Dissidentes e refugiados em risco. Interpol criticada por permitir regresso da Síria à organização

por Joana Raposo Santos - RTP
Em 2011, quando eclodiu a guerra civil na Síria, a Interpol decidiu aplicar "medidas de correção" ao regime de Bashar al-Assad. Agora, essas medidas foram levantadas. Foto: Omar Sanadiki - Reuters

A Interpol, organização intergovernamental de combate ao crime, está a ser duramente criticada por ter permitido que a Síria voltasse a juntar-se à sua rede de comunicações. Ativistas e advogados acreditam que esta decisão concede a Damasco novas e poderosas ferramentas para perseguir refugiados, opositores do regime e dissidentes sírios.

Em 2011, quando eclodiu a guerra civil na Síria, a Interpol decidiu aplicar “medidas de correção” ao regime de Bashar al-Assad, suspendendo a sua ligação à entidade. Nessa altura, a Síria ficou impedida de aceder às bases de dados da Interpol e de comunicar com outros membros desta organização policial sobre pedidos de detenção internacionais.

Na semana passada, o diário The New Arab avançou que a Interpol “concedeu a Damasco o acesso à rede segura de comunicações da polícia global”. A Síria volta, assim, a conseguir aceder às bases de dados da Interpol e comunicar com outros membros a partir dos canais da organização.

Passa ainda a conseguir emitir mandados de detenção internacionais, os chamados “alertas vermelhos”, por todos os 194 países-membros da Interpol. Estes alertas vermelhos permitem aos países localizar e prender indivíduos, sendo que, em alguns casos, essas detenções podem levar a extradições.

Os membros da organização podem também lançar as chamadas “difusões”, mandados de detenção solicitados diretamente a países ou regiões específicas, sem terem de passar por quaisquer processos de verificação pela própria Interpol.
“Sistemas da Interpol são opacos e sem qualquer supervisão”
Com todas restrições à Síria levantadas, peritos da área da advocacia e ativistas temem que os cidadãos que fugiram à guerra nesse país sejam detidos e extraditados. Receiam ainda que os requerentes de asilo vejam os seus processos dificultados pelas autoridades sírias.

“A Interpol é maior do que as Nações Unidas, portanto imaginem as ferramentas que dá a um país não-democrático a nível da perseguição dos seus oponentes”, alertou ao New Arab o avogado Yuriy Nemets, sediado em Washington, que representa vítimas do “abuso da Interpol”.

Já Toby Cadman, advogado britânico que trabalha com crimes de guerra sírios, diz estar “profundamente desapontado e preocupado”, uma vez que “os sistemas da Interpol são opacos, sem qualquer supervisão ou atribuição de responsabilidades e constantemente utilizados por países como a Síria, que têm pouca consideração pelos Direitos Humanos”.

“É bastante simples emitir um alerta vermelho. Não é necessário fornecer muita informação e a Interpol tem falta de verbas e de funcionários, portanto não revê nada como deveria. Por outro lado, a remoção de um alerta vermelho, mesmo em países europeus como o Reino Unido ou os Países Baixos, pode ser muito lenta e difícil”, explicou o advogado ao Guardian.
Refugiados podem perder estatuto e ser devolvidos à Síria
Efetivamente, e apesar de os princípios fundadores da Interpol estipularem que esta deve ser politicamente neutra, o sistema da entidade sediada em Lyon é regularmente utilizado por Estados autocráticos para perseguir opositores políticos.

Segundo o New Arab, várias figuras da oposição e até mesmo refugiados já enfrentaram detenções arbitrárias, tortura e desaparecimentos assim que são enviados novamente para território sírio depois de terem fugido do país.

Um dos casos mais conhecidos é o de Mazen Hamada, ativista opositor do regime de Bashar al-Assad que escapou da Síria após ter sido preso e torturado em prisões. Em 2019 regressou ao país de origem, depois de lhe terem prometido amnistia, e desde então não se soube mais nada sobre ele.

O regresso da Síria à Interpol poderá ter também impacto nos milhões de refugiados e requerentes de asilo, uma vez que “os alertas vermelhos têm a capacidade de retirar a um indivíduo o estatuto de refugiado em alguns países”, alertou ao New Arab Bruno Min, diretor da organização internacional Fair Trial.

Nesses países, entre os quais os Estados Unidos, “a existência de um alerta vermelho significa que alguém é uma ameaça ao próprio país e, por essa razão, decidem retirar à pessoa o estatuto de refugiado” e enviá-la de volta ao local de origem, elucidou o especialista.

Ainda em julho deste ano, por exemplo, um ativista uigur foi detido no aeroporto de Casablanca, em Marrocos, devido a um alerta vermelho emitido pela China, onde milhares de pessoas de etnia uigur estão alegadamente detidas em campos de concentração.
Interpol defende-se
A Interpol já justificou a decisão, dizendo que “a recomendação de levantamento das medidas de correção foi feita pelo comité executivo (...), depois de uma monitorização atenta das mensagens do gabinete da Interpol em Damasco”.

“Os países-membros mantêm o controlo total dos dados que fornecem à Interpol e decidem quais os membros que podem ver esses dados”, explicou a entidade, citada pelo Guardian. “Isto significa que o gabinete em Damasco apenas pode aceder à informação de bases de dados da Interpol que não possuam restrições de outros países-membros”.

Ao longo da última década, enquanto estava suspensa da Interpol, a Síria terá feito desaparecer dezenas de milhares de pessoas no seu sistema prisional, conhecido pela tortura e pelas execuções em massa. O próprio serviço de inteligência do regime sírio tem alegadamente atormentado os opositores que vivem agora fora do país.
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