Roe v. Wade sustentava há quase meio século que a Constituição dos EUA protegia o direito da mulher a fazer um aborto.

Alito argumentou que a decisão era "totalmente sem mérito desde o início". "Acreditamos que Roe v. Wade deve ser anulado", defendia o juiz, para quem o direito ao aborto "não está protegido por qualquer disposição da Constituição" norte-americana.

Desde setembro, o novo Tribunal tinha enviado vários sinais a favor dos opositores do aborto.

Primeiro, recusou-se a impedir a entrada em vigor de uma lei do Texas a limitar o direito ao aborto às primeiras seis semanas de gravidez, por oposição a dois trimestres, ao abrigo do atual quadro legal.

Durante uma revisão de dezembro de uma lei do Mississippi, também a questionar o prazo legal para o aborto, a maioria dos juízes do Supremo deixaram claro que estavam preparados para alterar ou mesmo anular, por completo, o princípio de Roe v. Wade.
Era "um crime"
Ao fundamentaram a sua decisão de anular Roe v. Wade, os juízes concluíram que "a 14ª Emenda claramente não protege o direito ao aborto."

"Até à última parte do século XX, não existia apoio na legislação norte-americana a favor de um direito constitucional a obter um aborto. Nenhuma provisão constitucional estadual havia reconhecido tal direito. Até alguns anos antes de Roe v. Wade, nenhum tribunal federal ou estatal havia reconhecido tal direito. Nem qualquer estudo universitário", argumentaram.

"De facto, o aborto tinha sido de longa data considerado um crime em pelo menos alguns estados de gestação e era considerado ilegal e poderia ter consequências graves em todos as fases. A lei americana seguia a lei comum até que uma onda de restrições estatutárias nos anos de 1800 expandiram ao aborto responsabilidades criminais", frisaram no documento.

"Quando a 14ª Emenda foi adotada, três quartos dos Estados consideravam o aborto um crime em qualquer estado da gravidez. Este consenso durou até ao dia em que foi decidido Roe".

Já quanto ao argumento de "direito pessoal e privado", o Tribunal analisou os argumentos invocados por outras decisões judiciais [nomeadamente em Roe v. Wade e Planned Parenthood v. Casey, que em 1992 ratificou o direito constitucional], quanto à liberdade de "tomar escolhas pessoais e conscientes" que são "centrais à dignidade e autonomia pessoais".

Na sua decisão, os juízes consideraram que "Roe e Casey estabeleceram cada qual um equilíbrio diferente entre os interesses de uma mulher que quer fazer um aborto e os interesses do que determinaram vida potencial. Mas os cidadãos dos vários Estados podem avaliar estes interesses de forma diversa", concluindo os juízes que o entendimento histórico de "liberdade ordeira" não previne a "forma como os representantes eleitos decidam de que modo deve ser regulado o aborto".Também as conclusões dos magistrados apontaram que não existe "direito arreigado" ao aborto em precedentes jurídicos, precisamente nalguns argumentos invocados em Roe e Casey, como o "direito à autonomia" e "à definição pessoal do conceito de existência".

"Estes critérios [de autonomia pessoal] entendidos de uma forma mais abrangente, poderiam autorizar direitos fundamentais ao uso ilícito de drogas, à prostituição e semelhantes", argumentaram.

"O que distingue claramente o direito ao aborto dos direitos reconhecidos nos casos de Roe e Casey, sustenta-se em algo que ambas aquelas decisões reconheceram: o aborto é diferente porque destrói aquilo que Roe denomina vida potencial e o que a lei contestada neste caso [decidida pelo Estado do Mississipi] chama ser humano não nascido, referiram os juízes, notando que "nenhuma das outras decisões citadas por Roe e Casey envolviam as questões críticas morais colocadas pelo aborto".

"Estes casos não apoiam o direito a conseguir um aborto e a conclusão do Tribunal de que a Constituição não confere tal direito não os prejudica de qualquer modo".
Influência conservadora
Previsivelmente, esta decisão irá dividir os Estados Unidos em dois, entre os Estados onde a interrupção voluntária da gravidez será possível e aqueles em que será proibida ou restringida.

Durante os seus quatro anos no Governo, o Presidente Donald Trump e os republicanos do Senado instalaram três juízes conservadores no Supremo, solidificando a maioria conservadora na mais alta instância do poder judiciário norte-americano.

Os juízes Neil Korsch, Brett Kavanaugh e Amy Connie Barrett, nomeados por Trump, enfrentam agora acusações de terem enganado políticos e o público, uma vez que nas suas audiências de confirmação do Senado foram questionados sobre a questão do aborto e deram a entender ao público que não votariam para revogar a decisão Roe vs Wade.

Seis dos nove juízes atuais do Supremo foram nomeados por Presidentes republicanos. Os outros três foram escolhidos por chefes de Estado democratas.

(com agências)

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