Eleições no Brasil. Uma mudança de ordem e progresso?

Este domingo, 147,3 milhões de brasileiros escolhem o novo Presidente num escrutínio decisivo para o futuro do Brasil. Tal como na primeira volta, realizada a 7 de outubro, também a segunda ronda de votações ocorre num clima polarizado e de grande fervor social. Os brasileiros escolhem entre dois candidatos antagónicos nas políticas e nas ideias: Fernando Haddad, do PT, e Jair Bolsonaro, da extrema-direita, com as sondagens a indicarem larga vantagem para o militar na reserva.

Andreia Martins, Sara Piteira - RTP /
A segunda volta das eleições presidenciais brasileiras decide-se entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad Ricardo Moraes, Paulo Whitaker - Reuters

“O Brasil não é um país para principiantes”. A frase surge no arranque do artigo de opinião de Caetano Veloso no jornal The New York Times, em que o cantor cita Tom Jobim, outra figura de peso da música brasileira, e relembra os tempos negros da ditadura que o país atravessou durante o século XX.

De facto, as eleições que vão escolher o 38.º Presidente da República Federativa do Brasil comprovam a enorme complexidade política daquela que é considerada a quarta maior democracia do mundo, atrás da Índia, Estados Unidos e Indonésia.

A segunda volta das eleições presidenciais decide-se entre Fernando Haddad, candidato pelo Partido dos Trabalhadores (PT), herdeiro dos fantasmas de vários escândalos de corrupção ao longo dos últimos anos, e Jair Bolsonaro, candidato afeto à extrema-direita a representar um partido que era até este ano praticamente irrelevante, o Partido Social Liberal (PSL).

Este é o candidato que lidera as mais recentes sondagens, com larga vantagem sobre o adversário.


Haddad, antigo presidente da Câmara de São Paulo e ministro da Educação, é o substituto de última hora do ex-Presidente Lula da Silva, preso em Curitiba desde abril deste ano, a cumprir uma pena superior a 12 anos na sequência da Operação Lava Jato. Bolsonaro, militar na reserva, apresenta-se como o candidato contra o establishment e o statu quo, ainda que faça parte da realidade política brasileira há quase 30 anos como deputado federal.

A situação explosiva que o Brasil atravessa inflamou-se ainda mais com o impeachment de Dilma Rousseff, em maio de 2016, acusada de “pedaladas fiscais”. Na votação para o afastamento da então Presidente, o deputado Jair Bolsonaro homenageou em plena Câmara dos Deputados o coronel Brilhante Ustra, primeiro militar a ser reconhecido pela justiça brasileira como torturador durante a ditadura.

Esta proximidade com a ditadura militar levou o PT a fazer um vídeo de campanha onde Bolsonaro é associado a Ustra como um candidato “favorável à tortura”. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ordenou esta semana a suspensão dessa campanha, sublinhando que “o cenário conflituoso de polarização e extremismos observado no momento político atual, pode criar, na opinião pública, estados passionais com potencial para incitar comportamentos violentos”.

De facto, quem quer que seja este domingo escolhido pelos brasileiros para substituir Michel Temer no Palácio do Planalto vai contar com segurança reforçada no processo de transição. Segundo a Folha de São Paulo, Bolsonaro ou Haddad terão direito a pedir uma equipa de seguranças ao Governo federal. E apesar de não estar previsto o uso de recursos da Força Aérea Brasileira para as deslocações necessárias, o ministro dos Direitos Humanos e subdiretor de Assuntos Jurídicos da Casa Civil, Gustavo Rocha, diz que é permitida uma exceção por uma questão de segurança e de “prudência”.


Os cuidados com potenciais ações redobram-se. Nem há dois meses, no arranque da corrida às presidenciais, a 6 de setembro, o candidato Jair Bolsonaro foi atacado durante um comício em Juiz de Fora, no Estado de Minas Gerais. Ficou gravemente ferido, com perfurações no intestino, tendo ficado hospitalizado praticamente até à primeira volta. Desde então evitou a participação nos debates televisivos com o argumento dos relatórios médicos que aconselham repouso após o ataque.

Outro caso de violência aconteceu logo após a primeira volta das eleições: um músico e mestre de capoeira, conhecido como Moa do Katendê, foi assassinado com 12 facadas após uma alegada discussão política num bar.
A campanha das redes sociais
Ao entrar na página online da Folha de São Paulo, o leitor é confrontado com o apelo “Compartilhe fatos. Não boatos”. A campanha tem a assinatura da rede social WhatsApp e surgiu depois da polémica das últimas semanas, já depois da primeira volta das eleições.

Segundo uma investigação do mesmo jornal, o candidato da extrema-direita poderá ter beneficiado do apoio ilegal de empresários para comprar mensagens e enviar fake news contra o Partido dos Trabalhadores através do WhatsApp.

Desde a apresentação de candidaturas aos momentos mais marcantes da campanha, é preponderante o papel das redes sociais. Bolsonaro, que lidera um partido que tinha até à presente eleição fraca expressão política, dispõe de pouca margem para anúncios televisivos. Oito segundos é o tempo de que o candidato dispõe a cada bloco do horário eleitoral desde o final de agosto.

Não obstante, essa limitação não impediu o aproveitamento de novas formas de comunicação.

A ascensão de Bolsonaro faz soar os mesmos alarmes que tocaram aquando da campanha de Donald Trump, com o escândalo da Cambrdge Analytica e a violação dos dados pessoais de cerca de 57 milhões de pessoas em 2016. No entanto, no caso norte-americano houve uma influência personalizada do conteúdo enviado aos eleitores - havia informações mais detalhadas sobre cada perfil, por via do Facebook.

No “WhatsAppgate” brasileiro, houve uma menor segmentação do eleitorado e uma maior difusão das mensagens, devido às próprias características da rede social, como referem os especialistas. O alegado esquema “anti-PT” terá envolvido um investimento de cerca de 12 milhões de reais (mais de 2.800 euros) por parte de empresários apoiantes de Jair Bolsonaro. O candidato nega as acusações e garante que não está envolvido na matéria.

No Brasil, o WhatsApp conta com mais de 120 milhões de utilizadores, o que representa mais de metade do total da população brasileira, com cerca de 210 milhões de pessoas. Segundo as sondagens do Datafolha, dois terços dos eleitores brasileiros usam WhatsApp, com os apoiantes de Bolsonaro a serem os mais ativos naquela rede social.
Jornalistas intimidados

Na quinta-feira, a chefe da missão de observação da Organização dos Estados Americanos (OEA) nas eleições presidenciais brasileiras, Laura Chinchilla, considerava que o fenómeno das notícias falsas não tem paralelo em qualquer país.

“É a primeira vez que, numa democracia, estamos a observar o uso do WhatsApp para espalhar maciçamente notícias falsas como está a acontecer aqui no Brasil”, disse a responsável.

Laura Chinchilla explicou aos jornalistas durante uma conferência em São Paulo que o facto de ser uma rede privada tornou o controlo das notícias falsas mais complexo. No caso dos Estados Unidos, por exemplo, a disseminação destas informações aconteceu sobretudo via Facebook ou via Twitter.

Tratando-se de uma rede privada, a situação “levanta uma série de considerações para as autoridades sobre como lidar com o acesso a comunicações privadas”.

“Acessar ao WhatsApp é como acessar um e-mail privado”, acrescentando que a resolução do problema “exige instrumentos técnicos e jurídicos diferentes”, refere.
Na primeira volta, Bolsonaro foi o candidato mais votado com 46%. Haddad ficou em segundo lugar, com 29,3% dos votos.

Também na quinta-feira, a Human Rights Watch denunciou o clima de “intimidação” de jornalistas durante a campanha eleitoral. Patrícia Campos Mello, que liderou a investigação da Folha de São Paulo, disse que foi vítima de várias ameaças através da Internet e chamadas telefónicas com ameaças após a publicação da reportagem. A sua própria conta de WhatsApp foi atacada.

“As ameaças contra Patrícia Campos Mello e outros jornalistas representam uma escalada alarmante da retórica contra a imprensa neste ciclo eleitoral contencioso no Brasil. (…) Os jornalistas que cobrem a eleição presidencial no Brasil devem poder trabalhar livremente e com segurança enquanto fazem reportagens sobre questões de interesse público”, afirmou Natalie Southwick, coordenadora do programa do CPJ (Comité para a Proteção dos Jornalistas) para a América Central e do Sul.

No mesmo sentido, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) dá conta de 141 casos de ameaças e de violência contra jornalistas durante a cobertura de eleições, sobretudo por apoiantes de Bolsonaro mas também apoiantes do Partido dos Trabalhadores.
Frente democrática?

Nos últimos dias de campanha, os apelos subiram de tom à direita e à esquerda, numa campanha atípica, sem debates entre os dois candidatos, e em que a troca de acusações e os apelos aconteceram sobretudo nas redes sociais e na imprensa.

Uma das últimas mensagens de apoio de Jair Bolsonaro partiu dos Estados Unidos. Na sexta-feira, em entrevista à BBC News Brasil, Steve Bannon, o homem que liderou a campanha de Donald Trump em 2016, descreve o candidato à presidência como alguém “brilhante”, “sofisticado” e “muito parecido” com o atual Presidente norte-americano.

Esta proximidade não é novidade. Em agosto, Eduardo Bolsonaro, filho do candidato, esteve reunido com o cérebro da campanha de Donald Trump em Nova Iorque. Num tweet, Eduardo Bolsonaro diz que “partilha a mesma visão do mundo” e que “está em contacto para juntar forças, especialmente contra o marxismo cultural”. No entanto, Bannon diz na entrevista que é “apenas um apoiante”.



Nas últimas semanas desde a vitória na primeira volta, Bolsonaro tem moderado o discurso. Em conferência de imprensa esta semana, o candidato deu uma conferência de imprensa onde garantiu que não vai sair do Acordo de Paris ou fechar a fronteira com a Venezuela caso seja eleito Presidente.

Mas o eleitorado – apoiantes e opositores – não esquece a admiração que o candidato sempre demonstrou pela ditadura militar que governou o Brasil durante mais de 20 anos, entre 1964 e 1985. Ao longo da carreira como deputado, mas também no início da campanha eleitoral, Bolsonaro fez várias afirmações que o aproximam dos ideais da extrema-direita ou mesmo do fascismo, com a apologia frequente da violência, da homofobia, racismo e machismo.

Ainda esta semana, Bolsonaro protagonizou mais uma polémica, ao prometer fazer “uma limpeza em profundidade” de “marginais vermelhos”, em referência aos opositores.

Ao antigo Presidente Lula da Silva, Bolsonaro dedica palavras ainda mais violentas: “Senhor Lula da Silva, se você espera que Haddad se torne presidente para o perdoar, vou dizer-lhe uma coisa, você vai apodrecer na prisão. Aliás, Haddad vai também. Não para lhe fazer uma visita, mas para ficar alguns anos consigo. Como gosta tanto dele, vão apodrecer os dois na prisão”, declarou numa mensagem de vídeo.

Têm sido frequentes as referências de Bolsonaro às acusações de que Haddad também é alvo. O candidato do PT foi denunciado pelo Ministério Público por crimes de corrupção, branqueamento de capitais e associação criminosa, também no âmbito de uma investigação da Operação Lava Jato.

Do outro lado, as palavras de Haddad para o adversário também não são simpáticas. Fernando Haddad acusou esta semana o seu adversário de ser um chefe de milícia.

“Essas pessoas são uma milícia, não é um candidato a presidente, é um chefe de milícia, os seus filhos são milicianos, são bandidos, é gente de quinta categoria, essa é a verdade”, afirmou o candidato do PT em conferência de imprensa.

Na última semana, Haddad afirmava mesmo que Bolsonaro “é uma aberração, que só fala sobre violência, ofende os nordestinos, as mulheres e os negros” e “tem apenas ódio no seu coração”.

"Há 28 anos que está no Congresso como deputado federal e só vomita barbaridades", afirmou ainda o candidato do PT.

Conhecidos os resultados da primeira volta, Haddad procurou unir uma frente democrática. Mas o centro político poderá não estar suficientemente mobilizado em torno do candidato do PT para impedir a eleição de Bolsonaro. Nas últimas sondagens, Haddad passou a ser o candidato com maior taxa de rejeição, ultrapassando o candidato do PSL.

Exemplo paradigmático é o de Fernando Henrique Cardoso, antigo Presidente brasileiro, que se recusou recentemente a apoiar abertamente Fernando Haddad contra o candidato de extrema-direita, mesmo que Bolsonaro já tenha pedido o fuzilamento do ex-Chefe de Estado brasileiro em várias ocasiões.


Na tentativa de ganhar mais apoios por parte dos candidatos eliminados na primeira volta, Fernando Haddad tentou afastar-se da figura de Lula da Silva e construir uma imagem independente da sua influência, reduzindo as menções ao antigo Presidente, bem como as habituais visitas à prisão de Curitiba, frequentes antes do primeiro turno.

No entanto, a evolução das sondagens indica que esse esforço não terá sido suficiente e que o resultado mais expectável será mesmo o de vitória para Bolsonaro. Talvez também por essa razão o antigo Presidente Lula da Silva tenha deixado um apelo à “sobrevivência da democracia” nos últimos dias.

“Se há divergências entre nós, vamos enfrentá-las por meio do debate, do argumento, do voto. Não temos o direito de abandonar o pacto social da Constituição de 1988. Não podemos deixar que o desespero leve o Brasil na direção de uma aventura fascista, como já vimos acontecer em outros países ao longo da história”, escreveu Lula da Silva numa carta publicada esta semana a partir da prisão.
PUB