"Domingo Sangrento" na Irlanda do Norte foi há 50 anos

por Carla Quirino - RTP
Londres. Homenagem às vítimas dos confrontos de há 50 anos, durante o "Domingo Sangrento", em solo irlandês. John Sibley - Reuters

Treze manifestantes católicos desarmados foram mortos por soldados britânicos que dispararam contra uma multidão de pessoas, durante o conflito na Irlanda do Norte, na cidade de Londonderry. Dezenas de pessoas atingidas, uma delas viria a morrer mais tarde devido aos ferimentos, aumentando o balanço negro para 14 mortes. Cinquenta anos depois nenhum militar foi julgado pelo massacre e os familiares ainda lutam por justiça. Esse dia 30 de janeiro de 1972 ficou conhecido por "Domingo Sangrento".

Naquele domingo de manhã, cerca de 15 mil pessoas marcharam na cidade de Londonderry manifestando-se a favor dos direitos civis colocados em causa pela lei que o executivo londrino tinha aprovado para travar os movimentos separatistas católicos.

Perante a escalada de violência entre católicos nacionalistas e protestantes, a nova legislação dava aos polícias o poder de prender cidadãos sem necessidade de julgamento.

Esta marcha contra essas detenções, organizada pela Associação de Direitos Civis da Irlanda do Norte, tinha sido proibida pelo Executivo de Belfast, leal a Londres
.

As ruas foram barricadas por militares britânicos, o que esteve na origem do exaltar dos ânimos entre os manifestantes.

Pelas quatro horas da tarde em Bogside, área predominantemente católica de Londonderry, o Regimento de Pára-quedistas do Exército disparou mais de 100 balas reais contra uma multidão de manifestantes desarmada que exigia a reposição dos direitos civis.

Treze pessoas morreram de imediato, pelo menos outras 15 foram feridas com gravidade. Uma delas acabou por não resistir, aumentando para 14 o número de vítimas no massacre.

Nesse dia, Michael McKinney perdeu o irmão Willy, que tinha 27 anos. "Quando eu estava a chegar a Free Derry Corner, vi carros blindados e soldados a aproximarem-se de nós. As pessoas corriam e gritavam enquanto fugiam das balas", relembrou McKinney, à BBC. "Quando voltei para nossa casa, o meu pai disse-me: 'Willy está morto.' Eu simplesmente desatei a chorar".
Memorial às vítimas do Domingo Sangrento, em Londonderry| Clodagh Kilcoyne - Reuters

O juiz Lord Widgery, que liderou o processo dos confrontos em tribunal, acabou por inocentar os soldados e as autoridades britânicas, embora tenha descrito o tiroteio provocado pelos militares como um acto "no limite do imprudente".

Em 2010 um novo inquérito judicial revelou que as vítimas eram inocentes e não representavam qualquer ameaça para o Exército britânico.

Esta investigação obrigaria o então primeiro-ministro britânico David Cameron a pedir desculpas pelos "assassinatos injustificados e injustificáveis".
Cicatrizes das famílias

Tony Doherty, presidente do Bloody Sunday Trust, tinha nove anos quando o pai, Patrick, foi morto a tiro. Tinha 32 anos e deixava seis filhos órfãos e a mulher Eileen viúva.

Tony, citado pelo Guardian, diz que foi "sempre conhecido como o filho de Paddy Doherty, assassinado no Domingo Sangrento",  e recorda estas cinco décadas como "anos de silêncio por parte do exército, da polícia e de Westminster". "Ninguém deveria ter que esperar 50 anos por justiça", acrescenta.

Os militares envolvidos nunca foram julgados.

"A capacidade de alcançar a justiça em qualquer sociedade é um valor central absoluto que deve estar enraizado no funcionamento da sociedade", afirma Doherty.

"O Domingo Sangrento e a minha vivência estará aqui para sempre. A questão da justiça ainda é muito, muito central. É uma espécie de sentimento de cidadania e cidadania igual e igualdade perante a lei. E nunca sentimos essa igualdade", desabafa.
Mural que regista o momento em que o padre Edward Daly acena com o lenço branco na tentativa de colocar as vítimas em segurança| Clodagh Kilcoyne - Reuters

Na Irlanda do Norte, atualmente, há reconhecimento do trauma intergeracional que os filhos e netos das vítimas herdaram da violência passada. 

Jean Hegarty, irmão de Kevin McElhinney, morto a tiro aos 17 anos de idade quanto rastejava para se proteger, deixa um testemunho dramático: "Ele foi atingido pelas costas e a bala atravessou o corpo dele".

Hegarty, à Reuters, lembrou que "a nossa geração está a morrer e gostaria de assistir ao julgamento dos militares enquanto está viva".

O atual governo britânico defendeu no ano passado a suspenção de todos os processos contra militares e manifestantes. O Executivo de Londres pretendia colocar um ponto final na memória do conflito, mas essa medida não foi bem recebida pelos familiares e acabou rejeitada por todos os principais partidos políticos locais.

"É bastante difícil conseguir qualquer tipo de reconciliação quando o governo britânico procura fechar a porta a qualquer possibilidade" de justiça, acrescentou Doherty.

Durante o fim de semana estão organizadas diversas tertúlias para assinalar os 50 anos do "Domingo Sangrento", às quais se associa o ator irlandês Adrian Dunbar.

Doherty sublinha que "é uma espécie de reconhecimento da dor, mas também é um reconhecimento da resiliência da cidade e das famílias ao longo dos anos".
The Troubles

O conflito na Irlanda do Norte, que se desenrolou na segunda metade do século XX, ficou conhecido em solo britânico como The Troubles. A luta travada para estabelecer o estatuto político da região envolveu a população protestante, que era maioritária e favorável a manter laços com o executivo de Londres, e em oposição a população católica (minoria), que defendia a independência ou a integração da província com a República da Irlanda, ao sul, país predominantemente católico.

No ano de 1998, o processo de paz da Irlanda do Norte começou a ganhar contornos. Quando as hostilidades finalmente cessaram, cerca de 3.500 pessoas haviam sido mortas em ataques paramilitares e detonações de bombas. Mais da metade das vítimas eram civis. Muitas destas mortes foram atribuídas ao Exército Republicano Irlandês, o IRA. Este braço armado era constítuido por paramilitares irlandeses nacionalistas, de maioria católica. Representava a resistência contra a influência britânica protestante.

O "Domingo Sangrento" mobilizou ainda mais os nacionalistas irlandeses, que argumentaram que a violência das décadas seguintes foi estimulada por um "Estado repressivo" que lhes negou os direitos.
Primeiras páginas do Jornal da cidade, Derry Journal | Twitter

A reunificação da ilha irlandesa não se concretizou e a Irlanda do Norte manteve-se como uma nação constituinte do Reino Unido, a par da Inglaterra, Escócia e País de Gales.
 
Sobre o massacre do 30 de janeiro muito foi escrito, mas a musica da banda U2 "Sunday Bloody Sunday" eternizou a memória desse dia trágico a nível mundial.

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