"Desumanização". Palestinianos "algemados e de olhos vendados" em hospital israelita

por Cristina Sambado - RTP
Hatem Khaled - Reuters

Médicos israelitas revelaram à BBC que os detidos palestinianos de Gaza são regularmente mantidos algemados às camas do hospital, vendados, por vezes nus, e obrigados a usar fraldas - uma prática que, nas palavras de uma das fontes da estação pública britânica, equivale a tortura.

Uma fonte anónima explicou em pormenor como os procedimentos num hospital militar eram "rotineiramente" efetuados sem analgésicos, causando "uma quantidade inaceitável de dor" aos detidos.

Outra fonte afirmou que os analgésicos foram utilizados "seletivamente" e "de forma muito limitada" durante um procedimento médico invasivo num detido de Gaza num hospital público.

O delator afirmou ainda que os doentes em estado crítico detidos em instalações militares improvisadas não estavam a receber tratamento adequado devido à relutância dos hospitais públicos em transferi-los e tratá-los.

Um detido, levado de Gaza para interrogatório pelo exército israelita e mais tarde libertado, afirmou à BBC que uma das suas pernas teve de ser amputada porque lhe foi negado tratamento para uma ferida infetada.

No entanto, um dos médicos que trabalha no hospital militar no centro das alegações negou que as amputações fossem o resultado direto das condições aí existentes, mas descreveu os algemas e outras restrições utilizadas pelos guardas como "desumanização".

O exército israelita afirmou que os detidos nas instalações eram tratados "de forma adequada e cuidadosa". E não não divulga pormenores sobre os detidos que mantém em cativeiro.Os dois denunciantes com quem a BBC falou estavam em posições de avaliar o tratamento médico dos detidos. Ambos pediram o anonimato devido à sensibilidade do assunto entre os seus colegas.

Os relatos são apoiados por um relatório, publicado em fevereiro pelos Médicos para os Direitos Humanos em Israel, que afirmava que as prisões civis e militares de Israel se tinham tornado "um aparelho de retribuição e vingança" e que os direitos humanos dos detidos estavam a ser violados - em particular o seu direito à saúde.

As preocupações com o tratamento dos detidos doentes e feridos centraram-se num hospital militar de campanha, na base militar de Sde Teiman, no sul de Israel.

O hospital de campanha foi criado pelo Ministério da Saúde israelita após os ataques do Hamas, especificamente para tratar os detidos de Gaza, depois de alguns hospitais públicos e funcionários terem manifestado relutância em tratar os combatentes capturados no dia dos ataques do Hamas.

Desde então, as forças israelitas têm vindo a reunir um grande número de pessoas de Gaza e a levá-las para bases como Sde Teiman para serem interrogadas. Os suspeitos de combaterem pelo Hamas são enviados para centros de detenção israelitas; outros são libertados e regressam a Gaza sem qualquer acusação.
Algemados e com os olhos vendados
Os pacientes do hospital Sde Teiman são mantidos com os olhos vendados e permanentemente algemados às suas camas pelos quatro membros, segundo os relatos de vários médicos responsáveis pelo tratamento dos pacientes. São também obrigados a usar fraldas, em vez de irem à casa de banho.

Em resposta, o exército israelita declarou que o algemamento dos detidos no hospital de Sde Teiman era "examinado individual e diariamente e efetuado nos casos em que o risco de segurança o exigia".

Segundo as forças israelitas, as fraldas eram usadas "apenas para os detidos que foram submetidos a procedimentos médicos para os quais os seus movimentos são limitados".

Mas testemunhas, incluindo um dos anestesistas da unidade hospitalar, Yoel Donchin, afirmam que tanto o uso de fraldas como o de algemas são universais na ala hospitalar.

"O exército cria o paciente para ser cem por cento dependente, como um bebé", afirmou Yoel Donchin. "É algemado, usa fraldas, precisa de água, precisa de tudo - é a desumanização".
O anestesista afirmou que não havia uma avaliação individual da necessidade de imobilização e que mesmo os doentes que não podiam andar - por exemplo, os que tinham amputações de pernas - eram algemados à cama. Uma prática que descreve como "estúpida".

Duas testemunhas que estiveram nas instalações nas primeiras semanas da guerra de Gaza disseram à BBC que os doentes eram mantidos nus debaixo dos cobertores.

Um médico com conhecimento das condições no local frisou que o facto de os pacientes serem mantidos algemados às camas durante muito tempo causaria "um grande sofrimento, um sofrimento horrível", descrevendo-o como "tortura" e dizendo que os pacientes começariam a sentir dores ao fim de algumas horas.

Outros médicos falaram do risco de danos nos nervos a longo prazo.

As imagens dos detidos de Gaza libertados após o interrogatório mostram ferimentos e cicatrizes à volta dos pulsos e das pernas. No mês passado, o jornal diário israelita Haaretz publicou alegações feitas por um médico do hospital de Sde Teiman, segundo as quais tinham sido amputadas as pernas de dois prisioneiros, devido a ferimentos provocados por algemas.

As alegações foram feitas, segundo o jornal, numa carta enviada pelo médico aos ministros do governo e ao procurador-geral, na qual essas amputações eram descritas como "infelizmente um acontecimento de rotina".

Yoel Donchin acrescentou que as amputações não foram o resultado direto das algemas e que envolveram outros fatores - como infeções, diabetes ou problemas nos vasos sanguíneos.

As diretrizes médicas israelitas estipulam que nenhum paciente deve ser imobilizado, a menos que haja uma razão específica de segurança para o fazer, e que deve ser utilizado o nível mínimo de imobilização. Após uma visita ao local, o responsável pelo Conselho de Ética Médica israelita, Yossi Walfisch, realçou que todos os pacientes tinham o direito de ser tratados sem serem algemados, mas que a segurança do pessoal prevalecia sobre outras considerações éticas.

"Os terroristas recebem tratamento médico adequado", afirmou numa carta publicada, "com o objetivo de reduzir ao mínimo as restrições e manter a segurança do pessoal de tratamento".

Muitos habitantes de Gaza detidos pelo exército israelita são libertados sem acusação após o interrogatório.

Segundo o anestesista, que exigiu que as algemas fossem retiradas antes de qualquer intervenção cirúrgica, as queixas do pessoal médico do hospital de Sde Teiman conduziram a mudanças, incluindo uma mudança para algemas menos apertadas.

"Não é agradável trabalhar lá", sublinhou. "Sei que é contra o código de ética tratar alguém algemado na cama. Mas qual é a alternativa? Será melhor deixá-lo morrer? Não me parece”.


No entanto, os relatórios sugerem que as atitudes do pessoal médico em relação aos detidos variam muito, tanto nos hospitais militares como nos civis.
Níveis inaceitáveis de dor

Uma fonte que trabalhou no hospital de campanha de Sde Teiman em outubro, pouco depois dos ataques do Hamas a Israel, descreveu à BBC casos em que os pacientes receberam quantidades inadequadas de analgésicos, incluindo anestésicos.

Um médico recusou o seu pedido para dar analgésicos a um doente idoso, que tinha uma ferida aberta resultante de uma amputação recente e infetada.

"O doente começou a tremer de dor e eu parei e disse-lhe: ‘não podemos continuar, tenho de o anestesiar’", contou. Contudo, era demasiado tarde para a administrar.

A testemunha acrescentou que tais procedimentos eram "efetuados por rotina sem analgesia", o que resultava em "uma quantidade inaceitável de dor".

Noutra ocasião, foi-lhe pedido por um presumível combatente do Hamas que intercedesse junto da equipa cirúrgica para aumentar os níveis de morfina e anestesia durante repetidas cirurgias.

A mensagem foi transmitida, mas o combatente voltou a recuperar a consciência durante a operação seguinte e estava a sentir muitas dores. A testemunha disse que tanto ele como outros colegas sentiram que se tratava de um ato deliberado de vingança.
Em resposta a estas alegações, o exército afirmou que a violência contra os detidos era "absolutamente proibida" e que informava regularmente as suas forças sobre a conduta que lhes era exigida. Quaisquer pormenores concretos de violência ou humilhação seriam examinados, assegurou.
Um segundo informador disse que a situação em Sde Teiman era apenas uma parte do problema, que se estendia aos hospitais públicos. A BBC chama-lhe "Yoni" para proteger a sua identidade.

Nos dias que se seguiram aos ataques de 7 de outubro, afirmou Yoni, os hospitais do sul de Israel foram confrontados com o desafio de tratar tanto os combatentes feridos como as vítimas feridas, muitas vezes nos mesmos serviços de urgência.

Os homens armados do Hamas tinham acabado de atacar as comunidades israelitas ao longo da fronteira com Gaza, matando cerca de 1.200 pessoas e raptando outras 250.

"O ambiente era extremamente emocional", relata Yoni. "Os hospitais estavam completamente sobrecarregados, tanto a nível psicológico como em termos de capacidade".

"Houve casos em que ouvi o pessoal a discutir se os detidos de Gaza deviam receber analgésicos. Ou formas de efetuar certos procedimentos que podem transformar o tratamento em castigo".

Conversas deste tipo não são invulgares, acrescentou ainda que os casos concretos pareçam muito raros.

"Tenho conhecimento de um caso em que os analgésicos foram usados seletivamente, de forma muito limitada, durante um procedimento", declarou à BBC.

"O paciente não recebeu qualquer explicação sobre o que se estava a passar. Portanto, se juntarmos o facto de uma pessoa estar a ser submetida a um procedimento invasivo, que envolve até incisões, e não sabe disso, e está de olhos vendados, então a linha entre tratamento e agressão torna-se mais ténue".
A BBC pediu Ministério da Saúde que respondesse a estas alegações, mas foi encaminhada para as Forças de Defesa de Israel (IDF).
Yoni revelou ainda que o hospital de campanha de Sde Teiman não estava equipado para tratar pacientes gravemente feridos, mas que alguns dos detidos nos primeiros meses da guerra tinham ferimentos de bala recentes no peito e no abdómen.

O denunciante disse que pelo menos um homem gravemente doente foi mantido ali devido à relutância dos hospitais públicos em aceitar a sua transferência para tratamento, acrescentando que os médicos da base estavam "frustrados" com a situação.

Sufian Abu Salah, um taxista de 43 anos de Khan Youis, faz parte das dezenas de homens detidos durante as rusgas do exército israelita que foram levados para uma base militar para interrogatório.

Segundo Sufian Abu Salah , os soldados espancaram-no durante a viagem e também à chegada à base, onde lhe foi negado tratamento para uma pequena ferida no pé, que acabou por infetar.

"A minha perna infetou e ficou azul e mole como uma esponja", revelou à BBC.

Depois de uma semana, acrescentou, os guardas levaram-no ao hospital, batendo-lhe na perna ferida durante o trajeto. As duas operações a que foi submetido para limpar a ferida não funcionaram.

"Depois, levaram-me para um hospital público, onde o médico me deu duas opções: a minha perna ou a minha vida."

O taxista escolheu a vida. Depois de lhe terem amputado a perna, foi enviado de volta para a base militar e mais tarde libertado em Gaza.

"Este período foi uma tortura mental e física", disse. "Não o consigo descrever. Fui detido com duas pernas e agora só tenho uma. De vez em quando, choro".

As IDF não responderam às alegações específicas sobre o tratamento de Sufian, mas disseram que as alegações de violência contra ele durante a sua prisão ou detenção "eram desconhecidas e serão examinadas".

Nos dias que se seguiram ao ataque de 7 de outubro, o Ministério da Saúde de Israel emitiu uma diretiva segundo a qual todos os detidos de Gaza deveriam ser tratados em hospitais militares ou prisionais, tendo o hospital de campanha de Sde Teiman sido criado especificamente para desempenhar esse papel.

A decisão mereceu o apoio de muitos médicos israelitas, tendo Yossi Walfisch elogiado a decisão como a solução para "um dilema ético", que retiraria ao sistema público de saúde a responsabilidade pelo tratamento dos "terroristas do Hamas".

Outros clínicos apelaram ao encerramento do Sde Teiman, descrevendo a situação como "um ponto baixo sem precedentes para a profissão médica e para a ética da profissão”.

"O meu receio é que o que estamos a fazer em Sde Teiman não permita um regresso à situação anterior", disse um médico à BBC. "Porque as coisas que nos pareciam irracionais antes, vão parecer razoáveis quando esta crise acabar."

Yoel Donchin, o anestesista, disse que a equipa médica do hospital de campanha se juntava por vezes para chorar sobre a situação no local.

"No momento em que o nosso hospital fechar", afirmou, "vamos celebrar".
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