França e Reino Unido enviaram esta quinta-feira navios patrulha para a Ilha de Jersey. A presença militar, dissuasora e de vigilância, foi justificada como prevenção, após meia centena de barcos de pesca franceses terem invadido as águas em torno da ilha, a maior do Canal da Mancha, durante várias horas.
Para o professor Michael Clarke, ex-diretor do britânico RUSI, o Instituto Real dos Serviços Unidos para Estudos de Defesa e Segurança, o Governo do Reino Unido “sentiu que necessitava de um gesto de força” face a Paris.
O envio dos navios de vigilância costeira franceses, o Athos, da polícia marítima, e o Themis, dos serviços navais, foi uma resposta à iniciativa dos seus próprios pescadores, para evitar eventuais problemas mais sérios, mas também ao envio dos navios britânicos, os HMS Severn e HMS Tamar.
O Athos e o Themis colocaram-se ao largo em águas francesas, prontos a intervir.
O impasse requeria pinças, considerava o professor durante a tarde. “Temos de ser cautelosos – não queremos acidentes, nem queremos escalar a situação, que tem de ser resolvida pela via negocial”.
Este foi o primeiro incidente grave após o Brexit e relembra velhas rivalidades anglo-francas apaziguadas nas últimas décadas pela participação comum em instâncias europeias.
Ao fim do dia, o primeiro-ministro britânico anunciou o regresso dos dois navios
enviados para a ilha do Canal da Mancha, devido à desmobilização dos
barcos franceses várias horas antes.
Boris Johnson tweetou o seu aplauso à rápida intervenção dos navios britânicos e referiu com agrado, "que a situação em Jersey foi resolvida".
"O Reino Unido irá sempre apoiar resolutamente o povo de Jersey", acrescentou.
Direitos de pescas não respeitadosNas redes sociais alguns britânicos sublinharam a coincidência do braço de ferro em dia de eleições locais. "Que abuso de poder", comentaram.I'm pleased that the situation in Jersey has been resolved. Thank you to the @RoyalNavy for their swift response. The UK will always stand resolutely by the people of Jersey.https://t.co/8KR99jVVK0
— Boris Johnson (@BorisJohnson) May 6, 2021
O pico da crise pode ter sido ultrapassado, mas o problema que lhe deu origem está longe de estar resolvido.
A França acusou nos últimos dias o Reino Unido de pretender impor aos pescadores franceses uma série de novas exigências “que não foram concertadas, discutidas nem notificadas antes” no quadro do acordo do Brexit, que entrou plenamente em vigor sexta-feira passada.
A crise foi precisamente provocada pelo anúncio do governo de Jersey nesse dia, sobre a necessidade dos barcos franceses terem agora de requerer licenças para continuar a operar nas suas águas.
A lista apresentada pelos britânicos previa a emissão de licenças a uns meros 41 navios franceses, entre 344 pedidos de acesso feitos nos últimos meses. E entre os 41, 17 tinham de provar de forma mais pormenorizada o direito a manterem a atividade.
Os pescadores normandos e bretões reagiram indignados contra as restrições impostas a barcos e tripulações que pescam nas águas da ilha há “dezenas de anos”.
Bruxelas ecoou Paris e denunciou as “condições adicionais” apostas às novas licenças como uma quebra do acordo de comércio entre os britânicos e a União Europeia pós-Bréxit.
“Nós… indicámos ao Reino Unido que, nesta instância, as provisões do Acordo de Comércio e Cooperação EU/UK, acordadas recentemente, não foram aplicadas, não foram respeitadas”, referiu uma porta-voz da Comissão.
França ameaça retaliar
O secretário de Estado francês para os Assuntos Europeus, Clément Beaune, insistiu junto do seu homólogo britânico numa “aplicação rápida e completa do acordo". "Nada além do acordo e todo o acordo”, sublinhou. Já as "manobras" navais britânicas "não nos devem impressionar", afirmou.
Também a ministra do Mar francesa, Annick Girardin, apelou “a que as autoridades britânicas recuem na sua decisão”. Terça-feira já tinha admitido recorrer a “medidas de retaliação” em caso de obstinação britânica, aludindo a eventuais repercussões “no transporte de eletricidade por cabo submarino”, que alimenta Jersey a partir de França.
A resposta veio do próprio primeiro-ministro, Boris Johnson, que “reiterou o apoio indefetível a Jersey”, depois de Whitehall “denunciar” as ameaças francesas que considerou "claramente inaceitáveis e desproporcionadas".
Bloqueio a Jersey
As informações mostraram estar corretas.
Às primeiras horas da manhã desta quinta-feira, uma flotilha de meia centena de barcos de pesca partiu das costas bretãs e normandas no nordeste de França, "vindo de todos os lados", para assumir calmamente posição diante do porto de St-Helier, capital de Jersey, em massa mas sem colocar entraves à navegação.
As autoridades de Jersey decidiram não autorizar a navegação a nenhum outro navio, com receio de incidentes, fortuitos ou não, devido à elevada densidade dos barcos.
A presença dos franceses durou algumas horas, tendo o regresso aos portos de origem sido iniciado ao princípio da tarde.
“A questão foi entregue aos políticos”, afirmou Dimitri Rogoff, presidente do Comité Regional de Pescas da Normandia, após o protesto. “A demonstração de força está concluída. Isto não foi um acto de guerra. Foi uma ação de protesto”. Uma reunião com um ministro do governo autónomo da ilha britânica não desfez o impasse. Os responsáveis de Jersey “mantêm-se nas mesmas posições” revelou o francês. “Agora cabe aos ministros entenderem-se” rematou, referindo-se às negociações em curso.
"Não cabe aos pescadores ir fazer um bloqueio de Jersey para conseguir o que querem", reconheceu Rogoff. "Agora, se não ganharmos a causa, é preciso que a ministra lhe corte a luz", acrescentou, lembrando a ameaça de Annick Girardin.
Em Jersey, o protesto dos franceses foi visto com grande receio.
"Estamos completamente desprotegidos. Não temos aqui nada exceto alguns agentes de polícia. Não temos um barco de polícia ou da Armada, não temos nada para nos proteger", afirmou um pescador à Agéncia PA.
"Os franceses podem ser hostis. Todos os nossos meios de subsistência estão naquele porto e se quisessem poderiam fazer muitos estragos", acrescentou.
Embaraço"Estamos completamente desprotegidos. Não temos aqui nada exceto alguns agentes de polícia. Não temos um barco de polícia ou da Armada, não temos nada para nos proteger", afirmou um pescador à Agéncia PA.
"Os franceses podem ser hostis. Todos os nossos meios de subsistência estão naquele porto e se quisessem poderiam fazer muitos estragos", acrescentou.
Para o professor Michael Clarke, a situação é um verdadeiro embaraço para os dois países, parceiros na NATO e num tratado bilateral de defesa e Cooperação. E a resposta está a ser desnecessariamente musculada.
“Ambas as partes, aliadas noutros aspetos, ficam muito mal na fotografia”, considerou, reconhecendo que as relações franco-britânicas na área da Defesa “não têm sido grande coisa recentemente”.
O analista considerou muito má a ideia de colocar meios militares a proteger a competição na exploração das pescas. Estes navios patrulha “estão no mar para realizar detenções, não para lutar num conflito ou uns contra outros”, disse.
Tom Sharpe, capitão do HMS Lindisfarne entre 1999 e 2000, considerou contudo muito normal a missão atribuída aos HMS Severn e Tamar. “É muito, muito comum” e “uma tarefa naval antiga que ocorre diariamente”, disse.
“Em termos militares, os navios vão manter-se muito calmos quanto a esta questão”, acrescentou, fazendo notar que as armas dos britânicos estiveram tapadas e que só a mera presença militar na área obrigou os Governos respetivos a dialogar.
“Esse é o papel chave destes vasos de guerra, uma das suas funções principais é a proteção dos bancos de pesca”, fez notar. “Estão em missão pescas, como lhe chamamos, não são necessárias armas”.
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