Brexit. Pescadores contra proposta de Barnier nas pescas para alcançar acordo

por Graça Andrade Ramos - RTP
Acordo entre a União Europeia e o Reino Unido para o pós Brexit ameaça soçobrar devido ao sector das pescas Reuters

Esgotam-se as últimas horas de negociações para um acordo entre a União Europeia e o Reino Unido pós-Brexit. Paris admite prolongar as discussões, enquanto o Parlamento Europeu exige uma conclusão até "domingo à noite", para ter tempo de debater e aprovar o novo texto antes do final do ano, de forma a que o acordo possa entrar em vigor logo dia 1 de janeiro de 2021.

O ano de 2020 não foi fácil para ninguém, mas para os negociadores dos dois lados do Canal da Mancha, e em especial para os pescadores, termina em verdadeiro pesadelo.

A pedrinha no sapato que impede um aperto de mão está na divisão do pescado de águas britânicas, avaliadas em cerca de 650 milhões de euros anuais, e na duração do período de adaptação da indústria pesqueira à nova realidade.

Bruxelas aceitava renunciar a até 20 por cento das quotas de pesca dos barcos da União Europeia - incluindo os barcos irlandeses - e um período de adaptação de sete anos. Os britânicos têm feito finca pé para ficar com 60 por cento do pescado das suas águas, dando apenas três anos ao setor para se adaptar.Londres fez bandeira da soberania das suas águas, Paris recusa sacrificar o sector de pescas francês às exigências britânicas. E a pedrinha de 650 milhões bloqueia todo um acordo orçado em milhares de milhões de trocas comerciais.

O negociador europeu, Michel Barnier, tirou da cartola este sábado mais uma proposta para tentar desbloquear o impasse. Um corte de 25 por cento nas quotas, uma proposta avaliada em 160 milhões de euros a favor da industria pesqueira britânica, por um período de seis anos.

A proposta de Barnier, referida como final, iria implicar cortes de 47 milhões de euros nos stocks de cavala enquanto o linguado no Mar do Norte iria diminuir em 12 milhões de euros, o arenque em oito milhões e o camarão em cinco milhões de euros.

Enquanto os países da UE com maiores frotas pesqueiras têm tentado chegar a acordo entre si para partilhar os stocks das suas águas de forma a que nenhum país fique seriamente prejudicado pela perda do pescado britânico, os armadores dos países imediatamente mais afetados estão a ver a vida seriamente ameaçada.
Pescas irlandesas à beira do abismo
A indústria pesqueira irlandesa já fez soar os alarmes quanto à nova proposta de Barnier. Seria a "morte do setor" do país, um "desastre sem remédio", reagiu Seán O'Donoghue, diretor-executivo da Organização dos Armadores de Killybegs, a maior da República da Irlanda, representante dos pescadores de Donegal e membro da Federação dos Pescadores Irlandeses, que agrupa os profissionais de 90 por cento dos barcos de pesca de 12 metros do país.

Entrevistado pelo The Irish Times, O'Donoghue lamenta que o seu setor tenha sido "atirado aos leões" nas negociações. A indústria pesqueira irlandesa seria a mais prejudicada pelo acordo proposto pela UE, afirma. "Estamos a ser o cordeiro do sacrifício nestas conversações". "Para nós isto equivale a um não acordo", resume.A concessão de 25 por cento das quotas de pesca dá "realmente" demasiado ao Reino Unido, antevendo a perda de 5.000 a 6.000 empregos na Irlanda. "Isto é o toque de finados da indústria pesqueira", referiu O'Donoghue.

"A estrutura do acordo, tal como está agora irá implicar a ruína do setor de marisco irlandês, que apoia diretamente mais de 16 mil empregos e tem um peso superior a 1.2 mil milhões de euros na economia irlandesa", sublinhou, apelando ao Governo irlandês para defender a sua indústria pesqueira.

"A nossa indústria está, literalmente e metaforicamente à beira do abismo e apesar das promessas feitas várias vezes, seremos vendidos mais para a frente", afirmou. "O que eu mais queria evitar era uma situação de não acordo em benefício de todos os nossos pescadores, mas o acordo que está a ser proposto é igualmente mau. Estamos a enfrentar cortes terríveis e sem precedentes nos nossos stocks de marisco, de peixe brancos e de espécies pelágicas".
Holandeses temem perdas de 70%
Outros preocupados são os pescadores holandeses, que arriscam ter de deixar de pescar em águas que usam há mais de 400 anos. "Gostaríamos de continuar por mais 400", afirmou Arnout Langerak, de 47 anos, diretor da companhia de pescas Cornelis Vrolijk, na mesma família há cinco gerações. O setor de pescas holandês vale cerca de 4.5 mil milhões de euros anuais e agrante a sobrevivência de centenas de pequenas aldeias ao longo da costa, sustentando cerca de 7.000 empregos espalhados em cerca de 260 empresas.

Langerak critica a teimosia britânica. "Os brits comem sobretudo peixe com batatas fritas, nada de arenque, ou cavala, que nós comemos. Andam a comer bacalhau. É típico deles quererem mais da quota do que ele próprios não comem".

Os arrastões congeladores holandeses apanham 70 por cento do seu peixe em águas britânicas, lembrou Gerard van Balsfoort, 68 anos e presidente da Associação holandesa do setor para os peixes pelágicos. "Um não acordo implica não ter acesso, ou seja, a perda de 70 por cento da faturação para as empresas holandesas. Isto é devastador", afirma.

Os arrastões de peixe pelágico apanham espécies de superfície, como o arenque, a cavala e a sardinha, e congelam-nas até chegar ao porto. A falta de um acordo ameaça a sobrevivência de famílias holandesas que se dedicam à pesca há gerações e que exigem um acordo justo.

"Os pescadores holandeses estão habituados a pescar nas águas britânicas há centenas de anos e não querem por isso deixar de o fazer", referiu Van Balsfoort. "O que querem é continuar a ter acesso às águas de pesca britânicas. Por isso o acesso aos mercados do Reino Unido é essencial para os pescadores europeus e o acesso ao mercado da UE é vital para os pescadores britânicos. E esse é o acordo do Brexit a fazer nas pescas", alvitra.
Acordo até domingo ou talvez não
Os números para a partilha continuam a variar, para lá e para cá e a qualquer momento pode dar-se o desenlace, referem várias fontes ligadas às negociações. O acordo tem de ficar concluído antes do Reino Unido abandonar definitivamente a União Europeia, a 31 de dezembro de 2020, às 23h00 GMT e a tempo do Parlamento Europeu o examinar e ratificar, com tempo suficiente para poder entrar em vigor no primeiro dia do novo ano.

O PE tem recusado admitir a possibilidade do acordo poder entrar em vigor de forma provisória, uma opção já admitida por vários Estados membros. Domingo à meia-noite, referem os deputados, tem de estar tudo decidido.

Já o secretário francês para os Assuntos Europeus, Clément Beaune, admitiu este sábado que o período poderá alargar-se além do fim-de-semana.

"Vamos tentar avançar nas próximas horas" mas "é normal não dizer oiçam, é domingo à noite e paramos tudo e por isso sacrificamos tudo", reagiu Beaune ao ultimatum do PE. "Não faremos isso, porque quando o que está em jogo são sectores inteiros, como a pesca, são as condições de concorrências para as nossas empresas que se avaliam", sublinhou em entrevista à France Inter.

"O Parlamento quer um acordo domingo mas Michel Barnier nao pode ficar de mãos atadas pois os britânicos tentariam tirar partido disso", fez notar o francês.


A União Europeia não quer ver surgir mesmo ao lado uma economia fora das suas normas ambientais, sociais, fiscais ou solidárias, e que se dedique a uma concorrência desleal. Nos últimos dias as partes aproximaram-se de acordar as condições de concorrência igualitárias e as regras de regulamento de divergências.

A partilha das pescas em águas britânicas continua a ameaçar todo o processo.

Sem acordo comercial, as trocas entre a UE e Londres irão seguir as regras da Organização Mundial do Comércio, que implicam direitos aduaneiros e quotas, com um impacto muito duro para economias fragilizadas pela pandemia de Covid-19.

Um relatório do Parlamento britânico considerou que o país não está suficientemente preparado para as perturbações esperadas nos portos e as repercussões esperadas em questões de segurança.

Londres tem estudado cenários de bloqueios marítimos e os empresários britânicos tentam encher os armazéns na antevisão de penúria em caso de não acordo, levando a quilómetros de filas de camiões nas estradas em torno de Dover.
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